Veneza 77: Ar Fresco apesar das Máscaras

Muitos dos companheiros da crítica infelizmente não vieram este ano, outros já não cobrem o Festival há uns anos e as caras vão-se renovando, sendo curiosamente os jornalistas portugueses os mais assíduos e permanentes há várias edições.

Mesmo repetindo a ideia de outras crónicas sobre este Festival, uma das maiores virtudes desta Veneza 77, em tempos de coronavírus, foi noção alargada de espaço e tempo. Literalmente ter espaço e tempo para muito mais coisas durante o Festival. Não foi apenas o espaço físico que tivemos necessariamente de respeitar nas áreas limitadas pelo Festival ou entre as cadeiras e as filas nas sala de cinema ou à utilização permanente das máscaras. O facto de estarem menos ‘festivaleiros’, entre a crítica e público deu-nos também e acima de tudo, espaço mental, e muito mais tempo — muito graças ao eficiente sistema digital de reserva de bilhetes, com antecedência, e que espero que de alguma maneira se mantenha para o futuro e seja adoptado por outros festivais. Não era necessário ir para as longas filas e chegava-se às sessões sem confusão, pouco antes das sessões começarem, ao contrário de outros anos em que pelo menos é preciso chegar com meia-hora de avanço (com alguns espertos a passar-nos à frente), para ocupar aquele lugar que já temos uma relação há muitos anos. No entanto, existiu uma maior atenção para os filmes em geral e sem precedentes, que muitas vezes era cobertos rapidamente pelo ruído mediático da passadeira vermelha, das estrelas americanas, dos filmes de Hollywood potenciais candidatos aos Óscares, das obras de grandes mestres, dos inúmeros eventos, retrospectivas, a acontecerem ao mesmo tempo. E até de uma selecção oficial por vezes muito grande, marcada por discussões inúteis e velhas polémicas com a habitual equilíbrio de géneros e as questões raciais. Enfim, só a negação disto tudo nesta heróica edição representou um elemento e um sinal fundamental de renovação da Mostra de Veneza, um Festival que acompanho quase há 20 anos.

Festival de Veneza
José Vieira Mendes©

Muitos dos companheiros da crítica infelizmente não vieram este ano, outros já não cobrem o Festival há uns anos e as caras vão-se renovando, sendo curiosamente os jornalistas portugueses os mais assíduos e permanentes há várias edições. Este ano também estávamos poucos jornalistas, naquele que é o mais agradável e descontraído dos três grandes festivais, que permite por vezes e ao final da tarde uma pausa para beber um copo ou comer um sorvete, na esplanada junto à praia. Passo imediatamente dos guilty pleasures e das memórias de outros festivais e regresso à edição deste ano que permitiu ainda que houvesse muito mais sessões por cada filme, mais possibilidades de os ver e analisar, novos olhares, mesmo na competição oficial, com novos cineastas-autores (a maioria mesmo de muitos autores) e a presença de uma nova geração de realizadores, sem preconceitos que não se importa de fazer filmes para grandes audiências como Chloé Zhao.

Festival de Veneza
José Vieira Mendes©

A ausência forçada das grandes estrelas americanas, por causa das grandes majors estabelecerem regras nas produções, impedindo que talentos e filmes viajassem para a Europa, — algo que não impediu por exemplo que Cate Blanchett, mostrasse o seu brilho como presidente do júri — favoreceu de certa maneira os ‘independentes’. Os ‘independentes americanos’, como ‘Nomadland’, de Chloé Zhao, — Leão de Ouro 2020 e curiosamente produzido pela Searchlight, agora da Disney — mas não só estes, mas outros filmes e talentos de várias partes do mundo. Os jornalistas e críticos de cinema viram-se quase ‘forçados’ a fazer descobertas, curiosamente a maioria delas muito agradáveis e promissoras. É o caso por exemplo de ‘Listen’, da realizadora portuguesa Ana Rocha de Sousa, Leão do Futuro e Prémio Especial do Júri da Orizzonti, uma das secções que por vocação dar espaço a filmes de estreia e novos talentos. Mesmo assim, seria muito difícil em circunstâncias normais, o filme de uma portuguesa desconhecida, praticamente do mundo da crítica e dos programadores entrar nesta secção do Festival.

Festival de Veneza
José Vieira Mendes©

Portanto a mudança geracional é mais do que nunca essencial na maioria dos festivais que se tem fechado num circuito e numa espécie de elite de programadores-directores artísticos, que tendem a apresentar sempre os cineastas que idolatram. O cinema e as selecções oficiais não podem ser feitas apenas por mestres reverenciados ou consagrados nos festivais pelos prémios e legitimados pela crítica mais acomodada. Se os jovens cineastas serão ou não famosos, descobriremos nos próximos anos, mas neste momento, nesta edição absolutamente excepcional (em todos os sentidos e apesar das limitações sanitárias) Veneza 77 abriu novas janelas de exibição e de crítica, deixando uma lufada de ar fresco circular livremente, apesar das máscaras. Estaremos de volta, esperançosamente para o próximo ano ou em breve para encher as salas e de outros festivais de cinema que já estão no calendário, independentemente da tal segunda vaga ou não da pandemia. Mas vamos par já valorizar o espaço mental e as oportunidades conquistadas nesta edição de Veneza 77. We will meet again!

José Vieira Mendes

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