The Funeral no MOTELx’23, a Crítica: Nunca um zombie sofreu tanto como neste filme de terror
Vimos, na íntegra, a selecção de obras que integrou a competição “Prémio Méliès d’argent – Melhor Longa Europeia”, uma das mais relevantes do MOTELx. Em 2023, tal conjunto de filmes incluiu o invulgar turco “The Funeral”. Nunca uma narrativa de “mortos-vivos” nos impressionou desta forma.
Exibido por duas vezes no MOTELx 2023 (12-18 setembro), com direito à presença do seu realizador (e argumentista) Orçun Behram (a assinalar aqui a marca do segundo filme, depois de “The Antenna“), e posterior sessão de perguntas e respostas, “The Funeral” (ou “Cenaze”, no original) é uma narrativa que se expande para lá do universo do género a que o poderíamos confinar à primeira vista.
Ahmet Rifat Sungar dá vida a Cemal, um condutor de uma carrinha funerária com uma rotina sombria e uma solidão e aborrecimento que ameaçam consumi-lo. Isto até ao dia em que lhe é dada uma tarefa secreta e ilícita. A belíssima jovem Zeynep (Cansu Türedi) foi assassinada de forma violenta e o seu corpo precisa de ser transportado, em segredo, até à sua família que vive na zona leste do país.
A ideia é que Cemal simplesmente transporte o corpo sem dar nas vistas, mas a meio da viagem acontece o improvável. Zeynep acorda, apesar do enorme ferimento de bala na sua cabeça e das violentas facadas cravadas na sua pele, consequência de uma matança cruel e ritualista. Apesar de não ter pulso e não conseguir falar, Zeynep não deixa de ser hipnótica e conquistar Cemal (verdadeiramente corpo e alma).
Claro que tem Zeynep tem uma paixão por carne humana, como qualquer bom zombie, o que dá origem às peripécias tenebrosas do filme. “The Funeral”, sempre envolto numa permanente neblina opressora, faz um trabalho excelente no que diz respeito a oscilar entre a comédia e o drama. Todavia, é tudo menos um filme de zombies tradicional, fugindo do cânone com punho firme.
Zeynep carrega a memória dos horrores da sua morte, e pela primeira vez (pelo menos que eu tenha visto), somos colocados na sua pele durante certos momentos do filme, e conseguimos sentir a sua dor, o seu medo, a forma como é assombrada e como vê o mundo. Zeynep respira ofegantemente, produzindo um som nunca antes ouvido num filme de mortos-vivos. Um som que perdura na memória, um som de pura mágoa.
“The Funeral” é um tratado acerca da necessidade de companheirismo, sobre as consequências nefastas da solidão profunda e é também uma proposta capaz de conjugar a cultura local e retrato de um país com o género fílmico que se propõe a trabalhar. Por tudo isso, esta foi uma jubilante estreia mundial para o MOTELx.
Todavia, o filme não é perfeito. Na marca dos 107 minutos (que não é sequer muito), consegue por vezes parecer demasiado longo e a sua resolução é, sem dúvida, a parte mais dececionante. O filme fecha com uma sequência de acção longa, filmada na noite cerrada (a qual o realizador reforçou ter sido bem difícil para toda a equipa).
Sem criticar o processo de criação em si, pois “The Funeral” sabe equilibrar com mestria a luz e escuridão, tanto em termos metafóricos como através da sua fotografia e localizações, a verdade é que o final nos deixa perdidos e sem grandes pontos de referência.
Sem revelar demasiado, quando Zeynep finalmente “é entregue” à sua família, as respostas que obtemos acerca da sua morte são genéricas e não-conclusivas. Nunca percebemos realmente o que é que se está a passar, se o evento relatado tem raízes no folklore turco, enfim. Na conversa que se seguiu à projeção, o realizador também não conseguiu garantir um enquadramento satisfatório para esta questão.
Fosse devidamente explicado o lado ritualista e religioso do filme, a obra “The Funeral” seria quase perfeita, ao conseguir estabelecer uma ponte entre crítica cultural e terror executado com cuidado e inovação. Todavia, Orçun Behram escolheu, para a sua resolução, estilo em vez de substância.
Feitas as contas, este “Cenaze” não deixa de ser uma proposta verdadeiramente empolgante e distinta quando falamos de “filmes de zombies”. O terror, esse, vai além do superficial e instala-se nos nossos ossos (e claro está, fere).
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Depois da estreia mundial em Lisboa, “The Funeral” ruma ao prestigiado Festival de Sitges (Festival de Cinema Fantástico da Catalunha) a 8 de outubro. Aqui ou na Catalunha, recomendamos descobrir esta proposta!
The Funeral, em análise
Movie title: The Funeral
Movie description: Cemal, um solitário motorista de carro funerário, vê-se forçado a transportar o corpo de uma jovem que foi assassinada para a casa dos seus pais. Durante a viagem, o corpo ganha vida e, quando a vê, Cemal apaixona-se pela bela mulher morta-viva.
Date published: 22 de September de 2023
Country: Turquia
Duration: 107'
Author: Orçun Behram
Director(s): Orçun Behram
Actor(s): Ahmet Rifat Şungar, Cansu Türedi
Genre: Terror, Drama
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Maggie Silva - 82
Conclusão
“The Funeral” é um filme de zombies capaz de escapar inteiramente dos lugares comuns expectáveis, suportado por um elenco dedicado e uma fotografia sombria e uma montagem também ela pouco usual.
Pros
- Abordagem radicalmente distinta da temática zombie;
- Uma mágoa presente, do início ao fim, não característica neste género;
- Uma atmosfera de terror genuinamente bem construída;
- Equilíbrio entre cómico e trágico astuto.
Cons
- Falta de respostas;
- Resolução aquém;
- Ritualismo e religião usados como motivos para avanço narrativo, mas mal explorados.