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Tori e Lokita, em análise

Os jovens Pablo Schils e Joely Mbundu protagonizam “Tori e Lokita”, a mais recente obra dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne!

Em França e no Festival de Cannes de 2022, a dupla de cineastas belgas (mais conhecidos no mundo do cinema por Irmãos Dardenne, ou seja, Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne) recebeu mais um prémio na sua já longa carreira, atribuído desta vez por ocasião do septuagésimo quinto aniversário do certame a TORI ET LOKITA (TORI E LOKITA), 2022, o filme que agora se estreia em Portugal pela mão da distribuidora OUTSIDER FILMS. De certo modo, esta distinção numa categoria única e condicionada por um número redondo, por um lado, pode ser vista como um pretexto para uma valorização especial da sua filmografia e, por outro, serve para destacar o seu posicionamento em prol de um cinema socialmente empenhado que desde sempre foi a imagem de marca dos realizadores nas suas diversas participações em Cannes, presença caracterizada pela abordagem crítica de um conjunto de práticas quotidianas prevalecentes no lado B da sociedade contemporânea. Neste contexto, dando sempre particular atenção ao universo da juventude e da adolescência. Sim, disse mais um prémio porque, anteriormente, para além de duas Palmas de Ouro, uma para ROSETTA, 2009, e outra para L’ENFANT (A CRIANÇA), 2005, Luc e Jean-Pierre Dardenne continuaram a ser reconhecidos pelos sucessivos júris de Cannes que a intervalos relativamente curtos os valorizou, a saber, com o prémio do Melhor Argumento para LE SILENCE DE LORNA (O SILÊNCIO DE LORNA), 2008, e com o Grande Prémio do Júri para LE GAMIN AU VELO (O MIÚDO DA BICICLETA), 2011. Todos estes prémios, que se juntam a muitos obtidos noutras paragens, fazem deles um dos poucos casos de reincidência numa competição oficial que prima pela exigência no interior do que se pode considerar um dos principais, senão mesmo o principal encontro de cinematografias do mundo, independentemente dos resultados anuais do palmarés.

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Tori e Lokita
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ONDE ESTÁ A LIBERDADE…?

Dito isto, o que se pode esperar deste TORI E LOKITA? O argumento aponta para um drama surdo que muitos sabem existir mas que poucos se dão ao cuidado de denunciar, pelo menos de forma eficaz e radical, para que não se perpetuem situações que fazem lembrar outras eras nas quais os povos oriundos de fora da Europa, sem esquecer a vergonhosa escravatura que persistiu ao longo de anos no Sul dos Estados Unidos e noutras paragens do continente americano, eram escravizados ou remetidos para segundo plano na escala social. Logo a abrir vemos a jovem Lokita (interpretada por Joely Mbundu) a ser interrogada por assistentes sociais que na Bélgica estão encarregados de julgar e decidir sobre a entrada de imigrantes de origem africana e não só. Lokita vai respondendo ao que lhe perguntam, com respostas que parecem na maior parte dos casos estudadas para produzir um determinado efeito. Insiste sobretudo no ponto em que se dá como irmã de Tori (prestação notável de Pablo Schils), um miúdo que não se fica nem brinca em serviço, um autêntico fura-vidas sobrevivente de muitas “guerras” de raça e classe e que, nem ele sabe como, já conseguiu a entrada no país. Naqueles primeiros minutos ainda não os conhecemos bem, mas pouco depois iremos descobrir que, por mais que faça e diga, Lokita não consegue convencer os seus interlocutores da necessidade imperiosa de receber um visto de modo a poder fazer a sua vida normal num país que ela supunha mais livre por comparação ao seu país natal, o Benim. Na verdade, a acção decorre na capital da União Europeia e num continente onde se reúne o Parlamento Europeu, cujos deputados andam sempre com a palavra democracia na boca, a que adicionam de forma implícita a velha fórmula Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Mas quando o assunto passa para o nível do acolhimento daqueles que abandonam o seu primitivo espaço vital para integrarem a referida democracia avançada (muitas vezes para alcançarem uma suposta liberdade que lhes era negada no ponto de partida da sua peregrinação e quase sempre motivados pelo sonho de alcançarem segurança e conforto sustentados numa vida melhor), a palavra que as autoridades mais repetem, ou melhor, o conceito que sobrepõem ao que nasceu na Revolução Francesa, confunde democracia com burocracia. E, enquanto a decisão favorável não se materializa, Lokita e Tori prestam-se a uma série de biscates num restaurante manhoso, onde o cozinheiro Betim (Alban Ukaj) os obriga a esquemas de pura delinquência, fazendo deles correios de droga para clientes certos, a horas certas, a preços certos e em dias certos. Tudo por uns parcos euros e um ou outro pedaço de comida. Para além do mais, Lokita não se consegue libertar da sua condição de menina mas já mulher. Facto que a empurra para a prestação de favores sexuais que, sem qualquer entusiasmo, concede ao chefe de cozinha e membro proeminente de um gangue mafioso que emprega refugiados e imigrantes fragilizados pela sua situação dúbia numa plantação ilegal de cannabis, algures num armazém de contornos sinistros situado nos arredores da grande cidade. Mas a dupla de realizadores não faz concessões ao politicamente correcto e não expõe as ameaças a Tori, e sobretudo a Lokita, no quadro sempre redutor de um grupo de brancos malvados contra os desgraçados dos negros, recusando um preto e branco ficcional que seria uma mentira maior do que a grave ocultação dos crimes cometidos pela prepotência dos que na Europa se julgam com a faca e o queijo na mão e podem assim obrigar outros a mendigar as migalhas do que sobra ou ninguém quer aceitar. Não, a realização não esconde que no mundo cão que gira ao redor dos mais vulneráveis não existem só questões de raça ou classe. Em grande parte, o percurso assombrado de Lokita deve-se ao facto de ela estar compelida a entregar nos meandros marginais uma certa quantia a um mafioso africano de falinhas mansas, mas muito pouco recomendável, responsável pela sua vinda para a Europa. Por fim, por incrível que pareça, sentia-se forçada a um envio sistemático de dinheiro para a sua mãe que no Benim reclama apoio para si e para os filhos que com ela ficaram. Lokita vive entre a espada e a parede, quando consegue escapar do Inferno dá um passo em frente no abismo e, quando finalmente se vê encerrada na fábrica clandestina de marijuana, erva, liamba, maconha, o que lhe quiserem chamar, não só sente o isolamento do mundo que mal ou bem percorria nas suas fastidiosas deslocações diárias, como perde o contacto com Tori. Entretanto, os dias passam e o rapazinho de mil e um expedientes acaba por encontrá-la num labirinto de alçapões e paredes falsas. Mas aquilo que parecia ser o princípio da libertação de Lokita vai acabar por se revelar o derradeiro fôlego de uma relação fraterna de amizade e solidariedade que de facto não estava escrita nas estrelas, pelo menos nas da União Europeia.

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Tori e Lokita
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Neste conto moderno sobre as ilusões da Terra Prometida, os Irmãos Dardenne usam uma imagética que procura nas cores fortes e nos ambientes fechados a verosimilhança para uma narrativa construída na sombra dos espectros, dos conflitos e dos medos que atormentam a sociedade ocidental onde, no fundo, os que nela nasceram, ao desviarem o olhar das situações extremas, lançam os que procuram asilo ou simples permissão de residência para um beco sem saída. Muitos cidadãos não dão conta do corpo e da alma dos que com eles se cruzam na rua, os sem papéis, os que não possuem garantias de normalização num sistema que devia olhar por igual mesmo aquilo ou aqueles que parecem diferentes ou, porque não, se apresentam mesmo diferentes.

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Tori e Lokita
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Projecto humanista por excelência, onde não está posta de parte a componente política, TORI E LOKITA pode não ser o melhor exemplo da arte de Luc e Jean-Pierre Dardenne, mas constitui seguramente um filme que merece ser visto numa altura em que a identidade europeia se encontra numa encruzilhada cujos contornos futuros por agora são muito duvidosos. Muito provavelmente os que desejam um melhor futuro, seja aqui ou em qualquer parte deste nosso planeta, depois de se verem livres dos corruptos e dos corruptores, necessitam de convencer os burocratas que restarem a imprimir-lhes no passaporte um carimbo que signifique uma resposta a uma pergunta que ciclicamente vem ao de cima: “Onde Está a Liberdade?”

Tori e Lokita, em análise
Tori e Lokita Poster

Movie title: Tori et Lokita

Director(s): Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne

Actor(s): Pablo Schils, Joely Mbundu, Alban Ukaj, Tijmen Govaerts, Charlotte De Bruyne, Nadège Ouedraogo, Marc Zinga

Genre: Drama, 2022, 88min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: Bela prestação dos jovens actores, os estreantes Pablo Schils no papel de Tori e Joely Mbundu no de Lokita.

Direcção de Fotografia de Benoît Dervaux, segura e compatível com o projecto idealizado por Luc e Jean-Pierre Dardenne. Banda sonora musical onde se pode ouvir uma composição italiana, que remete para memórias do passado do rapazinho e da adolescente, a passagem por um campo de refugiados onde ambos se conheceram e que no seu luminoso lirismo produz um curioso e eficaz contraponto com o lado negro das vidas dos irmãos que o não são, ambos forçados ao serviço e vítimas de esquemas mafiosos.

Estilo seco, montagem de grande economia, isenta de “gorduras” desnecessárias mas onde não falta emoção, opção que comprova a coerência dos autores que mais uma vez evitam os efeitos melodramáticos ou o apelo fácil das boas intenções com que, por vezes, alguns filmes nos apresentam os diferentes rostos da natureza humana.

Prémio Especial do 75º Aniversário do Festival de Cannes, 2022.

CONTRA: Nada.

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