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Ciclo Satyajit Ray | O Invicto (Aparajito)

A Medeia Filmes está a organizar o Ciclo Satyajit Ray, que contou com a exibição de O Invicto (Aparajito), estreado originalmente em 1956!

TEMPO DE TRANSIÇÃO, NO MUNDO DE APU…!

O Invicto
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Como referimos na crítica a essa obra maior do cinema, JALSAGHAR (O SALÃO DE MÚSICA), 1958, o realizador Satyajit Ray iniciou a sua singular carreira cinematográfica poucos anos antes com a longa-metragem PATHER PANCHALI (O LAMENTO DA VEREDA), 1955. Esta obra foi produzida com inúmeras dificuldades financeiras que obrigaram a suspender por diversas vezes a rodagem, que apenas se retomava quando novamente se reuniam as condições mínimas para levar a bom porto essa autêntica aventura que era produzir um filme, com uma forte marca de autor, num país onde a produção dominante era iminentemente comercial e muito dependente do star-system. Mais, era uma ficção baseada na vida de uma pobre família rural, nos antípodas dos grandes melodramas musicais e não só e, para complicar mais as coisas, falada em bengali, facto que limitava a compreensão dos diálogos a parcelas muito significativas da população da União Indiana, onde se pode afirmar com propriedade que não existe apenas um cinema, mas uma pluralidade de cinemas destinados a públicos por vezes muito distintos, oriundos de culturas de grande diversidade étnica e linguística, para além de profundas diferenças de matriz religiosa. Seja como for, o esforço demonstrado pela pequena equipa de oito membros, dos quais apenas um beneficiara de uma anterior experiência profissional, acabou por ser recompensado ao provar a competência e as capacidades artísticas do então relativamente jovem cineasta, que se viu reconhecido no ocidente, mais precisamente a partir do momento em que esta sua primeira obra quebrou as fronteiras do país produtor e se apresentou em França, na competição do Festival de Cannes de 1956, acabando por receber um dos prémios oficiais, o prestigioso Prix du Document Humain. De forma breve, podemos dizer que a personagem do jovem Apu, que será posteriormente o principal, mas não o único, elo de ligação entre os filmes da chamada TRILOGIA DE APU, nasce e desponta aqui neste capítulo inicial, integrado no seio de uma família carenciada de Bengala Ocidental. O pai, da casta dos Brâmanes, ou seja, membro da casta sacerdotal e primeira das castas hindus, ganha a vida como contabilista, mas isso não o impede de viver as contradições de uma existência feita de privações e conflitos, nomeadamente com os seus vizinhos mais abastados. Há assim uma família que gere a sua vida no fio da navalha. Por isso o pai decide afastar-se do seio familiar, para com o seu estatuto religioso se dedicar a ritos de iniciação com que esperava ganhar um pouco mais de dinheiro. Mas as coisas não correm como o desejado e a sua ausência prolonga-se, situação que só vem piorar as condições difíceis em que a família sobrevive. Neste contexto, a relação de Apu com a mãe consolida-se, numa aproximação material, pessoal e emocional, que será importante reter para melhor penetrar na matéria do segundo capítulo, a longa-metragem que agora estreia comercialmente em sala no nosso país, numa cópia digital restaurada, o filme que passaremos a analisar, ou seja, APARAJITO (O INVICTO), 1956.

O Invicto
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Em O LAMENTO DA VEREDA, o pai de Apu, regressado finalmente a casa, após constatar os estragos causados pelas forças da Natureza e acossado pela presença da morte, assim como pela necessidade imperiosa de continuar o seu rumo, decide mais uma vez partir, agora com a família, na direcção de Benares, um dos mais sagrados locais da Índia, a cidade santa banhada pelo Ganges, igualmente conhecida por Kashi, Varanasi e Banaras. Precisamente, na primeira imagem de O INVICTO, ainda no decorrer do genérico inicial, vemos ao longe a referida cidade e o extenso plano de água do Ganges, num movimento rápido que corresponde a uma vista da janela de um comboio em movimento, plano que de forma económica e eficaz nos indica a chegada da família Roy (assim se chama a família de Apu): o pai (interpretado por Kanu Banerjee), a mãe (interpretada por Karuna Banerjee) e um mais crescido, mas ainda assim muito inocente Apu, numa fase inicial interpretado por Pinaka Sengupta (rapaz), depois por Smaran Ghosal (adolescente). Para aquelas personagens, Benares devia ser o início de uma oportunidade para recomeçar as suas vidas. Primeiro instalam-se numa casa alugada, modesta e sem grandes luxos ou privacidade. Entretanto, Apu aproveita para explorar com outros rapazes as ruas da cidade. Por seu lado, o pai ganha o magro sustento com leituras sagradas do hinduísmo, rodeado de fiéis nos famosos degraus construídos junto ao Ganges. Mas a mãe permanece na sua condição de dona de casa, habitualmente exposta a uma fragilidade existencial que na verdade não a impede de procurar para o filho algo melhor, um caminho que o faça superar a sua frágil condição que, para ela, só pode ser a via dos estudos, a via do conhecimento. Ela, a figura da mãe irá, aliás, protagonizar uma das presenças, simultaneamente, mais discretas e fortes de entre as personagens exemplares do filme, no que podemos chamar um verdadeiro depoimento do realizador e argumentista a favor da energia e do poder intrínseco das mulheres que na época ousavam assumir, com vigor e determinação, o seu papel na sociedade, o seu contributo na formulação de uma independência ideológica e de género que na Índia, como noutros países com diferentes patrimónios culturais, muita falta fazia. Na verdade, passados dezenas de anos, ainda faz muita falta. Este aspecto não passou despercebido ao público indiano que, moldado por múltiplos preconceitos, estranhou o modo como a relação mãe/filho se desenvolvia ao longo da narrativa. Disse Satyajit Ray na altura: “… a audiência suburbana ficou chocada com a representação da relação entre Apu e a mãe, muito diversa da imagem convencional da habitualmente doce, dedicada e mútua devoção.” Diga-se, a História estava do lado do cineasta e, já agora, dos que o souberam apoiar e, melhor, souberam reconhecer os sinais de uma nova era (a Índia obtivera a independência há poucos anos, mais precisamente em 15 de Agosto de 1947, e a 19 de Janeiro de 1966 via uma mulher hindu, Indira Gandhi, ascender ao lugar de Primeiro-Ministro, cargo que ocupou por duas vezes).

O Invicto
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Trágico será o percurso do pai de Apu. Morre, e nem a água sagrada do Ganges que bebe, numa sequência que pode ferir a sensibilidade dos mais higiénicos, o salva de uma doença que o atormentava há muito. Sarbajara Roy, assim se chama a mãe e viúva, vê-se obrigada a servir como cozinheira na casa de uma família rica e, por isso mesmo, instala-se com Apu na morada dos seus patrões, longe do rebuliço da cidade que outrora fora o vértice desejado de uma nova esperança. Dá-se então aqui o ponto de viragem nesta saga familiar, destacando-se agora e em pleno a personagem de Apurba “Apu” Roy. Ele procura seguir o caminho do pai, pois aparentemente o destino do filho de um Brâmane não podia aspirar a ser outra coisa senão o sacerdócio. Mas a mãe irá incentivá-lo a fazer a agulha para um outro mundo, e o adolescente Apu, seguindo os seus próprios sentimentos e dando boa conta das matérias escolares que domina, consegue uma bolsa de estudo (magnífica a sequência em que lê um clássico da poesia local que enaltece a beleza e as virtudes do Bangladesh). Os seus mentores inscrevem-no numa escola de Calcutá. E o comboio que o realizador sistematicamente usou nos seus filmes como um símbolo da modernidade e de progresso passa a assumir daqui para a frente o papel de vaivém entre a cidade e o campo, o novo e o velho, a máquina de metal e vapor que permite ao adolescente Apu sair do subdesenvolvimento social para alcançar um estatuto em que o saber significa em grande parte poder. Mas a condição humana não perdoa, e numa economia como a da Índia daqueles anos, a emancipação faz-se com sacrifícios para quem não nasceu no lado certo da barricada social. De facto, Apu estuda de dia e ganha as poucas rupias que o sustentam durante a noite, numa tipografia. Nas curtas férias visita a mãe, que aparentemente nunca arredou do pensamento. Ela foi a que mais sentiu a separação e a distância física do filho. Podemos dizer que, pouco a pouco, o filme introduz um estudo muito interessante do ponto de vista ficcional sobre a solidão das personagens, solidão que se manifesta sobretudo nas últimas sequências de O INVICTO. Trata-se aqui de reflectir de forma dialéctica sobre o sempre subjacente isolamento de Apu na grande cidade, a par do isolamento e solidão da mãe que, doente, vive encerrada na vastidão dos campos que dão corpo ao vasto espaço rural onde habita. No final, Apu, como outrora o pai, face ao espectro da morte, parte pelos caminhos em busca de uma provável redenção, segue em frente pelas veredas voltando as costas ao passado. Por rumos certamente incertos, mas que o levarão ao APUR SANSAR (O MUNDO DE APU), 1959, filme com que Satyajit Ray encerrou a Trilogia, um projecto que então lhe concedeu fama e consolidou o seu mais do que merecido reconhecimento internacional.

O Invicto, em análise

Movie title: Aparajito

Director(s): Satyajit Ray

Actor(s): Pinaki Sengupta, Smaran Ghosal, Kamala Adhikari

Genre: Drama, 1956, 110min

  • João Garção Borges - 90
  • Cláudio Alves - 100
95

Conclusão:

PRÓS: Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1957.

Mesmo não sendo pensado como segunda parte de uma Trilogia, que hoje com a devida distanciação e conhecimento da obra do realizador faz todo o sentido, a sua visão autónoma funciona na perfeição, e por isso nada impede o seu visionamento aqui e agora, sobretudo numa sala, num grande ecrã e com a projecção de uma boa cópia digital restaurada. A MEDEIA FILMES e a LEOPARDO FILMES cumpriram com esse desígnio. Mas quem quiser conhecer os restantes “episódios” pode seguramente adquirir no mercado edições, por exemplo, da Criterion Collection (sempre com preços do outro mundo, mas enfim) e, quem sabe, pode ser que ainda estejam disponíveis os DVDs da Trilogia de Apu, edição portuguesa da produtora e distribuidora COSTA DO CASTELO.

Para além da realização, da Direcção de Fotografia de Subrata Mitra (um compêndio do modo como se deve colocar a câmara) e das excelentes interpretações dos actores, onde destaco os dois Apu, o menino e o adolescente (respectivamente Pinaka Sengupta e Smaran Ghosal), a magnífica e lindíssima Karuna Banerjee, no papel da mãe, sem esquecer a breve presença, mas absolutamente fulcral, do pai, sublime interpretação de Kanu Banerjee, não podemos esquecer a qualidade da banda sonora musical da autoria do mestre Ravi Shankar.

Estreia dia 1 de Setembro de 2022, juntamente com JALSAGHAR (O SALÃO DE MÚSICA), 1958.

CONTRA: Nada.

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