Stress Positions, a Crítica | Theda Hammel partilha a sua irrepreensível estreia no Queer Lisboa
Comédia neurótica, atípica, esplêndida estreia por parte da cineasta norte-americana Theda Hammel, “Stress Positions” recebeu a Menção Especial no 28.º Queer Lisboa. É uma proposta rara – uma comédia de pandemia divertida e ciente de si própria e do mundo em seu torno. Deixamos as nossas impressões.
Theda Hammel realiza, co-protagoniza, co-escreve, edita e compõe a música de “Stress Positions”, mostrando ser um talento sem paralelo e sobre quem ainda ouviremos falar (e muito). Ao fim de contas, esta é a sua estreia nas longas, mas perante o grau de inventividade empregue, ninguém diria tal coisa.
A cineasta esteve presente em ambas as sessões do Queer Lisboa em que o seu filme foi apresentado, reiterando a receção positiva em Lisboa. Também João Ferreira, Diretor Artístico do festival, reforçou, na apresentação, a revelação que é esta obra, e não podíamos estar mais de acordo.
Uma estreia próspera no Queer Lisboa 28
A obra, estreada mundialmente em 2024, no início do ano, no Sundance Film Festival, foi por lá nomeada ao Grande Prémio do Júri e venceu o Amazon Studios Fiction Producers Award. No campo da distribuição, é representada pela NEON, uma das mais importantes casas para o cinema independente e uma das que mais “recruta” nos grandes festivais americanos (a par, por exemplo, da A24).
Na presente edição do Queer, o Júri, composto por Cristina Carvalhal, Márcio Laranjeira e Tita Maravilha atribuiu a Theda Hammel uma distinção de menção especial pelo trabalho de “argumento, realização, montagem, interpretação e composição sonora”, distinguindo elementos fulcrais como as “várias camadas de sentido”, a inteligência, o dinamismo e o humor auto-referencial tão aguçado.
O espalhafatoso enredo de Stress Positions
A premissa absurda de “Stress Positions” é desde logo o elemento que torna a longa tão atraente e incomparável. O trágico e letárgico Terry (John Early) está em casa, durante o ano de 2020, em Brooklyn, a cumprir uma quarentena de COVID a roçar a paranóia. De máscara de gás na mão e distância social inviolável, protege com níveis perto da obsessão um convidado muito especial que tem em casa.
É Bahlul (Qaher Harhash), o seu sobrinho modelo de 19 anos de origem marroquina que está preso a uma cama depois de ter tido um acidente de trotinete. Para mal dos seus pecados, toda a gente na sua vida quer conhecer o modelo – inclusive a sua amiga Karla (interpretada pela realizadora Theda Hammel). Karla chega a sua casa como um furacão, fura a quarentena, leva de arrasto a sua namorada Vanessa (Amy Zimmer) e depressa estabelece uma cumplicidade e uma química palpável com Bahlul.
Dinâmicas relacionais valorosas no filme de Theda Hammel
Politicamente incorreta mas muito curiosa, Karla é uma personagem repleta de ambiguidade e que, não obstante os seus defeitos, é para lá de relacionável. Tanto ela como Bahlul têm vontade de compreender o mundo em seu torno de uma forma plena.
Bahlul, devido ao exoticismo que sempre pendeu sobre a sua vida e experiência (da parte da sua mãe e de tantos outros em seu torno), é a personagem mais consolidada enquanto ser humano e aquela que conhece melhor o mundo que o rodeia. Mazelado por ele, desiludido com as figuras de referência que encontra pelo caminho, traça a sua jornada rumo a uma identidade livre. A forma como é construída a sua personalidade demonstra uma sensibilidade gigante por parte da equipa que escreveu a obra.
“A ficção é libertadora” e o valor da reinvenção neste Queer Lisboa ’24
Depois temos a segunda personagem mais intrigante da obra, Karla, interpretada pela realizadora. Karla tem uma relação difícil com conceitos como beleza e desejo, e, apesar de amar a sua namorada Vanessa, uma vegan insuportável e caricatural, é incapaz de não sabotar o relacionamento (por muito que Vanessa também tenha muitas, muitas culpas no cartório).
Mais relevante, de forma inteligente e sucinta, Theda Hammel troca por miúdos a experiência trans através das palavras de Karla. Um dos momentos emocionalmente mais pujantes de “Stress Positions” acontece quando Bahlul pergunta a Karla se sempre quis fazer a transição, se sempre quis ser uma mulher, ao que esta responde que ninguém pensa isso, que “simplesmente queria morrer, e isto ajudou”.
Quão poderosas são estas palavras, tão poucas mas tão impactantes? Assim e através de tantos outros elementos, “Stress Positions” posiciona-se como uma obra cómico-trágica, uma comédia nervosa e frenética. Aqui há tanto humor, mas também muito a ser dito sobre alienação, sobre padrões da sociedade e a nossa capacidade de corresponder (ou não) aos mesmos.
Vemos esta questão com Bahlul, o jovem modelo que é sufocado por uma sociedade fixada em valores estéticos e por retirar um pouco mais de si, pedaço a pedaço. Karla tem também um monólogo excelente acerca desta questão que aconselhamos a não perder!
Uma vertigem de acontecimentos imparável
Aqui se sabe aproveitar verdadeiramente o contexto de clausura pandémica. Seja o espaço reduzido, seja a escalada de tensões entre personagens distintas, seja o pandemónio a que o mundo chegara então. Como Theda Hammel reforçou na apresentação do filme em sala, ninguém quer recordar os tempos atribulados da crise pandémica. Não, “Stress Positions” está antes investido em utilizar esta situação extraordinária para tornar o seu contexto ainda mais atípico, como mecanismo narrativo.
Junta personagens com visões de mundo bem distintas e faz a neurose escalar e escalar; usa esta metáfora para refletir o que é a reclusão das pessoas trans e queer numa sociedade que procura uniformizar e aproveita esta mesma natureza neurótica para abordar de forma franca algumas preocupações que são para lá de universais.
Como tudo o resto no filme, o argumento é muito inteligente e a progressão assim o confirma.
Palavras para lá de astutas
Esta é uma comédia muito auto-consciente, paranóica, acídica e que reflete traumas partilhados e individuais de duas gerações – Millennial e Z. E não estivéssemos em Nova Iorque neste “Stress Positions”, claro que a memória do 11 de Setembro é flagrante, bem como toda a sua influência num grupo de indivíduos que ficou completamente condicionado a falar de forma pejorativa do “Médio Oriente” – um termo que é ininteligível para várias das personagens da obra. Theda Hammel coloca o dedo na ferida, com provocação através de provocação, deixando na sua longa temas para debate sem fim, num filme que é muito denso no campo das ideias. Aliás, mal estamos a tocar na sua superfície.
Theda escreve com Faheem Ali, que também dá uma perninha no filme como o estafeta Ronald – uma personagem que permite introduzir um elemento exterior à intencionalmente sufocante dinâmica da casa.
Ver esta publicação no Instagram
Localizações mínimas, máximo aproveitamento
Dois apartamentos, poucas cenas de exteriores, é basicamente isto que temos em “Stress Positions”, mas eis que a realizadora faz das tripas coração e consegue fazer a noção de espaço no filme parecer bastante ampla. A “culpa” é do seu trabalho de edição notável, que conecta cenas com criatividade sobeja – entre sequências de sonho que revelam as motivações das personagens a transições que exploram ao máximo o potencial cómico.
Muitas vezes o típico primeiro filme indie norte-americano fica-se por uma estrutura formal muito elementar, mas não esta Menção Especial no Queer Lisboa 28. Aqui, quem protagoniza vê a sua individualidade expressa através de um trabalho de montagem frenético, audaz e capaz de criar significado como a melhor tradição de cinema assim o exige.
O 28.º Queer Lisboa já fechou as exibições no Cinema São Jorge e Cinemateca e volta em 2025 entre os dias 19 e 27 de setembro. Por agora, temos a 10.ª edição do Queer Porto, entre os dias 8 e 12 de outubro com sessões na Batalha, Casa Comum e Passos Manuel.
Stress Positions, a Crítica
Movie title: Stress Positions
Movie description: Terry Goon mantém uma rigorosa quarentena no apartamento do seu ex-marido, em Brooklyn, enquanto cuida do seu sobrinho Bahlul, um modelo marroquino de 19 anos, acamado após um acidente de trotinete. Infelizmente para Terry, todas as pessoas à sua volta só querem conhecer o modelo.
Date published: 6 de October de 2024
Country: EUA
Duration: 95'
Author: Theda Hammel, Faheem Ali
Director(s): Theda Hammel
Actor(s): John Early, Qaher Harhash, Theda Hammel, Amy Zimmer, Rebecca F. Wright, Faheem Ali
Genre: Comédia, Drama, Queer
-
Maggie Silva - 85
Conclusão
“Stress Positions” é uma comédia de pandemia onde não nos arrastamos em auto-comiseração, onde a vivacidade do elenco, dos seus confrontos e diferenças fundamentais verdadeiramente vence. É um filme que expressa a experiência queer, trans e também as paranóias, medos, conhecimentos e ignorâncias de duas geração.
Pros
- Uma estreia que indicia um olhar crítico, uma inteligência no diálogo e uma mestria rara para quem ainda não tem uma filmografia longa como é o caso da cineasta Theda Hammel;
- Com muitas poucas localizações, a edição de Hammel é de louvar. Não só adiciona significação ao texto como cria momentos de humor, em particular a partir do momento em que tudo começa a sair de controlo. Que bom é ver cineastas que sabem como tomar conta do processo com determinação, de uma ponta à outra!
- Prestações muito competentes por parte de todo o elenco e a capacidade de criar caricaturas que são, ao mesmo tempo, personagens de carne e osso credíveis. Aqui está uma linha muito difícil de navegar – hipérboles que conseguem parecer verdadeiras.
Cons
- Alguns clichés acerca das neuroses da geração Millennial são particularmente acentuados, numa altura em que o discurso da internet parece atribuir toda a sabedoria a quem vem a seguir. Mas e daí, não é desta capacidade de auto-reflexão que se faz o argumento? Talvez seja apenas justo escrutinar certas falências que estão, de facto, lá.