Todos lo Saben

71º Festival de Cannes: Todos lo saben

O casal Penelope Cruz e Javier Bardem reencontram-se em “Todos Lo saben” com o director iraniano Asghar Farhadi a rodar em língua espanhola um thriller familiar, num registo entre Almodóvar e Agatha Christie.

De alguma forma divertido, imbuído da cor, da alegria e da música espanhola, “Todos Lo saben”, o segundo filme de Asghar Farhadi realizado fora do Irão — depois de “O Passado”, produzido em França —, mesmo não sendo um dos seus melhores, tem já todas as portas abertas em todo o mundo, após esta sua estreia mundial em Competição e como filme de abertura do Festival de Cannes 2018. Todos vão querer vê-lo, independentemente das reacções aqui em Cannes,— que não são aliás tão elogiosas, como nos seus filmes anteriores — e da crítica ser boa ou má.

Todos lo saben

Ironicamente intitulado “Everybody Knows” (“Todos Lo saben”), o filme começa com a alegria de um casamento no interior vinícola da Espanha e acaba por se transformar numa angustiante história de um sequestro, num cenário onde estão envolvidos todos os segredos obscuros de uma família tradicional e falida, na região vinícola um pouco ao norte de Madrid.

Utilizando um extraordinário elenco de língua espanhola, onde se incluí além do casal Cruz/Bardem, o grande actor argentino Ricardo Darín, o realizador iraniano Asghar Farhadi com a mestria que lhe é habitual que vai da direcção de actores à realização — escreveu o argumento em farsi e teve dois tradutores na rodagem — combina questões de amor, ressentimento, classe, dinheiro e laços familiares, numa narrativa ascendente — não tão ascendente como se esperava na segunda parte do filme — repleta de dúvidas, acusações, insinuações, segredos, intrigas e superstições e outros ingredientes fundamentais para criar um drama de suspense e investigação policial.

Todos lo saben

Na verdade, o filme começa com um olhar minuciosamente artístico e sublime de luminosidade, sobre as intricadas engrenagens de um velho relógio quebrado, da torre de uma igreja, onde tocam os sinos da aldeia. Em pouco tempo somos apresentados a uma série de personagens de uma extensa e alegre família ‘manchega’, — fazem lembrar as personagens de “Voltar”, de Pedro Almodóvar: Laura (Penélope Cruz) chega à aldeia onde cresceu, com seus dois filhos, Irene (Carla Campra), uma azougada adolescente de 16 anos, e o pequeno Diego, para assistir ao casamento da sua irmã Ana (Inma Cuesta), com Joan (Roger Casamajor).

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Laura, mora na Argentina, mas não tem ido muito a Espanha, desde que se casou com Alejandro (Ricardo Darín), há cerca de 20 anos. Infelizmente Alejandro, por razões de trabalho não pôde viajar com a família, como vemos logo de início, através da chamada com imagem. Mariana (Elvira Minguez), a irmã mais velha de Laura, dirige um pequeno hotel com seu marido Fernando (Eduard Fernandez). Rocio (Sara Salamo), a filha destes, vive com os pais e com sua filha pequena, já que iniciou uma separação do marido que devido à crise, parece ter imigrado para a Alemanha.

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Neste ambiente de reuniões felizes e de afogar as saudades e onde todos parecem convergir para a festa e para a comemoração da boda, está Paco (Javier Bardem), um velho (mais que) amigo da infância de Laura, que administra uma vinícola local, e uma vinha que emprega muitas famílias, além de apanhadores sazonais e temporários. Como Paco obteve esse vinhedo parece ser um dos pontos de conflito e intriga para as pessoas da região. Paco e a sua atraente mulher, Bea (Barbara Lennie), gerem a quinta ao mesmo tempo que esta leciona numa escola da vizinhança, para jovens delinquentes e, parecem claramente apaixonados um pelo outro.

Logo que chega, a jovem Irene parece gostar de Filipe, o sobrinho de Paco, que a deixa guiar a sua motorizada em alta velocidade pelas estradas de terra do campo. O único senão, no que parece ser uma adolescência feliz e normal é a asma de Irene que requer medicação constante.

Todos lo saben

Quando a boda está em pleno começa a chover torrencialmente e a eletricidade e a luz vai-se abaixo. Não se sentindo bem na pista de dança – provavelmente devido ao jet lag, ao álcool e aos cigarros – Irene vai para a cama. Naquela mesma noite, o incidente, que ocupa toda a restante acção do filme, começa quando uma mensagem de texto que chega ao telemóvel de Laura, dizendo que a sua filha foi sequestrada. As dúvidas levanta-se será que Irene fugiu? Há um caso de sequestro precedente nas proximidades que terminou mal, que dá força ao motivo e ao aviso na mensagem, para não se informar a polícia do rapto.

Daí para a frente um tom de mal-estar e desconfiança razoavelmente  bem sustentado assume o controle da acção e das atitudes familiares. Como é que Laura vai dar a notícia a Alejandro? Como é que a família e os amigos tão próximos vão lidar com um pedido de resgate e conseguir uma quantia em dinheiro que ninguém parece reunir? Sabendo que os problemas de saúde de Irene se podem tornar mortais.

Vivemos numa época em que os meta-dados são roubados com a maior das facilidades nas redes informáticas. No entanto, todas as revelações problemáticas e relações interpessoais que surgem  em “Todos Lo sabem” resultam de pessoas que vão dizendo coisas umas às outras, às vezes de uma forma indiscreta, directa e até brutal. Todo o elenco está muito bem, sobretudo destaque para dinâmica e química muito especial entre Bardem (Paco) e Lennie (Bea), e com Penélope ali mesmo à frente de ambos; e sobretudo por uma presença fortíssima de Ricardo Darín — aliás uma constante neste actor argentino que é actualmente um dos melhores do mundo, mesmo comparado no universo do cinema de Hollywood —, cujo o seu Alejandro tem uma crença incomum no poder da adversidade e subscreve a noção mística de que tudo acontece por uma razão. Nada acontece por acaso e são os desígnios de Deus. A iluminação do veterano realizador de fotografia José Luis Alcaine contribui igualmente para um sentido de lugar construído à medida que vão surgindo os bocados de informação incómoda e explosiva, que há muito parecem enterrados e esquecidos, para justificar os comportamentos das personagens.

Asghar Fahardi mergulhou de cabeça neste tenso conto europeu — ou quase num ‘quem matou?’ ou neste caso ‘quem sequestrou?’, à boa maneira de Agatha Christie — passado em Espanha, onde apesar de tudo se sente um rastro residual do seu Irão, da linguagem e gestualidade farsi. Uma família espanhola de barbudos – a começar pelo patriarca — que bem poderiam ser todos iranianos, e a  partir da qual Farhadi consegue construir um drama agradável de se ver, repleto de motivações plausíveis e intrigas complexas. Embora por vezes demasiado fáceis de seguir e com uma imprevisibilidade algo absurda e pouco convincente no que diz respeito à natural e esperada reviravolta. No entanto, fica-nos um bom registo de que a natureza humana é igual em todo o lado e de que uma história pelo menos bem contada e realizada é sempre um prazer universal.

JVM

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