Welcome to Chechnya © HBO

Welcome to Chechnya | Quando os efeitos especiais salvam vidas

“Welcome to Chechnya” pode tornar-se no primeiro documentário nomeado para o Óscar de Melhores Efeitos Visuais. Vem descobrir a sua arte. 

Na MHD somos fã de efeitos visuais, quem não? Desde a nossa primeira publicação em papel, até aos vários artigos sobre o facto da digitalização no cinema estar na ordem do dia, quisemos levar até ti o imaginário criado por alguns dos melhores filmes da nossa era. Em 2009, “Avatar“, de James Cameron confirmou que novos mundos poderiam ser criados através do computador. 10 anos depois, Martin Scorsese disse que era possível rejuvenescer Robert DeNiro, Al Pacino e Joe Pesci, embora fossem precisos mais de 100 milhões de dólares, investidos pela Netflix. Ambos os filmes fizeram com que muitos especialistas afirmassem a força e as possibilidades incríveis oferecidas pelo CGI, acabando mesmo por dominar nos prémios entregues pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Este ano, ninguém rejuvenesce, mas na lista de finalistas ao Óscar de Melhores Efeitos Visuais (poderás consultar os restantes filmes aqui) encontramos pela primeira vez um documentário. “Welcome to Chechnya” não é um documentário comum, sendo mais uma prova do extraordinário papel ativista e cívico que poderá ter este género de narrativas. Tudo porque é um documentário com vários efeitos especiais, criados para proteger identidades e, em sua consequência, salvar vidas humanas. Só pelas intenções humanitárias, os efeitos especiais de “Welcome to Chechnya” devem ser celebrados e merecem uma mão cheia de prémios.

Abaixo poderás assistir ao trailer desta obra realizada pelo jornalista e realizador norte-americano David France, vencedor do Prémio Amnistia Internacional no Festival de Berlim em 2020.

Em “Welcome to Chechnya”, David France conta os horrores sofridos pelos membros da comunidade LGBTQ+ na Chechénia, república autónoma da Rússia com mais de 1,3 milhões de habitantes. Ali, todas as pessoas que se assumam gays, lésbicas, queer, transexuais, etc. são continuamente alvo de vergonhosas humilhações quer no seio familiar como nas ruas. Aliás, muitas delas, segundo os relatos do filme e vídeos apreendidos por associações ativistas do país, acabam por ser assassinadas em plena praça pública. “Welcome to Chechnya” é uma exposição realista, às vezes cruel, mas sempre necessária dos factos, onde o espectador está lado a lado com os pesadelos experienciados por vários indivíduos à procura de aceitação.

A ‘caça LGBTQ’ como é conhecida, começou na Chechénia em 2017 e, desde então, muitos morreram, muitos fugiram e outros desapareceram sem deixar rasto, incluindo figuras públicas. No documentários seguimos vários cidadãos, que procuram denunciar estes acontecimentos, ao mesmo tempo, que tentam alertar as comunidades internacionais, sobretudo os Estados Unidos da América. O diretor da comunidade LGBT da Rússia David Isteev junta assim uma equipa na luta para que todos os homossexuais, lésbicas e transexuais consigam ter os mesmos direitos que os restantes cidadãos. Para o realizador do filme David France há uma oportunidade de dar voz à comunidade sufocada durante muito tempo pela desumanidade absolutista dos governantes russos. Mas então como entram os efeitos visuais em “Welcome to Chechnya”?

Com um orçamento restrito de apenas 2,2 milhões de dólares – o mesmo utilizado num filme indie -, o documentário esconde literalmente os rostos de 23 testemunhas, vítimas, ativistas, seus familiares e amigos, cobrindo-os com rostos de outras pessoas, voluntários que se associaram ao projeto. Embora a maioria dos espectadores pense o contrário, o resultado obtido nunca chega a gerar estranheza, pela ilusão que daí advém.

No total, praticamente 1 hora de duração do filme depende da técnica de inteligência artificial designada “deepfake technology“, na linha do face swap que poderemos encontrar em algumas aplicações móveis e até redes sociais nos dias de hoje. O processo corresponde a uma recriação das expressões faciais e das falas, e costumava ser utilizada para brincar com os discursos políticos de Donald Trump, Barack Obama e Vladimir Putin. Os efeitos do documentário em específico não têm valor humorístico ou perigoso, e servem como um escudo necessário àqueles que não podem dar a cara por medo de represálias e perseguições.

Welcome to Chechnya
O anonimato das testemunhas é protegido com recurso à deepfake technology em “Welcome to Chechnya” © HBO

Segundo a entrevista que David France deu à publicação The Hollywood Reporter, publicada por Carolyn Giardina, esta foi a maneira mais justa para proteger os mais vulneráveis. No entanto, com o desfoco dos rostos David France não queria prescindir das emoções. Temos realmente uma situação curiosa na história do cinema em que os voluntários de um filme têm de entender as emoções dos ‘atores reais’ e trabalhar nesse sentido. Os voluntários foram recrutados pelo próprio de David France por intermédio de organizações LGBTQ ou do Instagram, e que se quiseram aliar à causa nobre do projeto.

Queríamos expressar as emoções físicas das pessoas, que nos permitiram contar as suas histórias, que queriam que o mundo ouvisse as suas histórias, e queríamos fazer isso de uma forma que não privasse a sua humanidade.  A abordagem capturou as subtilezas das expressões faciais, necessárias para permitir aos espectadores sentirem empatia com os sujeitos, cujas vozes também foram alteradas. […] Isso vai mudar a produção de documentários. Não só nos permitirá contar essas histórias de uma forma maneira emocionalmente mais impactante, mas ajudar-nos-á a criar uma nova ferramenta […] acho que as pessoas já estão realmente empolgadas com isto.” David France em entrevista ao THR.

Para o processo, David France trabalhou com Ryan Laney, um nome inconfundível no que toca a efeitos visuais, cujo currículo inclui filmes consagrados como “Harry Potter e a Câmara dos Segredos” (Chris Columbus, 2002), “O Dia Depois de Amanhã” (Roland Emmerich, 2004) e “Homem-Aranha 3” (Sam Raimi, 2007).

“Há uma transferência de estilo, para transferir o estilo do rosto de uma pessoa para o conteúdo do rosto de outra. É um pouco como uma prótese em que o novo rosto é pintado sobre o antigo, então é 10o% o movimento da pessoa original, não estamos a fabricar nada novo. Capturámos digitalmente os rostos daqueles pessoas em todos os tipos de ambientes de luz. Estamos em força no trabalho sobre os direitos humanos.

Curiosamente “Welcome to Chechnya” tem o potencial de conseguir uma nomeação para o Óscar de Melhores Efeitos Visuais, embora tenha que lutar contra uma concorrência de peso, onde encontramos títulos como “Tenet”, de Christopher Nolan ou “O Céu da Meia-Noite”, de George Clooney. No entanto, aqui os efeitos visuais não têm apenas uma necessidade de entreter o espectador, de enganá-lo ou de levá-los para novos mundos.

Os efeitos visuais de “Welcome to Chechnya” trabalham em sincronia com os atores intervenientes da trama e isso cortam-nos a respiração. Não maior crime contra a humanidade como o crime contra a nossa identidade, o de não podermos ser nós próprios. Há um momento no filme em que um dos refugiados consegue denunciar aquilo que passou numa conferência de imprensa. Aí, os efeitos visuais terão que ceder pela primeira vez à imagem real. Temos a imagem de um homem corajoso que quer deixar de ter medo, quer denunciar um genocídio.

Welcome to Chechnya
Do lado direito a voluntária cujo rosto serve de escudo ao da testemunha do filme © HBO

De qualquer forma, os efeitos de “Welcome to Chechnya” podem mudar para sempre o modo como cinema jornalístico é feito, mesmo que o terreno que esteja a trabalhar seja algo frágil. Apesar disso, o filme tem sido bem aceite por diferentes organismos LGBTQ, e tem conseguido chamar à atenção para a sua mensagem.

Infelizmente, como a grande maioria dos filmes da temporada de prémios 2020/2021, “Welcome to Chechnya” ainda não estreou em Portugal – tratando-se de uma produção da HBO provavelmente chegará à plataforma de streaming HBO Portugal em breve. Fica atento às novidades sobre este documentário que promete continuar a fazer história e a marcar muitos dos espectadores.

Podes ainda assistir abaixo ao especial sobre “Welcome to Chechnya” criado pelo canal de Youtube Witness para a sua rubrica “Deepfakery” e onde o David France explica mais sobre o processo.

Acompanha a MHD para descobrires se “Welcome to Chechnya” é um dos filmes nomeados para o Óscar de Melhores Efeitos Visuais no próximo dia 15.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *