"Marés Vivas" | © Midas Filmes

Marés Vivas, a Crítica | Jia Zhangke encerra o IndieLisboa

“Marés Vivas,” também conhecido como “Caught by the Tides” e “Feng liu yi dai,” é a mais recente obra-prima do chinês Jia Zhangke e o filme selecionada para encerrar as festividades do 22º IndieLisboa. É assim que se termina uma celebração do cinema em grande.

Com já trinta anos de carreira, Jia Zhangke aparece-nos como um dos principais cronistas da China no cinema contemporâneo, retratando o século chinês e a viragem do milénio como nenhum outro artista tem feito. Ver a sua filmografia é testemunhar as transformações de uma nação, a obra compondo um mural épico capaz de rivalizar qualquer epopeia dos cânones literários. Saltando do documentário para ficção, experimentando as possibilidades quiméricas entre os dois, Jia dá-nos uma visão crítica do seu país que, mesmo assim, foge à retórica propagandista dos seus adversários no teatro geopolítico. Humanista, lúcido, cético e audaz, ele é um artista singular.

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Dito isso, dentro das suas singularidades cinematográficas, Jia também é alguém dado à autorreflexão e revisitação das mesmas ideias. Assemelha-se a autores como Ozu ou Ford nesse jeito, e, por vezes, parece obcecado com a ideia de refazer a mesma história até à eternidade. É ela a História de um país e a vida de uma mulher, dois conceitos entrelaçados até ao ponto da fusão, a vida do indivíduo em reflexo e complemento dos movimentos coletivos. A cara dessa heroína, essa personificação da China e vítima maior das suas mudanças, será a de Zhao Tao, musa e esposa do cineasta, atriz fetiche e deusa do grande ecrã.

O primeiro filme que fizeram juntos foi “Plataforma” em 2000, um drama que contemplava a História recente da China desde os anos 70 até ao fim da década de 90 através das vidas de uma companhia teatral. Desde então, “Unknown Pleasures,” “O Mundo,” “Natureza Morta,” “24 City,” “Um Toque de Pecado,” “Se As Montanhas Se Afastam,” “As Cinzas Brancas Mais Puras” e uma variedade de curtas-metragens têm expandido esta opus, ao mesmo tempo que fazem continuidade dos temas já presentes no primeiro trabalho. Um quarto de século mais tarde e os objetivos são semelhantes. Mas a técnica é cem vezes mais arrojada.

A China é uma nação e uma mulher.

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Antes de considerar “Marés Vivas,” há dois textos a reconsiderar. São eles os já referidos “Unknown Pleasures” e “Still Life.” Em ambos os casos, Zhao Tao interpretava uma personagem à mercê de forças económicas e opressões masculinas, paixões tóxicas e amantes que teimam em escapar-lhe como um farrapo de fumo que tentamos, em vão, conter nos dedos. No primeiro filme, foi a namorada de um gangster e, no segundo, uma alma perdida no transtorno monumental que foi a construção da barragem das Três Gargantas. Se esse enredo parece familiar é porque ecoa no tríptico das “Montanhas” e das “Cinzas.” De facto, esse último projeto chega a reciclar nomes de personagens e figurinos, afigurando-se quase como o remake dos títulos passados.

Com cada fita, Zhao Tao torna-se mais proeminente no edifício fílmico e a história de amor no cerne de cada conto azeda, perdendo o lustre do melodrama juvenil com cada ano que passa. Tantas vezes vemos a atriz no mesmo fado que a sua personagem se começa a assemelhar a uma reencarnação de Sísifo. Seu romance fragmentado e fundamentalmente incompleto é a rocha que está condenada a empurrar montanha acima. E quando parece que atingiu o cume, lá a pedra rola para trás e o processo volta à estaca zero. Em “Marés Vivas,” este retorno é literal pois o regresso da rapariga – Qiao Qiao – não envolve só o retorno do trajado e das perucas. Desta vez, Jia vai mais longe e recicla as filmagens com décadas de vida, reconfigurando-as, dando-lhes novo contexto.


Nalguns casos, tratam-se de trechos presentes na montagem final de “Unknown Pleasures,” “Still Life” e mais umas quantas produções pelo meio. Para evitar contradições textuais, ele privilegia cenas sem diálogo ou, num gesto extravagante, repensa o seu trabalho como filme mudo, completo com intertítulos. Mas, por vezes, temos imagens inéditas, reaproveitadas daquilo que, outrora, ficou descartado no chão junto à mesa de montagem. Esta estratégia estranhíssima deveu-se tanto a questões pragmáticas quanto artísticas. Afinal, desenvolver um filme em tempos de pandemia era difícil fora da China. Dentro da nação onde o COVID-19 se presume ter nascido, os limites impostos foram ainda maiores.

Começando com um prólogo documental, com origem na produção da curta “In Public,” Jia situa a ação em Datong e sublinha logo o fundamento romântico do seu trabalho. Em volta de um forno, tentando sobreviver ao beijo gélido do inverno, um grupo de mulheres entretém-se cantando histórias de amor. Se prestarmos atenção à letra, perceberemos temas tristes, uma perpétua insatisfação com um final trágico sempre pronto a concluir a canção. Suas vozes são um aviso para Qiao Qiao que reencontramos, rejuvenescida, como já estava em 2001. Devota a Bin, ela é deixada na província quando, um dia, o homem desaparece para tentar ganhar a vida noutras terras. Anos depois, ela tenta encontrá-lo entre os trabalhadores migrantes que se envolveram na construção daquela barragem gigante.

Épico político, profundamente pessoal e poético.

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Tanto Jia como “Marés Vivas” ficam presos às Três Gargantas e ao desalojamento de milhões que viviam às margens do rio Yangtze. Nessa medida, este filme recente replica quanto este assunto se tornou numa obsessão para o realizador que, ao longo dos anos, continuou a revisitar o sítio, indo além dos muitos filmes já referidos. Eventualmente, a busca de Qiao Qiao acaba num beco sem saída e a narrativa dá novo salto. Só que, agora, não reconfigura imagens antigas. Ao invés, produz imagens novas, observando a China durante o confinamento e o rescaldo dos piores anos da pandemia. As realidades socioeconómicas são distintas daqueles que “Still Life” considerou em 2006 e a tecnologia veio alterar anda mais os estilos de vida.

Há muito humor aqui, como quando Bin reencontra um antigo vizinho e descobre o ancião tornado estrela das redes sociais. Noutro momento, Qiao Qiao depara-se com uma loja onde os empregados são robots de caras sorridentes e amabilidade digitalizada. A intromissão de um futurismo feito presente já havia sido pressagiada pelo uso de vídeos IA sobrepostas aos arquivos de “Still Life.” Mas Jia foge ao óbvio e evita o catastrofismo. Também evita a celebração, fincando o dedo numa ambivalência reticente, todo um universo contido nas ambiguidades que Zhao Tao consegue sugerir com a expressão. Certamente, nada disto funcionaria sem ela como a estrela maior no centro deste cosmos cinematográfico.

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Já se falou no romance entre Qiao Qiao e Bin, entre o realizador a atriz. Mas convém também falar neste filme enquanto carta de amor de Jia à sua musa e de ponte entre ela e suas audiências. Zhao Tao nunca esteve melhor e a câmara raramente lhe fez maior honra, prestando vassalagem como um fiel devoto perante a divindade. Ela e o cinema de Jia Zhangke são sinónimos tal como Qiao Qiao é sinónima da China. E na sua face vemos a sétima arte em carne e osso, suas infinitas possibilidades cristalizadas, num esgar agridoce, uma serenidade capaz de complicar aquilo que poderia ser uma simples rejeição. Se na cena fina ela corre na direção de um futuro incerto, fá-lo em semelhança a Fellini e sua Cabiria. Assim, Jia deixa a totalidade grandiosa do seu trabalho resumir-se ao olhar da musa e, nele, descobre a máxima glória. Há que ver para crer e, perante tal maravilha, só nos resta aplaudir de pé.

“Marés Vivas” tem estreia comercial nos cinemas portugueses a 29 de maio, com distribuição assegurada pela Midas Filmes. Não percas!

Marés Vivas, a Crítica

Movie title: Feng liu yi dai

Date published: 14 de May de 2025

Country: China

Duration: 111 min.

Director(s): Jia Zhangke

Actor(s): Zhao Tao, Zhubin Li, You Zhou, Zhou Lan, Maotao Hu, Jianlin Pan, Changchu Xu

Genre: Drama , 2024

  • Cláudio Alves - 95/10
    10/10

CONCLUSÃO:

Desde Datong na viragem do século até à crise pandémica do COVID-19, passando pela construção das Três Gargantas, “Marés Vivas” faz a crónica da China contemporânea através de uma história de amor multifacetada. Será a paixão de duas personagens transversais à obra de Jia Zhangke e a admiração que o realizador tem pela sua musa, esposa, maior glória artística – Zhao Tao. Tão audaz num contexto de cinema político como enquanto projeto experimental, “Marés Vivas” seria considerada a magnum opus dos seus criadores, não fosse o seu currículo tão vasto e tão rico. Em todo o caso, trata-se de uma obra-prima.

O MELHOR: Zhao Tao em estado de graça.

O PIOR: “Marés Vivas” entende-se mesmo fora do contexto dado pela filmografia do seu autor. Contudo, temos que admitir quanto a coisa perde poder se for vista por alguém, que não tenha feito o trabalho-de-casa e mergulhado de cabeça no cinema de Jia Zhangke, sua musa, seu país.

CA

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