©Leopardo Filmes

Ciclo Satyajit Ray | A Grande Cidade (Mahanagar)

Em 1963 estreou pela primeira vez “A Grande Cidade” (Mahanagar), a nova obra de Satyajit Ray a ganhar destaque no ciclo que explora a rica filmografia do cineasta.

Lê Também:   Na Penumbra, em análise

A Grande Cidade Ciclo Satyajit Ray
©Leopardo Filmes

UMA MULHER CADA VEZ MAIS LIVRE, NA CALCUTÁ INDEPENDENTE…!

Depois do arranque da primeira fase do Ciclo dedicado a um dos mestres maiores do cinema, Satyajit Ray, iniciativa em boa hora organizada pela MEDEIA Filmes e LEOPARDO Filmes, e depois da estreia comercial no nosso país de duas obras-primas inéditas em sala, APARAJITO (O INVICTO), 1956, e JALSAGHAR (O SALÃO DE MÚSICA), 1958, a partir do próximo dia 8 de Setembro entramos numa nova fase, a da reposição em cópias digitais restauradas de outros seis filmes do cineasta, um conjunto de grande impacto cinematográfico que integra alguns dos seus mais interessantes e importantes projectos de entre os muitos que vale a pena recordar e guardar deste cineasta que cedo conseguiu ultrapassar as fronteiras da sua Bengala natal e do seu país, a União Indiana. O filme que agora regressa numa cópia cristalina de grande qualidade de imagem e, seguramente, restaurado ao nível do som, onde se destaca um excelente exercício de sonoplastia, intitula-se MAHANAGAR (A GRANDE CIDADE), 1963. Baseado no conto “ABATARANIKA”, de Narendranath Mitra, o argumento foi escrito com a ideia expressa e clara de polarizar gradualmente a atenção no percurso singular de uma mulher, personagem de uma beleza irradiante, personalidade doce mas com forte presença de espírito, chamada Arati Mazumdar, interpretada com genial precisão e contenção dramática pela então jovem Madhabi Mukherjee (nasceu em Calcutá, a 10 de Fevereiro de 1942), que viria a ser uma das actrizes mais requisitadas e respeitadas da indústria de cinema bengali, uma das que mais rivalizaram na Índia com a vertente “Bollywood” de Bombaim, ou Mumbai, como agora querem que se designe.

Lê Também:   La Caja - A Caixa, em análise
A Grande Cidade Ciclo Satyajit Ray
©Leopardo Filmes

Em A GRANDE CIDADE, e no plano áudio e visual, vemos mais uma vez como Satyajit Ray concebe a subtil introdução do local da acção, logo no genérico inicial, através da utilização de uma imagem aparentemente simples: uma roldana de um carro-eléctrico em movimento resvala pelos fios onde a energia circula e provoca faíscas, que vão sucedendo ao longo de um percurso com um ritmo e um ruído quase musicais, e que sabemos pela banda sonora serem produzidas no contexto de uma grande metrópole, não obstante a objectiva apontar para um cabo onde na ponta está a referida roldana, para os fios condutores de electricidade, e isto sempre com o céu em fundo. Diz-se Travelling com Plano em Contra-Picado. Há quem prefira a nomenclatura francesa e diga Travelling em Contreplongée. Seja como for, magnífica ideia, que nos impede de ver o rebuliço natural da Calcutá da primeira metade dos anos sessenta e, não obstante, permite que a imaginação do espectador consiga fazê-lo, melhor do que se visse a panorâmica da cidade, porque assim passa a adivinhar e incorporar na sua memória e para memórias futuras as atmosferas de uma paisagem urbana densamente povoada. Estamos no puro domínio da linguagem cinematográfica. Depois, entramos numa casa modesta que, mesmo assim, corresponde aos domínios de uma família remediada, onde iremos descobrir, para além de Arati, o seu marido, Subrata Mazumbar (grande presença do actor Anil Chatterjee), o pai de Subrata, Priyogopal (figura patriarcal em decadência, interpretada por Haren Chatterjee), a mãe (representação clássica da mulher resignada, papel não necessariamente secundário dado a Sefalika Devi), a irmã (uma muito jovem, mas muito expressiva Jaya Bhaduri) e, finalmente, o filho do casal Arati-Subrata (um irrequieto mas igualmente expressivo Prosenjit Sarkar). Há ainda uma criada de que, curiosamente, sentimos a ausência física mas não a presença “fantasma” sempre que dela se fala, sobretudo quando a família dá conta de que falta dinheiro para lhe pagar o salário. Na verdade, perante estas personagens que o filme descreve com minúcia, a narrativa podia seguir o caminho de um regular drama social, reforçado pelo facto de serem as dificuldades económicas sentidas a causa próxima que irá provocar uma reviravolta no comportamento de Arati. Mas, felizmente, o que podia ser um vulgar melodrama de fazer chorar as pedrinhas da calçada prossegue numa outra direcção. O pai de Subrata, antigo professor, não consegue hoje o dinheiro que lhe permita comprar uns simples óculos. De vez em quando vai “estender a mão” aos seus antigos alunos, homens que obtiveram sucesso e que com condescendência cínica lá vão dando o apoio que visivelmente o seu antigo mestre necessita. Por seu lado, o filho, contabilista num banco, não consegue reunir o capital suficiente para suprir as necessidades existenciais básicas de uma família relativamente numerosa. Precisamente, será aqui, no meio de um dilema que parece insolúvel, que Arati irá intervir, propondo arranjar um emprego. E aquilo que hoje podia ser encarado como um gesto perfeitamente natural de uma mulher jovem e educada, era na Índia e, porque não assumi-lo, noutros países que se julgavam muito civilizados no ocidente, um problema que colidia em cheio com a mentalidade patriarcal dominante. Tradições e modelos de vida baseados na hierarquia das castas e na diferença dos géneros que a recente independência da União Indiana e a viragem para modelos civilizacionais mais avançados não excluíra por completo do quotidiano. Era a condição feminina a sentir o sopro da revolução dos costumes e, mais do que isso, o desejo de emancipação sexual por parte das mulheres que possuíam consciência das suas potencialidades enquanto cidadãs, na sociedade e no mundo laboral, e não se queriam encerrar nem limitar ao destino rotineiro de singelas e submissas fadas do lar. De um modo cauteloso mas, quando necessário, de forma expedita, Arati será contratada para vendedora de porta a porta numa firma especializada em máquinas de costura, o último grito da moda para a classe média que as podia comprar. Satyajit Ray aproveita a entrada da sua protagonista num meio competitivo, que até ali ela desconhecia, para fazer o retrato cáustico e divertido das suas colegas, raparigas com mais escola da vida, que a ajudam a encarar as coisas de maneira mais prosaica e produtiva. Entre as suas companheiras de profissão, o que na época seria uma opção de argumento com algum risco, distingue-se o retrato algo crítico de uma anglo-indiana, Edith (numa interpretação correcta de Ricky Redwood, mas que não chega aos calcanhares de nenhuma das actrizes indianas). Esta personagem, cujo rosto e pele branca denunciam a sua origem, será mais para a frente a causa da reviravolta final, quando Arati a defende perante uma decisão mais implacável do patrão, que nunca gostou de Edith, numa atitude que perfilava uma espécie de contra-campo do que sucedia na era colonial, a subalternização da população local. Mas ainda mais impressionante do que o rigor colocado na definição de um grupo de pessoas representativas da “grande cidade” de Calcutá no ano de 1963 vai ser o modo como o realizador manipula as contradições inerentes ao lugar do homem no seio do casal, desenvolvendo a progressiva desconfiança de Subrata em relação ao devir da mulher que, nas suas actividades cada vez mais amplas e lucrativas, passa a ser o principal activo económico da família, aquela que contra lógicas ancestrais a sustenta, sobretudo depois dos reveses da fortuna e da bancarrota bancária arrastarem o marido para o desemprego.

A Grande Cidade Ciclo Satyajit Ray
©Leopardo Filmes

Satyajit Ray era um mestre da planificação, e a Fotografia do muito competente Subrata Mitra corresponde em pleno aos enquadramentos desenhados a régua e esquadro para nos décors propostos, naturais ou em estúdio, se erguerem as histórias cruzadas daqueles que a realização descreve num quadro perfeito de correspondências. No caso de Arati, a sua confiança num futuro diferente e mais confortável vive a par de uma autonomia financeira que a leva a adoptar um estilo descontraído e moderno. Neste contexto, um simples batom, para dar cor e volume aos seus lábios, adquire uma importância que até ali nada lhe dizia, uns óculos escuros fazem dela uma sedutora, qual estrela de cinema, e Subrata, impotente perante o descalabro da banca associada ao novo capitalismo que o deixou socialmente descalço, limita-se a observá-la de longe, roído pelo ciúme mas certamente ainda mais pelo desespero de ver o seu lugar perdido a favor da mulher, uma mulher activa, independente e que gosta de o ser, quer essa condição seja verdadeira ou não face ao enunciado das leis vigentes. Depois de neste ciclo vermos como Satyajit Ray dava corpo e alma a uma mulher e mãe apostada em garantir um futuro melhor para o filho, Apu, (ver crítica a O INVICTO, publicada no passado dia 1 de Setembro), o que naquele filme se obtinha pelo poder do conhecimento, pelo “sacerdócio” não da religião mas dos estudos, aqui vai ser adquirido através da força intrínseca de uma revolução nos valores que regem o equilíbrio entre homens e mulheres numa sociedade que começava a despontar, liberta da dominação colonial, para uma ordem das coisas mais justa e igualitária. Mais uma vez, a mensagem política passa por aqui de um modo não sectário ou panfletário e, por isso mesmo, acaba por ser mais eficaz e contundente. O realismo de A GRANDE CIDADE nunca abandona a matéria-prima do argumento, as contradições da classe média e da pequena-burguesia bengali, para retirar o lugar ao sonho, ao desejo de uma vida melhor. Esse pulsar vital da grande cidade e das grandes personagens que a habitam faz deste filme um dos mais poderosos exemplos de cinema comprometido, mas que não esquece os valores artísticos e cinematográficos inerentes a uma nota musical e aos sons do dia-a-dia (e, não por acaso, a música do filme foi composta por Satyajit Ray), numa combinação de vozes, de carros, da emissão de rádio que se ouve ao longe. Estrutura fílmica que não evita, antes pelo contrário, o fulgor erótico da belíssima sequência em que Arati e Subrata, sem grandes e despropositadas manobras carnais, nos dão a subtil e fiel relação de intimidade entre dois adultos. Na derradeira sequência, perante o acto de solidariedade, coragem e determinação de Arati junto do patrão que sempre a colocou num patamar superior, que por razões óbvias não vou aqui revelar, as imagens do amor partilhado em que o casal se funde num só regressam da nossa memória para nos planos finais melhor compreendermos e eventualmente saudarmos o sacrifício de alguém que ao afirmar a sua voz livre atingira a maioridade intelectual da mulher que afastara o medo e assumira o seu destino num mundo dominado pelos preconceitos masculinos. Em suma, um filme a não perder.

Lê Também:   Nope, O filme e suas referências
A Grande Cidade, em análise
A Grande Cidade Ciclo Satyajit Ray

Movie title: Mahanagar

Date published: 7 de September de 2022

Director(s): Satyajit Ray

Actor(s): Anil Chatterjee, Madhabi Mukherjee, Jaya Bhaduri, Haren Chatterjee, Sefalika Devi

Genre: Drama, 1963, 131min

  • João Garção Borges - 90
  • Cláudio Alves - 95
93

Conclusão:

PRÓS: Magnífica cópia digital restaurada.

No Festival de Berlim de 1964, Satyajit Ray recebeu o Urso de Prata para a Melhor Realização.

CONTRA: Nada.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply