Uma Vida à Sua Frente, em análise
Sophia Loren oferece uma das melhores interpretações de 2020, num filme igualmente inteligente onde se celebra a diversidade e a tolerância.
Como temos vindo a fazer nas últimas semanas com as críticas de “Notícias do Mundo” ou “Malcom & Marie“, continuamos a partilhar convosco a nossa opinião sobre alguns dos filmes mais comentados na temporada de prémios 2020 / 2021 e que poderão nomeados ou potenciais vencedores de estatuetas douradas. Desta vez, analisamos “Uma Vida à Sua Frente”, de Edoardo Ponti, uma das obras mais humanas e sensíveis de 2020 protagonizada pela maior estrela do cinema italiano: Sophia Loren.
A atriz atualmente com 86 anos tem uma carreira invejável que a coloca entre a realeza não só do cinema italiano, como do cinema mundial. Loren trabalhou com Marcello Mastroianni, Vittorio De Sica, Clark Gable, Marlon Brando, Cary Grant, Anthony Perkins, Richard Burton, Anthony Quinn, entre outros e foi dirigida por alguns dos mais importantes realizadores. Vittorio De Sica foi quem lhe deu a liberdade e bem-estar para interpretar as suas personagens, mas também participou em filmes de Dino Risi, Charlie Chaplin, Sidney Lumet, Robert Altman, Mario Monicelli sem esquecer a colaboração com a sua amiga e conterrânea Lina Wertmüller. Sophia Loren também já venceu inúmeros prémios como o Óscar de Melhor Atriz (a primeira num filme de língua não inglesa), um Óscar Honorário de Carreira, cinco Globos de Ouro, um BAFTA e 10 prémios David di Donatello. Não tem mais nada a provar, a ninguém.
A Caminho dos Óscares 2021: Uma Vida à Sua Frente
O regresso de Sophia Loren com “Uma Vida à Sua Frente” foi um dos momentos cinematográficos mais comentados dos últimos tempos, sobretudo por dar oportunidade à atriz de voltar a protagonizar uma longa-metragem, lançada internacionalmente por intermédio da maior plataforma de streaming: a Netflix. Apesar de muitos considerarem um regresso desde a sua interpretação em “Nove” (2009), o musical com elenco de luxo de Rob Marshall, Sophia Loren já não dava vida a uma personagem principal desde 2014, precisamente na curta-metragem “Voce Umana”, realizada por Edoardo Ponti. O filho mais novo da atriz quis dar um pequeno presente à sua mãe e oferecer-lhe o protagonismo em “Uma Vida à Sua Frente“.
“La Vita Davanti a Sé”, no título italiano original não é um remake do filme vencedor do Óscar da Academia “Madame Rosa – A Vida à Sua Frente” (1977) de Moshé Mizrahi, mas uma nova adaptação da obra literária do mesmo nome de Romain Gary, publicada em 1975 sob o pseudónimo Émile Ajar. O livro rapidamente tornou-se num dos maiores sucessos literários deste autor, com milhões de exemplares vendidos em todo o mundo e traduzido em mais de 20 línguas, cuja edição portuguesa foi lançada pela Livros do Brasil. Além de passar da França para a Itália e mais precisamente para a cidade portuária de Bari (na atualidade um ponto de entrada de muitos refugiados na Europa), a trama de “Uma Vida à Sua Frente” de Edoardo Ponti dá um toque de ar fresco à narrativa, pela forma como as suas personagens enquadram-se aos nossos dias e aos seus públicos. Mas antes de falar disso, temos que falar da presença impactante de Sofia Villani Scicolone, mais conhecida pelo seu nome Sophia Loren.
Loren interpreta uma idosa ex-prostituta e sobrevivente do Holocausto que acolhe filhos das prostitutas locais, de forma temporária ou permanente. Se quisermos, a sua Madame Rosa serve de mãe ou avó afetiva, em suma, de vínculo materno às crianças que dificilmente conseguem ter o amor das suas mães biológicas. Rosa é uma mulher que dá a mão a quem mais precisa, embora sempre com um pouco de desconfiança e severidade, porque as crianças exigem sempre mais e mais e podem ser autênticas dores de cabeça. Apesar de aparentar arrogante, Rosa está mais preocupada com os outros do que consigo mesma.
É incrível a escolha de Sophia Loren para interpretar esta mulher forte, que se soube erguer dos problemas, com a garra e a convicção de que a vida precisa de ser enfrentada deste modo. Na verdade, antes de ser a estrela que conhecemos, Sophia Loren lidou em criança com a miséria e a fome, em virtude da II Guerra Mundial, que afetou imenso as famílias do sul de Itália, donde a atriz é natural. Curiosamente na maioria das suas personagens como Sofia de “Pão, Amor e…” (Dino Risi, 1955), Agnese de “Sob o Signo de Vénus” (Dino Risi, 1955), ou Lucia de “Começou em Nápoles” (Melville Shavelson, 1960) havia uma certa subtileza da atriz em lidar com a pobreza, não só através da irresistível elegância como desfilava pelas ruas, como por ser astuta, sem jamais se rebaixar à sociedade antiquada e patriarcal do seu tempo.
“Uma Vida à Sua Frente” faz-nos revisitar algumas das personagens mais familiares de Sophia Loren e permite consolidar uma mulher cuja dureza da sua rotina transparece nos seus gestos mais singelos. Sophia Loren e a sua Madame Rosa sabem bem que significado têm a dor e o sofrimento e embora o corpo possa estar enrugado e fragilizado, a mente e a vontade de viver não. Percebemos pouco a pouco que Madame Rosa não cede às emoções e a sua sabedoria fá-la aceitar melhor aquilo que passou no passado.
Quem já viu o filme, ou ao menos viu o trailer, sabe que Rosa é uma sobrevivente do Holocausto, mais precisamente do campo de concentração de Auschwitz, onde passou a infância. Mesmo assim, “Uma Vida à Sua Frente” não tem nenhum flashback que nos leva até esse terrível espaço e para um dos episódios mais horrendos da história da Humanidade. A memória neste filme é um jogo que se faz presente através das mais pequenas coisas, de uma fotografia, de um ramo de mimosas artificiais ou através de uma fotografia. Madame Rosa tem momentos em que o trauma se apodera de si em que fica completamente paralisada perante o mundo. Podem parecer episódios de mera ficção, mas estão relacionadas com episódios de amnésia ou fuga dissociativa, uma doença psicológica rara que afeta uma minoria de pessoas no mundo.
Temos portanto um filme que lança alguns alertas aos espectadores. Por um lado, um testamento relacionado com a memória do Holocausto, que não deverá ser esquecida pelas gerações mais novas, e um alerta associado às doenças psicológicas e à forma como estamos a lidar com os nossos idosos, pessoas com histórias por contar e com experiências para partilhar com os mais novos. É certo que Edoardo Ponti realiza um filme com o toque melodramático e comercial, onde as lágrimas surgem com muita facilidade para os mais sensíveis, mas são por vezes os filmes deste domínio que revelam marcas maiores. Em todos os minutos de “Uma Vida à Sua Frente” ficamos à espera de um “Wow Moment”, de um ponto alto na interpretação de Sophia Loren e que nunca acontece. Digamos que há nenhum espectáculo dramático, mas não nos poderemos deixar de sucumbir ao magnetismo de Sophia Loren. Somos deslumbrados pela sua aparição e pela maneira como o olhar reluzente e sincero de Rosa enfrenta a vida, aquela que lhe resta.
Ao lado de Sophia Loren, temos Ibrahima Gueye o jovem ator revelação de 2020 que dá vida a Momo, um menino senegalês muçulmano cuja vida não tem sido fácil desde o primeiro respiro. O pai assassinou a sua mãe que se recusou a prostituir, e o miúdo deambula pelas ruas de Bari como traficante de droga. Momo vive aos cuidados de um médico (Renato Carpentieri), que pede à Madame Rosa para cuidar dele durante os meses de verão. Inicialmente reticentes, acabam por aprender a lidar um com o outro. O miúdo irrequieto é afinal uma criança com dificuldades de estabelecer relações com os outros, pela falta de afeto e de amor sentidos. Com Rosa irá entender a fragilidade da sua vida, ao mesmo tempo, que amadurecerá. Momo passa a entender a velhice mais do que um estereótipo, um dos tantos em que ele próprio foi inserido. Momo e Rosa, miúdo e idosa, permitem-nos entender que os indivíduos marginalizados da nossa sociedade ainda não foram completamente aceitas na nossa sociedade.
Ao lidar com a mente de Momo, “Uma Vida à Sua Frente” acaba por seguir por concepções estéticas demasiado arriscadas, com a introdução desnecessária de efeitos visuais CGI, mas as interpretações sustentam este pequeno desequilíbrio narrativo.
Vale ainda a pena destacar como “Uma Vida à Sua Frente” de Edoardo Ponti é um filme italiano perfeitamente alinhado na nova política da Netflix e a sua narrativa abraça a multiplicidade de sujeitos com que nos enfrentamos nos nossos dias. Encontramos aqui uma plataforma de streaming que utiliza os seus filmes para trespassar a diversidade que deverá ser celebrada em todos os cantos do mundo e por sua vez, em todos os enredos. Foi um dos poucos filmes que vimos nos últimos tempos que junta tantas caras de diferentes núcleos sociais : dois atores de meia-idade (Sophia Loren e Renato Carpentieri), um miúdo africano (Ibrahima Gueye) e outro muçulmano (Iosif Diego Pirvu), uma mulher transexual (a brilhante atriz espanhola Abril Zamora) e um homem de meia-idade iraniano (Babak Karimi conhecido de filmes como “O Vendedor” de Asghar Fahardi). Fá-lo tudo sem exageros.
A pureza das personagens de “Uma Vida à Sua Frente” deixamo-nos sem palavras, embora sejam poucos os espectadores que notarão esta diversidade subtil e a necessidade inerente de tolerância para os dias em que vivemos.
A acompanhar tudo isto temos uma intensa banda sonora de Gabriel Yared – oscarizado por “O Paciente Inglês” (1996) -, que integra a lista de finalistas para os Óscares, e uma canção original final que nos levará ao choro. Escrita por Diane Warren e interpretada por Laura Pausini, “Io sì” (“Eu sim”, na tradução literal para português) é uma balada simples e convincente cuja letra nos confirma a cumplicidade existente entre as personagens principais. É uma canção sobre os momentos em que tudo começa a vacilar, mas em que está sempre alguém pronto a ajudar, mesmo nas circunstâncias mais difíceis.
“Uma Vida à Sua Frente” está atualmente disponível no catálogo da Netflix Portugal. O filme de 1977 não está atualmente em disponível em nenhuma plataforma de streaming, nem em edições de DVD.
Para saberes se “Uma Vida à Sua Frente” acaba nomeado ao Óscar de Melhor Atriz e em outras tantas categorias fica atento à revelação dos nomeados às estatuetas douradas que a MHD dará em primeira mão no dia 15 de março.
Uma Vida à Sua Frente, em análise
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Virgílio Jesus - 80
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José Vieira Mendes - 50
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Maggie Silva - 83
CONCLUSÃO
“Uma Vida à Sua Frente” é um dos filmes mais importantes de 2020, não só por mostrar como não há idade para protagonizar um filme no grande ecrã nos dias de hoje, como pela maneira humilde como lida com figuras marginalizadas e ditas problemáticas na sociedade contemporânea.
Pros
As interpretações de Sophia Loren e Ibrahima Gueye sustentam esta narrativa. Ambos dominam cada segundo e levam-nos às lágrimas em demasiados esforços interpretativos.
Cons
O filme quase sucumbe aos seus interesses neo-realistas com a apresentação de um animal em CGI.