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Libertad, em análise

Clara Roquet dá a conhecer “Libertad”, uma obra protagonizada por Maria Morera Colomer, Nicolle García e Nora Navas!

LIBERTAD, DESEJO E NOME DE MULHER…!

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Primeira longa-metragem de Clara Roquet, LIBERTAD, 2021, co-produção entre a Espanha e a Bélgica, possui na sua principal referência uma ambiguidade que resulta do facto de LIBERTAD poder ser em castelhano nesta ficção catalã palavra que significa LIBERDADE (em catalão seria LIBERTAT), muitas vezes mesmo o grito de revolta ou o desejo de a obter, preferencialmente, para ela ser vivida de forma ampla e aberta. Porque, na verdade, quem não gosta de abraçar a liberdade sem grilhetas arrisca-se a ser escravo a vida inteira. Por outro lado, pode igualmente ser um nome, neste caso o de uma rapariga ainda adolescente, mas com um histórico de vida que faz dela uma mulher de corpo inteiro. Libertad, a personagem que parecia secundária mas que irá receber honras de um certo protagonismo (interpretada por uma competente Nicolle García), viajou desde a Colômbia natal, onde vivia em condições precárias com a avó, para ir passar uns dias com a mãe, Rosana (Carol Hurtado), empregada de uma família burguesa da Catalunha. Esta família, com as suas idiossincrasias próprias, ano após ano passa as rotineiras férias de Verão numa confortável e bem protegida vivenda situada na Costa Brava, uma das muitas propriedades privadas que se podem encontrar naquela região e nas localizações que correspondem aos locais de rodagem, ou seja, Blanes, Garraf, Lloret de Mar e Sant Andreu de Llavaneres. Da maioria dos membros não se espera grande coisa, são personagens secundárias e pouco ou nada irão influenciar o fluir narrativo. Todavia, há duas excepções que se irão destacar e uma outra que acaba por ser a ponte entre os diversos representantes do clã e até, contra as melhores expectactivas, um dos mais felizes e airosos elos de aproximação com a recém-chegada Libertad. Primeiro, o destaque vai para Nora (bela interpretação da jovem actriz María Morera), uma rapariguinha a despontar para a idade adulta mas que ainda mantém a ingenuidade algo saudável das meninas que, como se costuma dizer usando humor cáustico mas certeiro, nasceram com o rabo voltado para a Lua. Ela a partir de certa altura irá ser a principal interlocutora de Libertad, a quem admira pelo seu vincado desejo de liberdade e independência, consubstanciado num estilo muito directo de relacionamento com os adultos e não só, sem rodriguinhos e sem papas na língua. Depois vem a mãe, Teresa (a premiada Nora Navas, Melhor Actriz Secundária nos Prémios Goya de 2022), uma figura simpática mas complexa na gestão das suas contradições pessoais e geracionais. Teresa encontra-se num processo de redefinição existencial, nomeadamente em relação ao casamento com o pai de Nora, de quem saberemos se vai separar. E por fim a personagem que aglutina a atenção voluntária e involuntária do conjunto de personagens que constituem o elenco de LIBERTAD, a mãe de Teresa e avó de Nora, uma velha senhora de nome Angela (interpretada por Vicky Peña) que, por sofrer de Alzheimer, não deixa ninguém descansado, sobretudo quando decide sair de casa, fugas inesperadas que geram a maior das confusões e que são uma verdadeira antítese para as rotinas burguesas de que ela não consegue libertar-se de outra maneira. Pelo meio, o óbvio: entre Libertad e a mãe, a empregada doméstica, e Nora, filha de “boas” famílias, existe uma barreira que não parece fácil de ultrapassar, ou seja, a diferença de classes. Será aqui precisamente que a argumentista e realizadora da obra fílmica LIBERTAD vai jogar as suas cartas mais valiosas, naipes escondidos na manga e revelados a conta-gotas ao longo do pulsar ficcional. De facto, Nora na sua predisposição para assimilar o novo, a diferença, percebeu desde cedo em Libertad uma atitude de rebeldia, moral e sexual, que não se enquadra na ideologia burguesa dominante nem no comportamento que lhe impõe o seu enquadramento familiar. Mas na sua evidente atracção por Libertad (que chega a aproximar-se de uma atracção física quando ambas passeiam de barco ou gozam os prazeres do ar livre, deitadas nas rochas junto ao mar), Nora não consegue por si só quebrar as barreiras do que pensa ser a distância entre as boas e as más práticas da sua inesperada companheira de Verão. Por isso, Nora recusa mergulhar na promiscuidade de Libertad. Nora quer ficar próximo dela mas, numa situação limite e sobretudo nos contactos com o sexo oposto, na maioria predadores imberbes sem ponta por onde se lhe pegue, prefere desenhar um círculo de protecção em seu redor. Nesses momentos recusa ser como o seu “modelo” de mulher livre, não porque sinta que Libertad pertence a um outro mundo com outros valores que ela deveria automaticamente rejeitar, mas porque, no fundo, percebe que essa liberdade não passa de uma falácia ou de uma ilusão. Para melhor estruturar este conflito, a montagem propõe-nos diversas sequências em que momentos exemplares são expostos como se fossem peças de um jogo maior onde o espectador fosse convidado a julgar e validar ou não os costumes alheios. Na realização, Clara Roquet empurra os espectadores para esse lugar onde o presente e futuro se digladiam, como se dissesse: “Vejam como Nora reage aos estímulos vitais que só parcialmente controla perante o vigor e energia de Libertad”. E depois acrescentasse: “No decorrer da acção, vão separando as águas e escolham qual o lado da barricada social que apoiam, o mesmo será dizer, em qual deles querem estar, ou melhor ainda, em qual deles apostariam para integrar as personagens se aquelas miúdas fossem as vossas filhas, membros activos das vossas famílias”. Neste específico, o filme que podia ser simplesmente o relato, simultaneamente divertido e sério, de um coming of age, uma crónica da adolescência na passagem para a idade adulta, adquire assim uma decisiva e forte componente sociológica, cultural e, porque não dizê-lo, de reflexão política, que justifica plenamente o interesse por ele gerado desde que se estreou na Semana da Crítica do Festival de Cannes em 2021.

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No final do “querido mês de Agosto”, que assistiu a uma estranha e amarga mediocridade no capítulo das estreias cinematográficas em sala, com raras excepções, que no fundo mais não fizeram do que confirmar por contraste a regra geral, LIBERTAD parece abrir as portas para uma mais vibrante oferta no mês de Setembro, que esperamos seja mais quente em matéria de estreias cinematográficas, mais sólido no domínio da cinefilia e, já agora, mais suportável do ponto de vista climático.

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Libertad, em análise
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Movie title: Libertad

Date published: 25 de August de 2022

Director(s): Clara Roquet

Actor(s): Maria Morera Colomer, Nicolle García, Nora Navas

Genre: Drama, 2021, 104min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: Nos Prémios Goya de 2022 recebeu dois galardões de especial importância, Melhor Jovem Realizadora (Clara Roquet) e Melhor Actriz Secundária (Nora Navas, no papel de Teresa). Nesta sátira social, destaque ainda para a insinuante Libertad (Nicolle García) e para o olhar de Nora (María Morera) que, na sua genuína sinceridade de sentimentos, acaba por abandonar a relativa utopia, material e existencial, em que julga viver. Um período que na viagem para a idade adulta passa a interpretar num contexto social marcado, para o bem e para o mal, pelas diferenças de classe e pelas diferenças culturais entre a sociedade catalã, na Europa, e a sociedade colombiana, na América do Sul. E as duas jovens actrizes dão neste filme boa conta do recado.

CONTRA: Nada que impeça o desfrutar de uma bela e vibrante ficção. Há quem no país vizinho critique o facto de ser falado em castelhano e não se ouvir, pelo menos nos diálogos mais substantivos, qualquer palavra em catalão. Só posso dizer que, conhecendo como conheço a realidade da Catalunha, fiz juízo parecido ao longo do visionamento. Porque a língua ali não é apenas uma forma de comunicar, mas também de expressar algo mais. Mas o filme sobrevive a este “pormenor”, que diz mais respeito ao legítimo contexto das lutas nacionalistas no país vizinho do que ao contexto ficcional de LIBERTAD, sem dúvida aquilo que aqui e agora vale a pena valorizar.

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