Céline Sciamma, a realizadora de 'Petite Maman'.

71ª Berlinale (dia 3) | A Pequena Mãe de Sciamma

‘Em Petit Maman’, a realizadora francesa Céline Sciamma emociona-nos com uma história simples e um regresso à infância, que parece tão íntimo tocante que bem poderia ser a ‘nossa história’ e do nosso um amigo ou amiga secretos, que infelizmente, já não vemos há muito tempo.

Já no seu quinto filme e pela segunda vez na Berlinale, a realizadora francesa Céline Sciamma (‘Retrato de Uma Rapariga em Chamas), em ‘Petit Maman’ trouxe agora à competição, uma obra de grande intensidade e maturidade dramática, sobre a infância e o crescimento. Já várias vezes elogiada pelos seus sensíveis retratos de ‘mulheres grandes’, Sciamma, resolveu desta vez pegar nas ‘filhas’, através de um discurso minucioso sobre o que é ser criança. Dir-se-ia num regresso ao tema da animação A Minha Vida de Courgette, de Claude Barras (2016), no qual teve o privilégio de ter escrito o argumento. Se na animação, Sciamma nunca fala sobre a infância — como os adultos costumam fazer, quando chegam a determinado ponto da vida — em ‘Petite Maman’, uma pequena maravilha de cinema, sentimo-nos novamente com se fossemos crianças, com todas as vantagens e limitações associadas a essa condição: por exemplo, ter medo de uma pantera negra, que afinal é uma sombra, projectada aos pés da cama. Isto é, em vez de tentar infantilizar o discurso, em ‘Petite Mamam’, Céline Sciamma coloca-nos ao nível das crianças.

Petite Maman
‘Petit Maman’. ©71ª Berlinale

A pequena Nelly (Joséphine Sanz), de oito anos, acaba de perder sua amada avó e vai ajudar os seus pais a esvazia e limpar a casa da infância da sua mãe (Nina Meurisse). A menina explora a casa e a floresta circundante onde Marion, a sua mãe costumava brincar e onde construiu uma casa de troncos de árvore, sobre a qual Nelly tanto ouviu falar. Um dia, sua mãe vai embora de repente, deixando-a ali com o pai (Stéphane Varupenne). E é nessa altura que Nelly conhece na floresta, uma outra menina da sua idade, que está a construir uma casa de ramos de árvore. O nome desta menina é curiosamente Marion (Gabrielle Sanz). Todo esse duro processo esvaziamento da casa de infância — só quem passou por isso é que sabe quanto é doloroso —, é uma daquelas experiências sobre a qual é sempre muito difícil falar: os livros antigos de infância e os cadernos escolares, os brinquedos e jogos esquecidos estão ali guardados no sótão ou em qualquer outro lugar, parecem que voltam a ganhar uma vida própria, como em ‘Toy Story’. E talvez esse seja o momento, em que sentimos que a nossa infância realmente acabou e que ficamos realmente sozinhos no mundo. E a realizadora, lida com isso com suavidade e uma enorme destreza, num filme pequeno, mas muito grande de sentimentos e emoções. As duas protagonistas, as duas crianças, as gémeas Sanz, são lindas, credíveis e absolutamente maravilhosas na sua interpretação. Sciamma regressa assim a uma profunda análise sobre as grandes questões da vida, mantendo a sua perspectiva feminina. Contudo, desta vez explora também o poder da memória e da imaginação de uma forma única e emocionalmente forte. Tudo isto, é expresso através da luminosa e outonal cinematografia de Claire Mathon — da casa, da floresta, da nostalgia dos interiores e até do papel de parede — enquanto o olhar da realizadora olha com uma precisão poética, para um importante momento, da transição da infância, — da noção clara da morte — para a idade adulta. E neste sentido ‘Petite Maman’, fez-me lembrar um pouco ‘Cidade Pequena’, de Diogo Costa Amarante, o cineasta português, que já ganhou um Urso de Ouro em 2016 e que regressou ontem também à Berlinale Shorts, com ‘Luz de Presença’.

JVM

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