©Motelx/ Paris Zarcilla/ Chi Thai

MOTELX’23 | Paris Zarcilla expressa a revolta de Raging Grace em entrevista

Em competição na presente edição do MOTELx, que aconteceu em Lisboa entre 12 e 18 de setembro, na categoria de Prémio Méliès d’argent – Melhor Longa Europeia (vindo do RU), “Raging Grace” é um filme de terror invulgar, que combina vários géneros e que transporta a temática da experiência dos imigrantes para o campo do cinema de género. Falámos com Paris Zarcilla, o realizador que se estreia aqui com a sua primeira longa. 

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“Raging Grace” é um auspicioso arranque por parte do jovem realizador Paris Zarcilla, britânico de origem filipina, que cria um conceito curioso e distinto, um auto-intitulado coming-of-rage”. Esta longa metragem de estreia, premiada com o Narrative Grand Jury Award no afamado festival do Texas SXSW, coloca-nos no centro do lugar-comum da mansão assombrada, para desmontar o que tal implica. Aqui, são os vivos e não só os fantasmas que transportam as narrativas mais tenebrosas da casa.

A nossa protagonista é Joy (Max Eigenmann), uma imigrante filipina no Reino Unido que aceita trabalhos em várias casas, como empregada doméstica, embora seja na realidade uma tratadora qualificada. Em busca do sonho de um visto permanente no Reino Unido, Joy aceita um trabalho numa casa com um ambiente opressor, a trabalhar para Garrett, um aristocrata moribundo, e para a sua peculiar, condescendente e desdenhosa sobrinha Katherine (Leanne Best). Para tal, terá de esconder a sua filha carismática e brincalhona, Grace (Jaeden Paige Boadilla), a força que a move e a todas as suas decisões.

Paris Zarcilla - Director no Motelx 2023
No set de Raging Grace, obra em competição no MOTELX| ©Paris Zarcilla

Lentamente, a casa torna-se cada vez mais intimidante e os acontecimentos mais tenebrosos, à medida que estas duas figuras aristocráticas vão mostrando a sua verdadeira natureza. Devido ao seu desenvolvimento invulgar, “Raging Grace” tem-se vindo a destacar no circuito de festival e o MOTELx programou esta obra e convidou o seu realizador.

Encontrámo-lo, amistoso e interessado, revoltado e decidido, pronto para partilhar a sua história e o que a inspirou, no grande Cinema São Jorge…

NOTA: a conversa, por ocasião do MOTELX, foi gravada e traduzida do inglês, e por isso não corresponde a uma transcrição ipsis verbis (antes aproximada).

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MHD: Muito obrigada Paris, por falares connosco acerca deste teu filme. Muitos parabéns pela obra, uma primeira obra tão bem recebida no South by Southwest. Como foi esta experiência?

Paris Zarcilla: Foi uma experiência muito avassaladora, muito intensa, o South by Southwest foi basicamente um caos belo.

MHD: Durante a visualização do filme, achámos muito interessante a forma como decidiste abordar este tema. Este podia ter sido, por exemplo, um filme de realismo social. É curiosa a escolha do terror e dos seus códigos e tema como ferramenta para narrar esta história de imigração. Estávamos a pensar, porquê o terror? 

Paris Zarcilla: Boa pergunta…Infelizmente, muitas histórias e experiências de imigrantes são horrendas. O terror e o thriller são direções muito naturais para a condução do filme. Eu tento expressar o terror para lá das aparições. Tem antes a ver com colocar o holofote nas micro agressões e macro agressões que tantas pessoas de cor vivem, sem saber como falar acerca delas. Queria fazer algo que fundisse géneros (“a blended genre affair”).

It’s horrifying when it’s horrific. 

Paris Zarcilla: Há um elemento de thriller, mas quanto é engraçado, é hilariante, espero eu. Mas a comédia não parte da piada, parte do absurdo da situação.

SXSW Paris Zarcilla
O filme estreou nos EUA antes de chegar ao MOTELX | ©SXSW

MHD: Exato…tal como estes dois parentes, absurdos na forma como lutam pelo seu património. 

Paris Zarcilla: Sim, e o que tem piada, na realidade, é as pessoas que comentaram que a situação é absurda, que as coisas ouvidas são absurdas, ou que é demasiado óbvio (“on the nose”), mas sim. É absurdo! E é o que tantos de nós tivemos de experienciar.

MHD: A realidade é absurda, é sem dúvida algo a extrair do filme. Estávamos a ponderar a cena no sótão e como foi criada a cena em que Joy responde a Katherine, em jeito de monólogo. O quão catártica é e o quão bem entregue foi pela atriz, com uma performance muito forte da sua parte. Como foi gravar esta cena? Foram precisos muitos takes? Isto porque se trata de uma cena muito intensa. 

Paris Zarcilla: Sim. Então, eu lembro-me muito bem desse dia, porque nós não tínhamos muito tempo e precisava de ser convincente, precisava de ser um dos momentos que define o filme, e ela sabia-o. E isso significava levar a Max, que representa Joy, a libertar-se de quaisquer medos, de qualquer julgamento, de qualquer resistência que pudesse ter em relação a ser ou não suficientemente boa. E se esta é ou não uma boa performance. Que se “lixe” a performance. Isto é sobre quem está a ser representado no ecrã, a representação de uma voz que nunca é ouvida, é muitas vezes depreciada e não obtém representação. Não se sente vista. Esta é altura para dar voz a estas pessoas.

Chegar a esse lugar, para todos nós, foi muito intenso.

MHD: É possível sentir isso, a entrega é genuína.

Paris Zarcilla: Ela esteve otimamente.

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Legenda: Paris Zarcilla assinala a sua passagem pelo MOTELX.

MHD: Esteve mesmo. Queríamos também questionar acerca da música, a banda sonora é tão poderosa. Desde o início. Daí a questão, a produção da música acompanhou a produção do filme? Foi projetada na pós-produção? Como é que foi o processo?

Paris Zarcilla: Eu tive muita sorte em trabalhar com Jon Clarke, que foi tanto o compositor como o sonoplasta do filme. Ele entrou na equipa bastante cedo, antes de sequer começarmos a filmar. Tivemos muitas conversas. Eu dei-lhe uma tarefa impossível: como é que podemos fazer algo nunca antes feito? E que ainda assim soe familiar.

A música e o som acabaram por demorar mais tempo do que a escrita, a produção e a pós-produção em conjunto.

Foi muito importante termos isto devido ao nosso orçamento limitado. Porque o som faz grande parte do trabalho e compensa o que não conseguimos ver. O seu trabalho em “Ranging Grace”, com a música que compôs, eu acredito verdadeiramente que seja icónico. Ele usou um instrumento próprio das Filipinas, chamado Kulintang, umas bolas de bronze, que bates com um pau de madeira. Cria um som muito distinto, e que não podemos encontrar em nenhuma escala musical ocidental.

E, por isso, ele teve um grande desafio, ao tentar combinar este instrumento com o violino e o violoncelo. E ele fez um trabalho incrível, ao encontrar a união entre eles e também encontrar a dissonância quando necessário.

O MAKING OF DO SPOT DO MOTELX EM 2023

MHD: A paisagem sonora era definitivamente única, nunca ouvida. 

Paris Zarcilla: Isso é ótimo, fico feliz por ouvir isso. Nós falámos também de uma dança típica das Filipinas, o Tinikling. As pessoas utilizam duas varas de bambu muito longas e criam batidas rítmicas e dançam em torno destas. Ele usou esse som, basicamente, como uma batida de um coração para o filme. É tão representativo da Grace e da Joy, a forma como se unem. E também se voltarmos a pensar sobre o Kulintang, como disse, não faz parte das escalas ocidentais.

É muito representativo de como a Joy e a Grace não pertencem no filme a nenhum dos locais. Em cada nível, existe uma história a contar com a música e estou muito feliz com o produto final.


MHD: É excelente, parabéns! A casa assombrada é também muito importante para a construção deste motivo de terror. Embora este cliché esta invertido em “Raging Grace”. O décor é ótimo, e estávamos a questionar-nos em relação a este espaço. O interior e exterior foram filmados no mesmo sítio? 

Paris Zarcilla: Sim, foram. Vivemos em conjunto naquela casa durante 4 semanas. Foi muito intenso. Isto porque estávamos a filmar durante a pandemia, e por isso ninguém podia sair. E aquele era um local muito poderoso. Aqueles sítios são construídos, de forma intencional, para serem bastante intimidantes. E era, muito.

Eu, e a equipa…nunca encontrarias pessoas como nós, naquela casa, há 100 anos. E se encontrasses, estaríamos mortos. Viver nesse espaço, trabalhar nesse espaço, foi uma experiência muito intensa e influenciou muito a criação do filme.

MHD: Claro, estarem em comunhão, durante todo esse tempo, num espaço tão opressor. E acaba por também ter uma influência na própria narrativa, certo? 

Paris Zarcilla: Muito mesmo, estranhamento descobrimos que o nosso governo, um governo muito conservador, no Reino Unido, Boris Johnson utilizou aquela casa para férias. E isso deixou-nos repugnados (…) Mas essa descoberta acabou por ajudar com a energia da casa, a energia era muito pouco acolhedora, o que era necessário.

MHD: O filme já foi exibido nas Filipinas ou a comunidades de imigrantes? 

Paris Zarcilla: Ainda não. Nós vamos passar o filme em Manila, a estreia vai ser no QCinema. E vai ser a primeira vez que a comunidade local vai ver o filme, o que me deixa muito nervoso. Mas muitos filipinos, filipinos americanos e canadianos que viram o filme tiveram uma reação profunda. Tanto em termos de mágoa como catarse. Sentiram-se vistos, sentiram que o seu trauma e desconforto era finalmente compreendido e só isso é o prémio por si só.

MHD: Tal sente-se, quando estamos a ver o filme, as micro agressões de que já falamos, da incapacidade de pronunciar nomes de lugares a equiparar países asiáticos a africanos. Serve como alívio de comédia mas também se sente incrivelmente real…

Paris Zarcilla: A personagem Katherine baseia-se numa amálgama de pessoas que conheci, que a minha mãe começou, que inúmeras comunidades das Filipinas conheceram. Ela baseia-se parcialmente na Claire Danes.

MHD: A sério? 

Paris Zarcilla: Sim! Podes ver na internet, ela disse uma coisa sobre as Filipinas. Foi horrível, e eu tentei colocá-lo no filme e queria que a Katherine o dissesse. Contudo, era tão ridículo, não fazia sentido, não parecia real.

MHD: Demasiado idiota para o guião?

Paris Zarcilla: Aí está, mas é real e isso é…bem, uma experiência.


MHD: Foi anunciado que está a trabalhar no sentido de fazer a partir daqui, deste filme exibido no MOTELX, uma trilogia. 

Paris Zarcilla: Sim, os filmes não estão ligados mas trata-se de uma trilogia da raiva. Cada filme explora colonialismo e poder branco nos sistemas e o próximo será o “Domestic”. É a longa-metragem que estou a escrever neste momento e estou literalmente nas últimas 10 páginas. É mais um filme que combina géneros, é a história de um assalto improvável e sobre um casal na Londres dos anos 1990. Estes gerem um café e no fim de semana fazem missões de resgate para ajudar trabalhadores domésticos a escapar dos seus patrões abusivos. Baseia-se na história real dos meus pais.

MHD: Então contar esta história também vai ser bastante catártico? 

Paris Zarcilla: Eu acho que sim. Eu tenho de admitir, eu esperava que “Raging Grace” trouxesse a catarse necessária para mim. E não. Apenas me inspirou a continuar em frente. Pensava mesmo que esta seria a minha única obra sobre estes temas mas agora sinto um sentido de responsabilidade. É algo que eu quero dizer, fazer.

MHD: Faz todo o sentido, pois tem uma influência clara nas pessoas. E certamente faz sentido no Reino Unido do Brexit, uma experiência que não pode ter sido fácil para as comunidades imigrantes. Onde neste período, se podia ouvir em autocarros públicos insultos como “Isto é a Inglaterra, fala inglês” a serem proferidos…

Paris Zarcilla: É repugnante, para além da vergonha de ser britânico que tantos de nós sentimos ao sair da União. E todo o país está a sofrer, famílias, negócios. E quem sabe se o Reino Unido vai recuperar do mal que fez a si próprio. É fácil culpar as pessoas, mas 51% das pessoas que votaram para sair…mentiram-lhes. Foram enganados por um “governo de m*rda” (e podes citar-me!).

MHD: Tecnicamente não é bem uma citação direta, porque ainda vamos traduzir a conversa para português. Mas muito obrigada pela disponibilidade, por falar connosco e parabéns por fazer algo culturalmente relevante. 

Paris Zarcilla: Muito obrigado, foi um prazer.

“Raging Grace”, com estreia portuguesa no MOTELx, encontrou já uma “casa” no nosso país. A nova plataforma de terror e fantástico “Film Twist” (onde até existe uma secção dedicada a obras que passaram pelo MOTELX). 

MOTELX | O SPOT DA EDIÇÃO DE 2023 (12-18 SETEMBRO)



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