Vale de Amor, em análise

Isabelle Huppert e Gérard Depardieu interpretam um par de atores enlutados em Vale de Amor do cineasta francês Guillaume Nicloux.

vale de amor valley of love

Isabelle Huppert começou a sua carreira cinematográfica na primeira metade dos anos 70 e, chegado o fim da década, ela já era uma das atrizes mais respeitadas de França, uma vencedora do prémio de Melhor Atriz de Cannes e a nova musa de Claude Chabrol. A década seguinte viu a atriz cristalizar e aperfeiçoar a sua persona cinematográfica, com alguns solavancos pelo caminho como é o caso de alguns deselegantemente lúridos projetos tingidos de erotismo sáfico. Com Une affaire de femmes de 1988, nasceu a Isabelle Huppert que conhecemos hoje em dia, uma atriz de presença glacial, dotada de uma assustadora capacidade para tecer complexas tapeçarias psicológicas sem nunca sacrificar a sua presença abrasiva ou a sua teimosa falta de expressividade histriónica. Daí, até aos dias de hoje, ela tem apenas sublinhado a sua grandeza e mestria, tanto no cinema como no teatro, de tal forma que, ainda este ano, até Hollywood se rendeu à sua magnificência e lhe concedeu uma nomeação para o Óscar de Melhor Atriz.

Por seu lado, Gérard Depardieu entrou no mundo do cinema ainda na década de 60, mas foi somente em 1974, com Les Valseuses de Bertrand Blier, que o ator conseguiu tornar-se numa estrela do cinema francês. Seguiram-se várias colaborações internacionais assim como uma panóplia de projetos que, hoje em dia, são vistos como o pináculo do cinema francófono das últimas décadas do século XX. Em 1990, Depardieu conseguiu mesmo alcançar uma nomeação para o Óscar pela sua prestação em Cyrano de Bergerac, um papel com o qual ele também tinha conquistado o prémio de Cannes. Caracterizado por uma robusta expressividade física e uma mestria do dramatismo vocal com traços da teatralidade dos palcos franceses, Depardieu foi uma espécie Marlon Brando tardio para o seu cinema nacional e, tal como o ator de O Padrinho, os seus anos mais tardios têm vindo a ser marcados por um colossal declínio, tanto em prestígio como em popularidade e até em termos físicos.

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É importante ter em consideração a história destes dois titãs do cinema francês pois, em Vale de Amor, eles interpretam versões ficcionadas de si mesmos. Esta não é a primeira vez que os atores entram juntos num filme nem mesmo a primeira vez que se disponibilizam a canibalizar a sua própria imagem pessoal em nome de um filme de aspirações metatextuais. De facto, a vida íntima dos atores é completamente ignorada na construção das suas personagens nesta obra, mas a sua carreira e abordagem interpretativa não o são.

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Depardieu e Huppert interpretam Gérard e Isabelle, dois famosíssimos atores franceses com vastas e frutíferas carreiras que há muito se divorciaram. Quando os encontramos, eles perderam o seu filho Michael, que se suicidou há seis meses e deixou cartas detalhadas a ambos os pais para que estes fossem ao Vale da Morte nos EUA numa data específica. O conteúdo da carta é eventualmente revelado à audiência, na pior cena de todo o filme, e abre as portas a um questionamento metafísico sobre a existência da vida depois da morte, ao mesmo tempo que o realizador Guillaume Nicloux usa os seus dois protagonistas para orquestrar uma dolorosa sinfonia sobre o luto parental, a relação das pessoas com o seu próprio passado, o modo como a vocação de um ator altera a sua visão do mundo e o seu comportamento e o poder simultaneamente cáustico e catártico da ausência.

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As ambições de Nicloux são grandes mas, curiosamente, o cineasta põe o peso de toda esta exploração quase que única e exclusivamente nos ombros dos seus atores principais. Há uma fisicalidade e horizontalidade acutilantes na fotografia de Christophe Offenstein que consegue evitar que o filme pareça uma série de postais desérticos ao modular a cor e a luz de tal modo que é difícil não sentir a poderosa sugestão de um calor infernal neste monumental palco natural de rocha nua e areia quente. O resto da concretização visual segue a mesma linha de pensamento, criando um ambiente credível, mas despido de floreados reconfortantes. O mesmo não se pode dizer dos elementos sónicos do filme, especialmente o seu uso repetido de uma célebre composição do modernista americano Charles Ives, cujas melodias dissonantes parecem querer indicar algo efémero, misterioso e quase ameaçador ao mesmo tempo que é profundamente belo.

Apesar da descrição anterior, a conflagração destes elementos é estranhamente seca e desnutrida de grande carga concetual. Como já sugerimos, Nicloux não é um cineasta que usa as paisagens como partes do seu argumento, mas somente como enquadramentos simbólicos em que os seus atores se podem defrontar e vomitar o seu diálogo, ora inspirador na sua autópsia de anos de ressentimentos e representação da dor da perda, ora prosaico nos seus ocasionais rasgos de humor ou desastrada exposição. É precisamente devido a isso que Vale de Amor não consegue nunca alcançar o patamar do grande cinema, pois, no que compete aos dois atores, esta é uma obra-prima inquestionável.

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Nos parágrafos iniciais desta análise, referimos a história e estilos de Huppert e Depardieu, o minimalismo dela e a teatralidade dramática. Faltou-nos esclarecer que, para além disso, estes atores são particulares no modo como, ao contrário dos seus mais famosos colegas anglófonos, não entram em nenhuns jogos camaleónicos na sua filmografia. Por outro lado, se explorarmos os seus filmes, encontramos intérpretes que se usam sempre a si como base, mas não da mesma forma que as estrelas de cinema de outrora, mas como escultores que sempre recorrem ao mesmo tipo de mármore, já familiar às suas mãos seguras. Nicloux joga com isso mesmo ao dedicar muita da duração de Vale de Amor a cenas de diálogo em que Isabelle e Gérard partilham informações sobre o seu passado e, pelo caminho vão esculpindo as figuras do filme a partir da base que são as suas pré-existentes personas cinematográficas que, graças à qualidade metatextual da narrativa, são ideias omnipresentes.

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Por vezes, Isabelle e Gérard, longe de parecerem pais em luto e conflito emocional, assemelham-se a dois atores a testar as águas de uma nova personagem. Ocasionalmente, uma revelação pessoal ganha o teor de uma improvisação inesperada sobre a qual o ator em questão ainda está a decidir o que significa para o seu trabalho. Tal descrição poderá implicar uma experiência fria e alienante, mas a realidade está bem longe disso. Na verdade, nos seus melhores momentos, Vale de Amor torna-se numa lacerante explosão de visceralidade emocional. Essas explosões podem ser tão pequenas como o desconforto do casal quando confrontado com um crasso par de americanos, ou monumentais como a agonia maternal de Isabelle ao perceber que poderá ter perdido a sua última oportunidade de comunicar com um filho que, pelo que sabemos da história, ambos os pais já tinham perdido muito antes do seu suicídio.

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O MELHOR: A prestação de Isabelle Huppert e Gérard Depardeiu são verdadeiramente espetaculares mas a parte mais fascinante de todo o projeto é mesmo a sua maneira de utilizar a ausência como elemento cinematográfico. Isto aplica-se tanto à ausência inicial de personagem, temos apenas as personas pré-existentes dos dois atores despidas de informações adicionais, como à figura elusiva de Michael. Consequentemente, a melhor cena do filme é aquela que nos é ocultada e cuja ausência nos impõe a dúvida mas nos abre as portas a inúmeras outras considerações sobre quem Gérard e Isabelle são, não só como pais, atores e amantes, mas também como seres humanos perdidos neste mundo.

O PIOR: A cena em que os dois leem, em voz alta, as cartas de Michael e quebram o jogo de ausência do filme de um modo quase catastrófico para o funcionamento concetual de Vale de Amor na sua totalidade.



Título Original:
Valley of Love
Realizador:
Guillaume Nicloux
Elenco:
Isabelle Huppert, Gérard Depardieu, Dan Warner, Aurélia Thiérrée, Dionne Houle
Leopardo Filmes | Drama | 2015 | 91 min

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