©Leopardo Filmes

Ciclo Satyajit Ray | O Santo (Mahapurush)

“O Santo” é o mais recente projecto a ganhar destaque no ciclo Satyajit Ray, uma obra que chegou originalmente aos cinemas indianos em 1965.

FIA-TE NO BABA, QUE NEM VIRGEM DEVE SER…!

O Santo Satyajit Ray
©Leopardo Filmes

Na crítica a KAPURUSH (O COBARDE), 1965, já referimos que esse filme e MAHAPURUSH (O SANTO), 1965, são “meios irmãos”, distribuídos originalmente na União Indiana, e não só, como um díptico, uma espécie de sessão dupla onde sobressaía uma nítida vertente de continuidade na obra de Satyajit Ray, o melodrama social, e onde o autor regressava a uma incursão, até ali pouco frequente na sua filmografia, ou seja, na comédia. Na realidade, não se pense que o género fosse uma novidade absoluta na obra anterior do mestre do cinema bengali. Para além do humor que imperava em muitas sequências das suas mais celebradas longas-metragens, fossem dramáticas ou mesmo melodramáticas, Satyajit Ray realizou em 1958 a comédia PARASH PATHAR, aliás, com argumento baseado numa obra do mesmo escritor cujo conto serviria de matriz para O SANTO. Estamos a falar de Rajshekhar ‘Parashuram’ Basu. Não obstante, podemos dizer que o realizador nunca quis reduzir o sal e a pimenta subjacentes aos referidos apontamentos de humor disseminados pelos seus filmes sem utilizar uma dose generosa de sarcasmo na fina observação dos flagrantes da vida real. No filme citado, que nunca estreou comercialmente em Portugal, um empregado modesto encontrava uma pedra capaz de realizar o sonho dos mais crédulos, ou seja, obter ouro a partir de uma simples peça de metal.

Lê Também:   Nope, O filme e suas referências

Por falar em credibilidade, O SANTO joga precisamente com as cartas da crendice popular num quadro de acutilante e corrosivo humor, numa exposição mordaz e implacável de uma fraude, misturando alguma crítica social pelo meio, quando coloca cidadãos educados e, em princípio, não ignorantes, representantes da melhor classe média bengali, a seguir as pantominices e, sobretudo, o paleio de um vigarista que se faz passar por um homem sagrado, um sadhu. Nome de guerra Birinchi Baba (notável interpretação de Charuprakash Ghosh), sempre acompanhado pelo seu cúmplice (um básico sem escrúpulos, papel entregue a Rabi Ghosh), que nas fraudulentas performances do patrão faz as vezes de assistente e coro, como naquelas assembleias em que se ouvem umas vozes a exclamar “apoiado”, “muito bem”, mesmo que o orador esteja a verbalizar, ou melhor, a vomitar, uma cascata de disparates. Tudo começa num comboio em que Baba (permitam-me a ironia, que pela dimensão corporal faz lembrar o Elefante Babar, o que na Índia até faz sentido) distribui oferendas a um grupo de cidadãos que, embasbacados com esta demonstração de generosidade santificada, o seguem correndo mesmo o risco de resvalarem para debaixo do comboio já em movimento, somente para lhe poder beijar os pés. Delicioso o plano em que se vê Baba de dedo grande esticado, como quem diz: beijem aí e deixem em paz o resto do pé e do corpo. Um só plano, porta do comboio a partir do interior/mais exterior com multidão em correria, e Satyajit Ray não podia ser mais económico na crítica feroz aos actos e postura arrogante do impostor. Instalado no seu compartimento, que partilha com um advogado, Gurupada Mitter (Prasad Mukherjee), e sua filha, Buchki (Gitali Roy), Baba vai convencer o homem das leis que o pode ajudar a superar a dor de uma perda familiar recente. E aqui inicia-se uma série de capítulos que decorrem na casa onde Baba se instala de armas e bagagens, fruto da generosidade do seu interlocutor de viagem. Múltiplas são as reuniões, frequentadas por alguns “notáveis”, personagens quase caricaturais, onde Baba despeja mentiras atrás de mentiras, algumas das quais completamente inverosímeis, como a de ser contemporâneo de Platão, Jesus Cristo, Gautam (ou seja, Buda). Para cúmulo, chega ao ponto de afirmar que foi ele quem ensinou a Albert Einstein os princípios da Teoria da Relatividade, a fórmula E=mc2. Tudo isto sem que uma só alma da preenchida plateia o mande para um sítio bem mais credível e contundente. Bom, na verdade há um rapaz, chamado Satya (interpretado com alguns maneirismos dispensáveis por Satindra Bhattacharya) que, sentindo o perigo que paira sobre a sua relação amorosa com a filha do advogado, vai congeminar uma estratégia para desmascarar Baba e o assistente, plano que organiza em conjunto com um círculo de outros homens que não vão em cantigas nem querem ouvir falar sequer na hipótese de serem discípulos de um farsante. Mas neste filme o realizador que habitualmente coloca a mulher no centro da narrativa atribui a Buchki um papel lateral, pelo menos numa primeira e apressada leitura, dando-lhe o papel de serpente sedutora e provocadora num paraíso contaminado por imbecis e por uma dupla que deles se aproveita. Ela vai atiçar o seu amante, Satya, dizendo-lhe que ia passar a seguir os ensinamentos do improvável santo. Magnífica ideia que vai introduzir na acção a dinâmica necessária para Baba e o assistente caírem na armadilha montada que os levou a fugir a correr dali para fora. Máscaras e monco caídos, algo que para os espectadores nunca fora surpresa, porque há muito que sabiam que eles só as usavam por motivos pouco sérios, sobretudo a partir do momento em que assistimos a uma genial sequência em que Baba e o seu ajudante, mascarado com braços postiços atados nas costas, falam do seu modo de vida como quaisquer gangsters falariam dos seus projectos, dos seus esquemas manhosos e das suas proezas criminosas.

Lê Também:   Na Penumbra, em análise

Filme de contrastes, verdade da ciência versus falsa retórica, religiosa ou filosófica. Racionalidade versus irracional. Planificação concentrada nos encontros e desencontros de homens frágeis e menos frágeis e de mulheres fortes, em especial a jovem Buchki, misteriosamente apostada, com o seu olhar incisivo e sensual, a dar a volta aos problemas do dia-a-dia e ainda da vida futura de um futuro casal.

O Santo
©Leopardo Filmes

Mas no desenvolvimento da narrativa encontramos ainda a suprema inteligência de ver Satyajit Ray a colocar com evidente ironia na boca de uma das suas personagens a demonstração de que, mesmo entre os melhores e mais reticentes, há sempre quem possa começar a cair no logro, quando alguém afirma: “O Baba é um excelente orador. Um homem de cultura. Sabe de psicologia de massas. Só lhe falta ser honesto”. Se Satyajit Ray não estava a fazer aqui um depoimento muito sério, sob a forma de comédia, a propósito de um mundo erguido por demagogos, por mentirosos, por aqueles que hoje podíamos apelidar como falsos profetas das fake news, se não estava, não ficou muito longe.

Lê Também:   La Caja - A Caixa, em análise

Nem preciso de dizer mais nada, a não ser, não percam este filme, porque filmes assim fazem falta ao nosso percurso cinéfilo.

O Santo, em análise
O Santo

Movie title: Mahapurush

Date published: 9 de September de 2022

Director(s): Satyajit Ray

Actor(s): Charuprakash Ghosh, Robi Ghosh, Prasad Mukherjee, Gitali Roy

Genre: Drama, 1965, 65min

  • João Garção Borges - 85
85

Conclusão:

PRÓS: Excelente cópia digital restaurada. Puro prazer de ver e partilhar cinema com C grande.

 CONTRA: Nada.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply