71º Festival de Cannes: Godard Video-Conferencista

Jean-Luc Godard não esteve em Cannes, mas “Le Livre d’Image”, foi comentado pelo cineasta de casa, numa surpreendente video-conferência de imprensa, que já fez história no Festival de Cannes.

Para além dessas filas enormes e da passagem de um filme “Le Livre d’Image”, de todo um objecto que não podia ser mais contra a corrente, e que foi visto mais por obrigação do que por prazer, afinal Jean-Luc Godard, acabou por estar em Cannes, não em presença física mas em mais uma das suas curiosas encenações e manipulações estéticas das imagens. Na conferência de imprensa desta manhã, em que era esperada apenas equipa do filme, acabou por haver uma agradável e surpreendente encenação: Godard de casa, participou em direto numa videoconferência de imprensa e até respondeu com bom humor aos jornalistas que se colocarem em fila, esperando a sua vez, para lhe fazer uma pergunta. E a coisa até correu muito bem — tendo em conta a sua habitual irascibilidade — pois respondeu à maioria delas e às outras esquivou-se com inteligência e diplomacia.

Jean-Luc Godard
Ao mestre Jean-Luc Godard ninguém pode apontar o dedo.

Sobre a situação política do mundo árabe, em 2017, aparentemente o grande tema do “Le Livre d’Image”, disse: “Eles sabem ocupar-se de si mesmos e não precisam dos outros. Inventaram a escrita. Não precisam de lições. E talvez até haja mais amor no mundo árabe que no Ocidente. Os filmes não servem apenas para mostrar o que se faz, mas aquilo que não se faz e espero que o meu seja um dos últimos. É preciso pensar com as mãos, não apenas com a cabeça.”

Jean-Luc Godard
De casa na Suíça, directamente para a sala de imprensa de Cannes.

A propósito de outra pergunta sobre o famoso aforismo ‘godardiano’, de que ‘o cinema é uma história com princípio, meio e fim, mas não necessariamente por esta ordem’: “Disse isso há muito tempo para contrariar quem defendia o contrário. Fiz em tempos uma equação que não teve grande êxito sobre o que é um filme: X+3=1. É uma equação básica, que qualquer criança entende. Quando construímos uma imagem, seja ela do passado, presente ou futuro, para encontrarmos uma terceira (e, essa sim, começa a ser uma verdadeira imagem), é necessário suprimirmos duas. X+3=1. Esta é a chave do cinema. Mas quando dizemos ‘a chave’, convém não nos esquecermos da fechadura…”

Jean-Luc Godard
Um bombardeamento de imagens saturadas, deformadas, descolorizadas ou interrompidas.

Sobre o tão propagado “fim do cinema”, disse: “Só posso falar por mim. O filme que viram tem uma longa história que começou há três ou quatro anos, foi abandonando pelo produtor francês (a Wild Bunch) e socorrido depois por uma pequena associação suíça, representada por Fabrice Aragno. Aceitei o convite de Cannes, sobretudo com forma de promover essa associação e conseguirem uns trocos. A estreia deste filme está reservada em particular para França, mais alguns territórios e salas de arte e ensaio. A generalidade delas até não pode reproduzir-lhe o som original. O filme vai ser projetado de tempos a tempos e nas décadas seguintes, em pequenas salas que fazem cultura, teatro ou circo e que estejam à margem do comercial, como uma recente manifestação que aconteceu em França. O importante é que seja alegre, reflexivo, instrutivo, etc, e acima de tudo, que não seja assistido como uma missa.”

“Le Livre d’Image” é efectivamente um bombardeamento de imagens saturadas, deformadas, descolorizadas ou bruscamente interrompidas, “bloqueadas de qualquer sedução” como escreveu o historiador Bernard Eisenschitz numa carta escrita a Jean-Luc Godard e publicada num pequeno opúsculo, que é para guardar, e que funciona como uma espécie de notas de imprensa. E depois “Le Livre d’Image” é um regresso a “Film socialisme” ou “Adieu au langange”, mas demonstrando uma maior revolta de Godard, em relação ao mundo em guerra e com toda a razão.

“Le Livre d’Image” é constituído por cinco capítulos que organizam ou desorganizam a sua proposta de filme: “Remakes”, “Les soirées de Saint-Petersburg” (inspiração no livro de Joseph de Maistre), “Ces fleurs entre les rails, dans le rencontre des voyages”, “L’esprit des lois” e “La région centrale”, aqueles que me lembram, mas ainda devem ficar algumas pontas que me passaram ao lado e me mexi na cadeira. Mas de facto, Godard continua a pilhar o que lhe aparece à frente da história à política, da literatura à pintura, da música ao cinema, da televisão ao youtube. “Le Livre d’Image” é um completo bombardeio de imagens às vezes um pouco criptografadas, mas fascinantes e sempre claro de uma espantosa actualidade.

José Vieira Mendes (em Cannes)

Lê Também:   71º Festival de Cannes: em #MeToo, Netflix, Selfies e as Sessões de Imprensa
Lê Também:   71º Festival de Cannes: Todos lo saben
Lê Também:   71º Festival de Cannes (2): A Música e a Liberdade
Lê Também:   71º Festival de Cannes (4): Fábulas Humanistas
Lê Também:   15º IndieLisboa | Person to Person, em análise
Lê Também:   71º Festival de Cannes (5): Amores Loucos
Lê Também:   71º Festival de Cannes: O meu nome é “Diamantino”.
Lê Também:   71º Festival de Cannes (7): Mulheres, Actrizes e o Circo
Lê Também:   71º Festival de Cannes: Duarte Coimbra, com “Amor, Avenidas Novas”
Lê Também:   71º Festival de Cannes (8): Koreeda, Lee e Von Trier
Lê Também:   71º Festival de Cannes (8): A Luta do Povo, Salaviza e Brisé
Lê Também:   71º Festival de Cannes: “Diamantino” vencedor da Semana da Crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *