Elena em The Vampire Diaries (©The CW/HBO Portugal)

Uma Reapreciação de Vampire Diaries (Parte I)

The Vampire Diaries sempre foi melhor do que prometia ou, dizem alguns, merecia ser. É tempo de explicar porquê, por episódios. Nossos, não da série, claro.

Voltemos atrás no tempo. Façamos como muitos que preencheram a insustentável leveza dos dias de confinamento regressando ao passado e consumindo séries antigas por inteiro. Rebobinemos até ao momento, na primeira década do milénio, em que vampiros empestavam a cultura pop, competindo com magos e elfos pela nossa afeição ou para nosso desespero. Até ao capítulo daquele documentário desta época que é o Boyhood, de Richard Linklater, onde em 2009, numa conversa entre párias intelectuais, Jill conta a Mason que as amigas gozam com ela por estar a ler pela terceira vez o To Kill a Mockingbird. De facto, ela deve ser a única rapariga da escola que não gosta da série Twilight. Nesse mesmo ano e neste ambiente pouco auspicioso para qualquer criatura dotada de caninos salientes, estreava The Vampire Diaries.

O panorama estava saturado de vampiros progressivamente humanizados, das angustiadas criações de Anne Rice em Interview With The Vampire ou do moralmente atormentado Nick de Forever Knight ao enjoativo Edward Cullen. A revisão pós-moderna do género cruzara inventivamente o terror e a comédia romântica juvenil em filmes como The Lost Boys ou Near Dark (ambos de 1987) e gerara personagens híbridas como Blade e Buffy, na fronteira entre o macabro e o super-herói. Gestos de paródia que contrastavam com as mais sinceras adaptações cinematográficas de clássicos literários como Bram Stoker’s Dracula, de Francis Ford Coppola (1992) ou Let the Right One In, de Tomas Alfredson (2008). Desde Buffy the Vampire Slayer, de Joss Whedon (1997-2003) que a programação do novo século proliferava em séries televisivas como Blood Ties (2007), Being Human (2008-13) ou True Blood (2008-14). Não só era fácil como muito razoável desprezar The Vampire Diaries como mais outro romance entre uma aluna de liceu e um vampiro centenário. Produzida pela CW, rede de televisão especializada em programação juvenil, adaptando uma tetralogia de romances para adolescentes (justiça seja feita, publicados quase quinze anos antes da saga de Stephanie Meyers e precedendo mesmo a versão cinematográfica de Buffy the Vampire Slayer), demorando um pouco a descolar-se desse original medíocre de L. J. Smith até encontrar a própria identidade, The Vampire Diaries parecia ser o Twilight na televisão e, por isso, mais daquele mesmo que ninguém podia levar a sério.

Uma Reapreciação de The Vampire Diaries
Stefan em “Bad Moon Rising” (©The CW/HBO Portugal)

Ninguém suspeitava, nem os primeiros episódios prometiam, que a série viesse a conquistar um público fervoroso[1], chegar às oito temporadas e, pouco a pouco, ultrapassar o estatuto de fenómeno de culto até granjear o favor crítico, uma vez terminada em 2017. Nesse ano, a IndieWire atribuiu-lhe o quarto lugar na sua lista “The 24 Most Important Vampire TV Shows Ever”, concedendo-lhe o lugar de legítima herdeira da série Buffy the Vampire Slayer, que obviamente aterrou em primeiro lugar.[2] Em 2019, alargado o escopo do subgénero da ficção de vampiros para o género de terror, a Rolling Stone incluiu The Vampire Diaries na sua lista dos “30 Best Horror TV Shows of All Time”, valorizando a crueza da acção, por vezes surpreendentemente violenta para uma série de adolescentes, a criação de uma mitologia sobrenatural complexa e a qualidade da representação do trio principal de atores.[3]

Estes são três dos méritos normalmente atribuídos à série pela maioria dos críticos hoje em dia: a coragem de não embolar as presas aos seus vampiros ou esconder a realidade da morte; a construção de um imaginário capaz de gerar não uma mas três séries televisivas, com The Originals e Legacies a desenvolver e continuar o cosmos desenhado por The Vampire Diaries; o sucesso do elenco de atores, na altura quase todos desconhecidos, em dar vida convincente e comovente tanto aos humanos afligidos pela dor da morte como aos monstros angustiados pela responsabilidade por ela; o frenesim do enredo, com a sua infatigável precipitação de eventos e peripécias a fazer fluir a acção e a terminar cada episódio num momento de suspense, deixando o espectador sem fôlego; o sentido de humor, a autoparódia do género e da cultura pop em geral a assumir à partida aquele ridículo de que o programa seria inevitavelmente acusado.

The Vampire Diaries | Damon ouve Taylor Swift

Não faltam de facto momentos de sátira cultural, com a série a ironizar, antes de mais, consigo própria. Quando Elena se cruza com Stefan no cemitério, fugida dos elementos naturais controlados por Damon, os argumentistas não resistem a gozar com certos excessos do material de origem e o momento aterrorizador converte-se em farsa assim que Elena explica a sua falta de tacto: “It’s the fog, it’s making me… foggy, and then, back there, there was this bird and it was all very Hitchcook for a second… that is the bird movie, right?”[4] Mas também com o resto da cultura pop circundante, desde a incapacidade das raparigas de resistirem tanto ao “style” e “good looks” de Damon como à sua “unflinching ability to listen to Taylor Swift” ou a crítica sardónica que este faz a um dos livros da saga Twilight. Ele não brilha com o sol, porque vive “in the real world where vampires burn in the sun”. Não há nada de especial nesta “Bella girl”, Edward “is so whipped” e ele sente saudades de Anne Rice: “She was so on it”. Já este livro “has it all wrong”.[5]

A todas estas qualidades habitualmente mencionadas pelos críticos outras ainda se poderiam acrescentar que fazem de The Vampire Diaries um objecto pop de certo modo único no género. Composto por um arco épico que argumentistas e atores conseguem tornar credível, por força de um delicado equilíbrio entre terror e melodrama, fantasia e realismo; concretizado em efeitos especiais discretos e estilizados, longe do caricato e dificilmente datáveis; acompanhado de uma banda sonora coerente e de bom gosto dentro da lógica pop que abraça, sempre vinda a propósito, com as letras das canções a verbalizar na perfeição a narrativa; este é um objecto insubstituível por qualquer outra coisa assim que se pára para pensar nisso e se começa a compará-lo com os seus supostos semelhantes. Não faltam razões, portanto, que expliquem o entusiasmo despertado pela série em tanta gente e não apenas entre as faixas etárias mais baixas ou um público exclusivamente feminino. Não falta sequer um gradual reconhecimento do seu valor artístico, mesmo se sempre relutante e aquém do merecido, como é usual no contexto da ficção de género ou de temática adolescente. Ainda assim, julgo que os motivos de maior interesse da série continuam a escapar à percepção crítica.

The Vampire Diaries | Efeitos especiais

O primeiro é muitas vezes referido, mas quase sempre de passagem ou previamente a qualquer consideração do valor artístico da série, talvez por resquícios formalistas que impedem a visão dos géneros como técnicas adquiridas historicamente no interior de uma prática, passíveis de, com base em previsões, serem manipulados de modo a comunicarem certos sentidos. É sabido que The Vampire Diaries é um híbrido complexo que acaba por se tornar sui generis. Por um lado complica a construção do enredo, como confessava o produtor executivo Kevin Williamson à Deadline, em 2010: “Do ponto de vista da escrita, é um programa muito difícil de arquitectar em termos de enredo. O elemento de género, o elemento juvenil, as diversões de liceu combinadas com as questões de vida ou morte numa base semanal. E criar toda esta mitologia. Assim, têm-se capítulos individuais que parecem suficientemente episódicos. Mas ao mesmo tempo está-se a levar uma série no seu todo. É um programa muito árduo de construir. Acho-o muito desafiador.”[6] Por outro lado, o carácter híbrido explica também a dificuldade em substituí-lo por qualquer outra coisa, no momento em que se lhe sente a falta e se desejaria que houvesse mais do mesmo.

O segundo motivo é tão dado por adquirido que ninguém se lembra de se sentir intrigado, mas basta dar um passo atrás para que surja toda a estranheza do facto. Quando alguém pensa em The Vampire Diaries a primeira figura que lhe vem à memória é a de Damon Salvatore e são muitos os argumentos que se podem apresentar para defender ser ele a personagem principal da série[7]. Contudo, no original literário, mesmo sendo a terceira personagem mais importante, Damon não é o protagonista e “didn’t get the girl”. É claro que qualquer adaptação comporta sempre uma grande margem de liberdade criativa, mas esta é uma divergência tão grande e, por isso, tão inusitada que nos deveria interrogar. O terceiro motivo prende-se com o anterior e consiste na personagem de Damon Salvatore ela própria e nas razões por detrás da afeição que suscita, imaginando que tal afeição possa ser explicada exaustivamente.

Reapreciação de Vampire Diaries
Damon e Stefan em “The Return” (©The CW/HBO Portugal)

Por fim, uma palavra mais autorizada precisa de ser dita acerca daquilo que os fãs há muito constataram. Kevin Williamson e Julie Plec criaram um dos triângulos amorosos mais icónicos do imaginário cultural recente, bem para lá do esboçado no original de L. J. Smith e superando mesmo a complexa relação, tecida pela dupla anos antes em Dawson’s Creek, entre Dawson Leery, Joey Potter e Pacey Witter. Provavelmente por causa da história de confronto com a morte e luta pela redenção que o triângulo comporta para lá do já esperado, mas pelos vistos nada previsível, romance. Conseguiu não só pôr todos os fãs a discutir acaloradamente até hoje sobre com qual dos dois irmãos Elena deveria ter ficado, mas criou paradoxalmente, ao mesmo tempo, uma das relações entre irmãos mais estimadas. Fora apenas um mero romance e o triângulo não teria conseguido unir os fãs na sua afeição pelo laço fraterno ao mesmo tempo que os dividia entre os outros dois eixos.

É verdade que Twilight, Being Human e True Blood vieram primeiro, e terão seguramente as suas virtudes (uns mais do que outros), mas talvez só The Vampire Diaries mereça ficar para a história como paradigma da fase romântica do vampiro humanizado. Afirmação audaz que importa sustentar, o que faremos nos próximos episódios. Neles desenvolvermos cada um destes motivos com mais vagar, incluiremos a série no contexto do gótico e tiraremos algumas conclusões acerca dos critérios de identidade de personagens e da noção muitas vezes duvidosa de “mundo ficcional”.

Notas

[1] Philiana Ng, “‘Vampire Diaries’ Hits 100 Episodes: Ian Somerhalder, Nina Dobrev and Execs Tell All”, The Hollywood Reporter, 23 de Janeiro de 2014: “Qualquer conversa de Diaries ser apenas o clone televisivo de Twilight amainou assim que estreou a 10 de Setembro de 2009 com um público de 5.7 milhões e se tornou o  programa da CW mais visto entre os jovens espectadores, com uma invejável média de idade de 34.5.  Enquanto as audiências da quinta temporada atingem a média de 3.8 milhões, o seu alcance nas redes sociais é muito abrangente, com quase 18 milhões de fãs no Facebook e 420,000 de seguidores no Twitter (mais de 17 milhões, quando se conta com os seguidores do elenco e dos produtores). É a quarta série socialmente mais difundida, logo depois de American Idol, The Voice e The X Factor, according to Trendrr, e é vista em mais de 180 países.”

[2] Liz Shannon Miller, “The 24 Most Important Vampire TV Shows Ever, Ranked”, IndieWire, 10 de Março de 2017.

[3] Sean T. Collins, “30 Best Horror TV Shows of All Time”, Rolling Stone, 22 de Outubro de 2019.

[4] “Pilot”, temporada 1, episódio 1.

[5] “Family Ties”, temporada 1, episódio 5.

[6] Diane Hathman, “Fang TV: ‘Vampire Diaries’ Showrunners Kevin Williamson & Julie Plec”, Deadline, de 26 de Abril de 2010.

[7] Hilary Elizabeth, “The Vampire Diaries: Why Damon Was Actually the Show’s Main Character”, in Screenrant, 30 de Dezembro de 2020.

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