Viet & Nam, a Crítica | O retrato de uma paixão e de uma nação no Queer Lisboa ’24
O Queer Lisboa continua a trazer algum do mais belo cinema contemporâneo à capital portuguesa, incluindo “Viet & Nam” de Trương Minh Quý. O drama vietnamita integra a competição de longas-metragens narrativas.
Antes de celebrar a sua estreia mundial no Festival de Cannes, a nova obra do cineasta Trương Minh Quý foi alvo de muita controvérsia no seu país de origem. Segundo as autoridades e líderes culturais do Vietname, “Viet & Nam” é um retrato abismal da nação, perscrutando a sua feiura e expondo uma visão híper-negativa da sociedade, da cultura, das pessoas. Por isso mesmo, o filme foi efetivamente banido, sua exibição legalmente proibida pelo Departamento do Cinema. Trata-se de censura pura e simples, certamente motivada pelo conteúdo queer da narrativa e sua exploração política, sua pesquisa sobre cicatrizes históricas.
Apesar de o filme convidar a reflexões profundas, não o caracterizaríamos como uma provocação. Longe de se mostrar hostil, com vontade de quebrar tabus e pegar fogo aos bons costumes, “Viet & Nam” segue uma abordagem mais sedutora. É como se nos estivesse a hipnotizar, guiando até aos confins da terra e do sentimento. Somos imersos na sua beleza, num sonho com vertentes de pesadelo, e só depois de chegarmos ao fim é que o choque se manifesta. Só quando acordamos da viagem onírica é que a crítica implícita se torna explícita. Mas mesmo aí, não é uma renegação do Vietname. Pelo contrário, é uma carta de amor manchada com lágrimas.
Uma obra-prima banida no seu país de origem.
O processo pelo qual Trương Minh Quý fascina o espetador é reflexo do movimento das próprias personagens. Viêt e Nam são mineiros que todos os dias descem até aos confins escuros para escavar carvão. O trabalho é duro e mortifica o corpo, corrompendo os pulmões com o pó e o minério. Trata-se de um envenenamento que todo o mineiro aceita como preço a pagar pelo seu lavoro. O suor e as lágrimas não são suficientes para justificar o salário – o futuro também se sacrifica. De facto, nalgumas passagens algures entre a poesia e o exposé, vemos uma escavação na carne, quando os jovens procuram os pedaços de pedra que se agregam nos ouvidos.
Ir para debaixo da terra suscita ideias do enterro e do inferno, mas não é isso que os dois protagonistas encontram na escuridão. Por muito que “Viet & Nam” exponha as condições atrozes em que as personagens existem, também nos mostra quanto a sua subjetividade transforma um palácio de dor num templo de prazer. Nas sombras, escondidos do mundo, eles podem ser si mesmos sem a necessidade de esconder. Podem despir-se e comungar com o corpo um do outro, uma paixão húmida, de corpos pintados com a mancha negra do carbono. E em seu torno, o minério reluzente torna-se num céu estrelado, uma noite reluzente e infinita.
Efetivamente, a mina torna-se numa dimensão fechada na qual o filme desencanta um paradoxo apelativo, o abuso corporativo como veículo para a paixão, para a liberdade que não se pode viver na plenitude sob olhares alheios e o beijo do sol. A primeira metade de “Viet & Nam” faz-se assim, entre a mina e o mar, quando os amantes limpam o pó preto dos corpos e passeiam junto às ondas que prometem outro tipo de liberdade, quiçá mais total, quiçá letal. Dura quase uma hora é um milagre cinematográfico, recheado de imagens tão emblemáticas que o espetador quer pausar a fita só para apreciar o requinte de cada fotograma.
O trabalho milagreiro do realizador vietnamita e seu diretor de fotografia, Son Doan, não esmorece na segunda metade de “Viet & Nam,” mas sofre uma alteração profunda. O filme expande-se, horizontes alargados além dos homens enamorados, transcendendo o egoísmo carnal para encontrar uma meditação mais ampla sobre o Vietname enquanto identidade. Com a ajuda do companheiro e de um antigo amigo do pai, Nam e sua mãe viajam pelo país à procura do pai, uma das vítimas da guerra. Seu corpo, como o de muitos outros, está perdido e o seu luto permanece incompleto. Para sarar uma nação, há que confrontar as feridas históricas. Ignorá-las só traz desgraça.
O poema visual conclui com um final devastador.
Da escuridão para a luz, do preto carbónico para o verde das selvas e florestas, do conforto de uma intimidade secreta para a agonia da dor exposta em praça pública. E, em jeito caricato, na ponte entre as duas vertentes da fita, temos um orgasmo. Acontece que, no momento de máximo êxtase, Nam vislumbra a figura de um homem na distância. Será seu pai? Será que o espírito do defunto ainda olha pelo seu filho, vigiando e resguardando o moço? Será que todos os soldados caídos são assim? E as vítimas civis? Todos aqueles que a guerra ceifou são fantasmas a deambular entre os vivos, com pena deles talvez. Ou talvez seja só a alucinação orgástica.
No meio desta odisseia em 16mm, uma barreira começa a formar-se entre Viêt e Nam. Enquanto o rapaz do pai perdido quer continuar no país, sempre fiel à mãe e sua busca incessante pelas ossadas perdidas, o outro homem tem aspirações diferentes. Como muitos da sua geração, Viêt tem esperança de encontrar melhor vida lá fora, no estrangeiro. Esses sonhos culminam num final desesperante, um murro no estômago que não vamos revelar pois todo o espetador merece experienciá-lo em todo o seu suplício. Fica só uma garantia – no meio do horror, desse infinito que nos consome, há espaço para alguma esperança. Mesmo que esse seja o fim de “Viet & Nam,” pelo menos a euforia marca presença e a alma flutua no infinito de um céu estrelado, uma galáxia de prazer, de amor queer, de companhia num mundo onde tantos outros definham sozinhos.
Queer Lisboa '24 | Viet & Nam, a Crítica
Movie title: Trong lòng dat
Date published: 27 de September de 2024
Duration: 129 min.
Director(s): Trương Minh Quý
Actor(s): Thanh Hai Pham, Duy Bao Dinh Dao, Thi Nga Nguyen, Viet Tung Le
Genre: Drama, Romance, 2024
-
Cláudio Alves - 90
-
Maggie Silva - 95
CONCLUSÃO:
Um sonho de liberdade no subsolo pode tornar-se num pesadelo de proporções históricas quando se sobe à superfície. “Viet & Nam” é uma meditação com trejeitos eróticos e muita melancolia, um reflexo de uma nação e um poema em sua honra. Trata-se de um dos grandes filmes de 2024, onde o romance proibido se emaranha com memórias coletivas de guerra e colonialismo.
O MELHOR: A fotografia a 16mm, tão capaz de fazer ressuscitar espíritos do além como de tornar uma mina claustrofóbica num paraíso de paixão queer, sem segredos ou mentiras, sem repressões. No breu, desfruta-se a liberdade plena.
O PIOR: Nada a apontar, a não ser as tonalidades deprimentes do segundo ato. Muita gente sairá assombrada do filme e, enquanto nós vemos isso como mais-valia, nem todos concordam.