I Saw the TV Glow, a Crítica | Uma obra-prima de Jane Schoenbrun no Queer Lisboa
Em jeito de alegoria trans, “I Saw the TV Glow” foi um dos grandes títulos a passar pelo Queer Lisboa. De facto, a obra de Jane Schoenbrun com Justice Smith no papel principal está entre os melhores filmes do ano.
Com a sua primeira longa-metragem, “We’re All Going to the World’s Fair,” Jane Schoenbrun demonstrou ser uma cineasta invulgarmente interessada nos fenómenos de uma cultura online, aliando-se à perspetiva de uma geração raramente representada dessa forma nos media. O filme perscrutou a relação com a internet num contexto de live streaming, extrapolou as possibilidades do creepypasta e a intimidade bizarra de um registo diarístico na praça pública online. Só por isso, a realizadora merece atenção entre os seus colegas, destacando-se pela curiosidade sobre temas que a maioria ignora. É claro que também há o pormenor da sua identidade.
Schoenbrun é uma das poucas vozes trans e não-binárias no panorama cinematográfico atual, especialmente quando consideramos a sua aproximação relativa do mainstream – obras programadas em Sundance, colaboração com Emma Stone enquanto produtora, distribuição da famosa A24. Isso não lhe dá relevância por si só, mas é um pormenor importante. Além disso, informa o modo como podemos abordar o seu trabalho, com questões de identidade e conexão espalhados pelas histórias que decide contar. Se essas ideias já apareciam em “We’re All Going to the World’s Fair,” então chegam à sua apoteose com “I Saw the TV Glow,” sua segunda longa.
Uma alegoria trans com toques de veneno nostálgico.
Ao ler textos de críticos cis e hétero, poderíamos assumir que “I Saw the TV Glow” está mais relacionado com a prisão da nostalgia, quiçá até a obsessão nociva da fandom, do que com uma crise identitária queer. Afinal, a fita relata a história de Owen e Maddy, dois jovens que se conhecem nos anos 90 e formam uma amizade invulgar, principalmente baseada na sua paixão comum pela série televisiva ‘The Pink Opaque.’ Mas há algo mais que os liga. Infelizmente, Owen não consegue transcender os seus temores e, quando Maddy propõe que os dois fujam da sua cidadela, ele fica para trás. Dez anos depois, reencontram-se.
Owen continua o mesmo, mas Maddy mudou. De facto, muito mudou, inclusive a opinião dos dois sobre o programa que os uniu, como se essa fosse a matriz pela qual percecionam a realidade. A certa altura, na tentativa de reviver a última temporada, o rapaz quase que é comido pela sua televisão. Noções de se ser consumido, da morte deliberada de um ‘eu’ para o nascimento de outro vêm à nora e, novamente, Owen rejeita Maddy. Ele nunca mais a vê. Passados uns anos, ele revê a série que os juntou e não consegue entender a paixão juvenil. Passadas duas décadas, o sentimento de estar encurralado persiste no seu coração. A estagnação vence e Owen desespera.
Perante este sumário, conseguimos reconhecer a tragédia da imobilidade, aquele horror de ficar tão parado perante os movimentos caóticos da vida que nos deixamos apagar. E o ‘The Pink Opaque’ serve como prisma e barómetro, uma forma de desperdiçar o tempo limitado que temos e de revelar quanto a perspetiva muda com a idade. Se nos deixamos ficar agrilhoados à nostalgia, sempre a olhar para trás, jamais saberemos avançar para o amanhã. Só que “I Saw the TV Glow” é muito mais que isso e não é particularmente subtil na sua abordagem. Céus, uma das primeiras cenas com o pequeno Owen, depara-se com ele e outras crianças a brincar naquilo que é, basicamente, uma bandeira de orgulho trans gigante.
‘The Pink Opaque’ não é tanto uma dissecação do veneno nostálgico, como o reflexo de uma experiência vivida por muita gente queer. Aquela ocasião em que, sem perceber bem o que sentimos, nos reconhecemos e daí construímos quem somos. A série é um ídolo falso e uma porta para outro mundo, um não-espaço que se transcende no caminho para algo maior, para uma verdade maior. Notem-se os momentos de recriminação baseada em padrões de género, como a paixão de Owen pela série o feminiza aos olhos dos outros e conta como uma transgressão social. Mas, mais do que isso, pensemos na relação entre as duas figuras centrais.
O terror do armário é um pesadelo cinematográfico.
Maddy é a pessoa que descobriu estar dentro do armário e conseguiu dele sair. Sua história de ser enterrada viva e se sentir ressuscitada não é mais que a alegoria da transição. “I Saw the TV Glow” é todo ele uma alegoria, recorrendo a elementos da ficção-científica e do terror para transmitir noções viscerais que um drama mais comum não conseguiria fazer. E ao mesmo tempo que é uma alegoria, é também um pesadelo, estando sempre preso à repressão autodestrutiva de Owen, cuja rejeição sucessiva de Maddy se pode equivaler à negação do seu próprio ser. No final, vemos isso materializado na luz misteriosa que rompe pelo peito do protagonista, algo assustador que se esconde logo, um segredo que sufoca.
Na verdade, essa tonalidade tóxica domina a experiência do filme, como que imergindo o espetador nas angústias de Owen. O terror salientado é do foro existencial, ilustrado por uma sonoplastia opressiva e idiomáticas visuais nas quais se salienta a sombra e a cor garrida, brilhante e em brasa. A música é outro ponto forte, sempre em tom melancólico, ao mesmo tempo que os elementos de design brincam com sinalética queer e os preceitos de um pastiche à “Buffy” e outras séries semelhantes. Tudo isto faz com que “I Saw the TV Glow” seja uma experiência desconfortável, tão focada na psique de Owen que faz surgir a claustrofobia no âmago do espetador. Contudo, até na mais profunda escuridão, há a possibilidade da luz, da felicidade queer. A fita acaba como uma tragédia, mas esse fim não é uma sentença universal. Há sempre tempo para mudar. Ainda tens tempo. Sempre terás. Nunca é tarde demais.
Depois do Queer Lisboa vem o Queer Porto. A edição portuense do festival decorre de 8 a 12 de Outubro. Não percas!
Queer Lisboa '24 | I Saw the TV Glow, a Crítica
Movie title: I Saw the TV Glow
Date published: 6 de October de 2024
Duration: 100 min.
Director(s): Jane Schoenbrun
Actor(s): Justice Smith, Brigette Lundy-Paine, Ian Foreman, Helena Howard, Lindsey Jordan, Danielle Deadwyler, Fred Durst, Conner O'Malley, Madaline Riley, Amber Benson
Genre: Drama, Terror, 2024
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Cláudio Alves - 85
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Maggie Silva - 90
CONCLUSÃO:
“I Saw the TV Glow” troca as voltas do terror e segue um caminho muito queer com rasgos de existencialismo. Em jeito de alegoria trans, o filme é único no panorama do cinema Americano próximo do mainstream. Há uma sinceridade que transborda, um gosto pela dor sublimada que, ao mesmo tempo, não invalida a existência de alguma esperança. Jane Schoenbrun é uma realizadora que veio deixar a sua marca e aqui conquista o respeito da crítica internacional. Trata-se de um dos filmes essenciais deste Queer Lisboa. É um dos filmes fundamentais do ano!
O MELHOR: A sensação da mais pura angústia que a fita suscita por meio da forma e do texto. Não há melhor exemplo que o grande monólogo de Maddy, onde se arrisca a leitura de ideação suicida e se descobre a potencialidade grotesca dos rasgos de luz nas trevas. É um assombro.
O PIOR: O trabalho de ator é meio inseguro no que se refere à prestação de Justice Smith enquanto Owen. Dito isso, Brigette Lundy-Paine só merece aplausos pelo trabalho como Maddy. Além disso, só vale mesmo a pena salientar como, nas suas muitas explorações, “I Saw the TV Glow” tende a ignorar as dimensões raciais da narrativa, como se esse fator não influenciasse o arco de Owen, figura Afro-Americana num contexto predominantemente branco.
CA