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Ciclo Satyajit Ray | O Salão de Música (Jalsaghar)

A Medeia Filmes está a organizar o Ciclo Satyajit Ray, que contou com a exibição de “O Salão de Música” (“Jalsaghar”), lançado originalmente em 1958!

UM LUSTRE DE LUZ NO SALÃO DE MÚSICA…!

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O SALÃO DE MÚSICA
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No próximo dia 1 de Setembro e ao longo de várias semanas, na sequência de outros ciclos, retrospectivas, reposições em cópias digitais restauradas e estreias no circuito comercial, a MEDEIA FILMES e a LEOPARDO FILMES irão estrear dois filmes, não propriamente desconhecidos mas comercialmente inéditos nas salas portuguesas, JALSAGHAR (O SALÃO DE MÚSICA), 1958, e APARAJITO (O INVICTO), 1956, abrindo assim as portas para a revisão ou, quem sabe para muitos, a descoberta de um cineasta de excepção, Satyajit Ray (1921-1992). Tempo igualmente para destacar uma cinematografia que, apesar de oriunda da mais prolífica indústria cinematográfica do mundo, continua a ser uma espécie de segredo bem guardado do público cinéfilo e uma autêntica raridade no circuito comercial, habitualmente dominado pela produção Made in USA. Mas, se pensarmos que as estreias comerciais de filmes produzidos em países próximos, por exemplo, a vizinha Espanha, continuam a ser esporádicas e muitas vezes dependentes do impacto da valorização dos prémios a eles atribuídos nos grandes festivais de cinema, enfim, a ausência do cinema indiano, ou melhor, dos diversos cinemas da União Indiana, nem sequer surge como algo de muito estranho. Seja como for, saudemos aqui e agora a oportunidade de vermos os filmes de Satyajit Ray em sala, onde de resto qualquer filme merece ser visto, porque as obras seleccionadas para este ciclo são, na sua larga maioria, referências maiores de um realizador que soube interpretar como poucos aquilo que pode e deve ser a marca de autor a partir do património geográfico e cultural que o influenciou, no melhor sentido da palavra.

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Primeiro, uma breve nota sobre o homem: SATYAJIT RAY nasceu a 2 de Maio de 1921 em Calcutá, no seio de uma confortável família de Bengala Ocidental, onde os seus pais e avós gozavam de reconhecida e justificada fama no campo das artes e das letras. Formou-se em Ciências Económicas no Presidency College e prosseguiu os seus estudos superiores na Shantiniketan, a Universidade de Rabindranath Tagore (poeta, compositor, filósofo, pintor, activista, foi o primeiro não-europeu a receber o Prémio Nobel da Literatura). Entretanto, por estes anos de grandes revoluções e convulsões de natureza social, Satyajit Ray interessou-se cada vez mais pela música e pelas artes gráficas. Membro fundador da Calcutta Film Society (1947), o seu primeiro emprego foi como artista gráfico e ilustrador. Diversas fontes são unânimes ao indicar que a sua entrada na produção de cinema deu-se em 1949 quando acompanhou a rodagem de THE RIVER (O RIO SAGRADO), 1951, uma das obras maiores de Jean Renoir. Nesse clássico do cinema acabou por integrar a equipa como assistente de realização, embora não seja creditado no genérico. Provavelmente ainda mais importante do ponto de vista da sua formação cosmopolita foi a estadia em Londres e ainda a fruição de um grande número de filmes nacionais e estrangeiros, nomeadamente quando em 1952 aconteceu o primeiro Festival Internacional de Cinema da Índia. Desta paixão pelas matérias do cinema irá passar ao domínio prático da produção e realização numa aventura muito arriscada do ponto de vista financeiro, mas que lhe possibilitou um promissor início de carreira, ao rodar contra as mais diversas adversidades a longa-metragem PATHER PANCHALI (O LAMENTO DA VEREDA), 1955. Este filme foi posteriormente visto como o primeiro capítulo de uma Trilogia, a chamada Trilogia de Apu, de que agora o estreado APARAJITO (O INVICTO), 1956, seria o segundo “volume” e APUR SANSAR (O MUNDO DE APU), 1959, o derradeiro: para os devidos efeitos, a sublime conclusão de um dos mais belos projectos da arte cinematográfica a nível mundial.

O SALÃO DE MÚSICA Satyajit Ray
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Passemos agora aos filmes, destacando de imediato JALSAGHAR, que ficou conhecido no nosso país por O SALÃO DE MÚSICA, 1958. Preferi salientar primeiro esta ficção sobre o velho e o novo, sobre a paixão de um proprietário rural pela música num contexto fantasmático de glória e decadência de uma época, no seio das mutações socioculturais da Índia nas primeiras décadas do Século XX, para dar mais amplo espaço de análise a O INVICTO numa posterior crítica autónoma, onde procurarei enquadrar esse filme na já citada Trilogia de Apu.

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O SALÃO DE MÚSICA Satyajit Ray
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De início, no primeiro plano fortemente contrastado de O SALÃO DE MÚSICA, sobre o qual se desenham as referências gráficas do genérico em língua bengali, vemos um lustre de cristal particularmente luminoso oscilando num movimento pendular. Naquele instante, aqueles longos mas breves minutos intrigam-nos mas, mais para a frente e numa sequência fulcral desta obra magistral, saberemos que o que parecia numa primeira abordagem ser uma situação bizarra, fora do comum, no momento certo e na sequência certa irá fazer o maior sentido. Desde cedo que essa marca visual e a música que já então se ouve permitem-nos adivinhar uma ficção que nos propõe muitas e diversas leituras. De facto, podemos até dizer que este filme possui mais do que uma pluralidade de leituras, uma dupla de protagonistas. Por um lado, o homem, Biswambhar Roy (interpretado com milimétrico rigor por Chhabi Biswas), último representante de uma alta casta de proprietários rurais, os Zamindars. Não se sabe qual a sua ocupação presente, mas suspeitamos que nada faz, vivendo claramente da fortuna acumulada, cada vez mais rarefeita. Não obstante, vive num imenso palácio rodeado dos criados que, por razões diversas, lhe permaneceram fiéis. Possui relações distantes com a mulher e dá especial importância ao filho, que protege e acarinha, como se ainda vivesse os dias de ouro que visivelmente já não brilham. Na verdade, sobressai neste espaço uma pálida e furtiva imagem do passado, situação que o preocupa mas contra a qual parece impotente. Parece mesmo resignado. Na verdade, nada mais do que uma falsa atitude, uma máscara para esconder o seu egoísmo, comportamento forçadamente altivo que esbarra com a realidade circundante e não o faz esquecer o que de mais acutilante lhe chega ao conhecimento, a notícia de que uma “casta” de novos-ricos pretende ascender ao lugar dos antigos senhores fundiários ou, pelo menos, que procura ser reconhecida no círculo íntimo e fechado da velha aristocracia. Uma intrigante “luta de classes”, leia-se, no sentido de pedigree social. Neste caso, as visíveis contradições entre os que a possuem, a dita classe, e os que a não possuem. Só dinheiro, fruto de negócios com contornos nem sempre simpáticos. Por outro lado, outra personagem desponta ciclicamente e sempre com inusitado fulgor, ou seja, a música e o canto e, na mais vibrante sequência de O SALÃO DE MÚSICA, a força do som e das atmosferas musicais, assim como a sensualidade do corpo feminino, produzem uma poderosa catarse emocional, que resulta em pleno na genial conjugação da música com a dança. Desafio quem quer que seja a dizer-me que não sente a “alma cheia”, os sentidos a ferver, após o visionamento dessa e, aliás, dos restantes segmentos da narrativa onde a música impera. No entanto, para partilharmos com o protagonista o pulsar vital e as angústias de uma surpreendente “Noite Transfigurada” (a noite em que o lustre do genérico balança sobre as cabeças dos convidados no salão de música, enquanto acontecimentos dramáticos decorrem no exterior), seremos confrontados com o percurso fantasmático de Biswambhar, que deambula por uma casa hoje desproporcionada e isolada na solidão da vasta costa não longe do mar, onde os quadros dos antepassados, os espelhos, os adereços que restam enquanto sinais de um antigo poder, atestam a evidente fragilidade do presente. Incluindo um imponente elefante que envia com os criados em missão provocatória junto de um usurário que pretende humilhar. Mas nada pode ser visto como definitivo, a não ser a perda irreparável provocada por uma borrasca que faz naufragar o barco no qual a mulher e o filho seguiam. Relâmpagos iluminam a noite, lá fora. Trovões rebentam seguramente com estrondo, mas o ruído não se ouve no interior, porque as atenções estão concentradas na música. Mas ele, o mentor dos saraus musicais, que os financia com a venda do que resta das jóias da família, sente bem o que se passa, sente a energia das forças da Natureza e interroga-se perante os seus sinais. Mais, pressente o fim. Satyajit Ray aplica nesta sequência os seus melhores predicados no capítulo da planificação e montagem. Um gesto, um olhar, a música, os músicos, o cantor e a expressão maior da sua arte vocal. Mais um clarão e o vento que faz esvoaçar os panos altos que servem de cortinas. O mesmo vento que faz baloiçar o lustre. O mesmo vento que provavelmente arrastou um insecto para o copo de vinho onde o animal parece afogar-se, o que constitui um inquietante presságio de morte. O medo, a dúvida e a angústia instalam-se no espírito de Biswambhar, sentimentos que ele disfarça com dificuldade procurando ouvir a música que prossegue em cascatas encantatórias de sons, composições interpretadas por alguns dos melhores músicos indianos (entre outros, Ustad Vilayat Khan, Asis Kumar, Robin Majumder, Dakhin Mohan Takhur). E nós, espectadores, queremos que ela por sua vez não afogue o ressoar dos ecos de vida que no mar se debatem num remoinho de ondas, face ao abismo das águas negras e revoltas. Nesta altura já sabemos mais do que o protagonista, já sabemos mais do que os convidados, já sabemos mais do que os músicos. Só os criados parecem conscientes do que se passa ao largo, mas a hierarquia social impede-os de se manifestarem. Eles sabem, como nós, que assistem ao virar da página que fecha um contexto existencial e familiar que nunca mais será o mesmo. Digo-vos, só por essa sequência, um prodígio de encenação áudio e visual, uma filigrana de sombras e luz, uma utilização dialéctica do som e da sua ausência, vale a pena entrar numa sala de cinema para ver e ouvir a obra-prima chamada JALSAGHAR.

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Movie title: Jalsaghar

Director(s): Satyajit Ray

Actor(s): Chhabi Biswas, Sardar Akhtar, Gangapada Basu

Genre: Drama, 1958, 100min

  • João Garção Borges - 90
  • Cláudio Alves - 100
95

Conclusão:

PRÓS: Tudo. Só não dou 100 por uma questão de princípio. Este filme merece sem qualquer sombra de dúvida uma classificação elevada. Mas se der 100 a JALSAGHAR, vou dar quanto a SUNRISE (AURORA), 1927, do Friedrich Murnau, ou a ORDET (A PALAVRA), 1955, do Carl Theodor Dreyer, ou a THE SEARCHERS (A DESAPARECIDA), 1956, do John Ford? Três dos meus filmes para levar para a ilha deserta. Dou-lhes 150? Não posso, por isso fico pelos 90, vá lá, 90+.

CONTRA: Nada.

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