Retrospetiva William E. Jones estreou filmes inéditos em Portugal neste Queer Lisboa
William E. Jones é um prolífico cineasta norte-americano que trabalha o arquivo com grande destreza e capacidade narrativa, desenterrando o que aparentemente julgávamos ter ficado escondido. Na marca da sua 28.ª edição, o Queer Lisboa dedicou-lhe a secção retrospectiva.
Em 2024, o Queer Lisboa honrou, através da sua retrospectiva, o trabalho do realizador William E. Jones que, tendo nascido no Midwest nos anos 60, escapou para Los Angeles onde se tem vindo a dedicar a um trabalho multidisciplinar e que casa várias artes que vão do vídeo à pintura. O seu trabalho com o arquivo é particularmente relevante, isto porque vários momentos da cultura queer do século passado foram por si recuperados – como vemos nesta sessão com particular clareza em “Fall Into Ruin“, uma obra de investigação que não deixa de se munir de certa emotividade.
As temáticas exploradas pelo cineasta são vastas – englobam uma indústria pornográfica exploratória, a identidade queer numa pequena povoação (a partir da sua própria experiência), a violência policial, a Guerra do Vietname, as experiências pouco éticas do governo dos EUA durante a Guerra Fria, e muito mais, num caleidoscópio de elementos estudados com particular inteligência.
Entre curtas, médias-metragens e longas, 22 filmes foram exibidos no âmbito deste ciclo, que incluiu também uma carta branca ao realizador.
Fall into Ruin de 2017 (30′)
C0m “Fall Into Ruin”, William E. Jones faz o que lhe é mais característico e o distingue entre contadores de histórias a partir de materiais pré-existentes. Interliga, com subtileza, humor e talento narrativo, a sua vida e memórias e acontecimentos mais macros; acontecimentos esses que podem bem ter sido esquecidos por muitos, por quase todos, mas não por Jones e pela sua narração.
Esta pequena grande curta de 30 minutos de duração tem poderio e exuberância, e vê-la poderá suscitar facilmente um sentimento de tristeza e perda – em particular à medida que nos aproximamos da conclusão do filme. Aqui, confrontamo-nos com uma beleza quase idílica que já não existe no mundo, a de um espaço físico notável, e com o esquecimento de alguém que Jones acredita merecer um lugar muito maior na História da Arte. Uma vez terminado este “Fall Into Ruin”, é difícil que este ensaio sobre arte, onde a autobiografia e a biografia se encontram, não convença qualquer um a pensar o mesmo.
Aqui se narra a história fascinante de Alexander Iolas (1907-1987), uma figura grega, um negociador de arte que foi essencial para o trabalho dos surrealistas e que montou galerias de Atenas e Milão a Nova Iorque. William E. Jones conheceu-o na adolescência e ganhou visão de mundo a partir do relacionamento com esta figura fora da norma, que o levou a conhecer Warhol e a apreciar Arte.
Uma vez que Iolas morreu, por complicações ligadas à sida, a sua coleção de arte pessoal, o seu belo museu em casa, desapareceu. O espólio foi removido, e o imóvel nunca virou o local de preservação da arte e o museu público que devia ter sido. A casa começou a ser vandalizada e vandalizada. Mas eis que nos registos de Jones podemos vê-la em todo o seu esplendor, fotografada nos anos 80.
O cineasta é muito inteligente, nunca intercalando as fotografias do período áureo da casa-museu de Alexander Iolas com as do seu declínio ingrato. Antes, só no fim temos acesso à beleza e harmonia que em tempos foi possível testemunhar neste espaço. Só no final sabemos o quanto Iolas fez pelos maiores nomes do surrealismo (e outros), maximizando assim uma reação emotiva e também uma de revolta.
Youngstown/ Steel Town de 2016 (6′)
Um exercício rápido de montagem neste Queer Lisboa, ainda assim repleto de vibrante significação, “Youngstown/ Steel Town” vê o cineasta em destaque na retrospetiva do Queer Lisboa 28 a examinar as imagens da decadência da sua área residencial (ou antes, do conjunto de estados que a compõem).
Natural do Ohio, William E. Jones reflete acerca da falência das cidades industriais, sendo este um dos estados que compõem o “Rust Belt“, uma área que em tempos foi determinante no que diz respeito ao setor secundário. Com a produção de bens de manufactura, em território dos EUA, em queda livre, o “então” e “agora” é contraposto através da utilização do splitscreen. Os resultados, esses, mostram uma clara desolação.
Por outro lado, este estudo sobre a cidade de onde o realizador provém é realizado a partir da utilização de um filme de propaganda do período da Segunda Grande Guerra – “Steel Town” (de 1944). Consideramos assim uma outra dimensão essencial do trabalho de Jones: não existe aqui uma mera recuperação de material de arquivo esbatido pelo tempo, há criação de sentido a partir deste encontro, e agora que a vibrante indústria dá agora lugar a espaços vazios e a uma realidade que podemos classificar quase como fantasmagórica.
Massillon de 1991(70′)
“Massillon” é a ‘pièce de résistance’, o grande trunfo e a obra documental mais longa desta sessão na Cinemateca. O filme de William E. Jones é uma exploração muito franca da sua própria experiência como jovem que cresceu numa pequena localidade do Ohio. Uma particularmente inteligente, pois a biografia vai muito além do mero caráter auto-referencial, vendo-se associada à própria exploração do porquê da homofobia existir.
O autor apresenta-nos a sua juventude, os seus traumas (em doloroso detalhe) e as suas experiências mais essenciais de formação de identidade. Fá-lo com total confiança, sem reservas e com um virtuosismo manifesto. Apresenta-nos também uma evolução natural do seu raciocínio – um olhar para o passado e para a realidade integral para compreender a sua própria experiência. Quantos de nós não precisaríamos de operar também este mesmo exercício libertador?
Muitas são as questões colocadas pelo cineasta, munido de uma forte bibliografia que o acompanha neste filme-ensaio. De que forma é a sexualidade utilizada como uma arma para controlar a população? Quando é que o discurso político se começou a apropriar de termos homofóbicos para se fazer valer? Desengane-se quem possa pensar que Jones, com a sua narração em voice-over perspicaz e incisiva, cria teorias da conspiração.
Não, da sua infância à sua vida em Los Angeles, o cineasta apresenta-nos um relato muito detalhado de movimentos que fazem parte do tecido societário – interligando a sua experiência com elementos históricos, sócio-políticos, antropológicos.
Assim, “Massillon”, de William E. Jones, é um genuíno texto académico filmado – firme, não convencional e, surpreendentemente, para uma obra toda ela feita de imagens de arquivo não muito empolgantes, emocionante. Sim, esta é uma longa-metragem de 70 minutos, que a certa altura nos mostra linhas de comboio durante bastante tempo, e eis que conseguimos daqui extrair genuína e dilacerante emoção. É o quão bom contador de histórias William E. Jones consegue ser.
O Queer Lisboa despediu-se desta 28.ª edição, mas o Queer Porto acontece até dia 12 de outubro. Estarás por lá?