"Casa de Doidas" | © United Artists

Casa de Doidas | Cinema com Orgulho

Também conhecido como “The Birdcage” e “A Gaiola das Loucas” no Brasil, “Casa de Doidas” é uma das melhores comédias dos anos 90. Este remake com assinatura de Mike Nichols conta com Robin Williams, Nathan Lane, Gene Hackman, Dianne Wiest, Hank Hazaria, Christine Baranski e Calista Flockhart no elenco.

Em 2026, a Academia de Hollywood vai, pela primeira vez, entregar um Óscar para Melhor Casting. A categoria nasce depois de muitos anos de reivindicações por parte de diretores de casting e de outros prémios honrarem tanto o trabalho de seleção como os esforços coletivos dos seus intérpretes. De facto, desde 1995 que o SAG, sindicato dos atores do pequeno e grande ecrã, tem uma categoria para elencos. Peritos na previsão dos prémios tendem a olhar para essa honra como indicador favorável para os Óscares, sendo que, nestes anos todos, só um dos seus vencedores acabou a temporada sem uma nomeação da Academia para Melhor Filme.

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Foi ele a “Casa de Doidas,” um remake Americano de comédia francesa. O original estreou em 1978 com o título “La Cage aux Folles” e causou furor com a sua farsa transgressiva sobre dois homens gay cujo filho adulto se apaixona pela filha de uma família ultraconservadora. Donos de um clube noturno de Miami com drag queens e tudo o mais, os protagonistas são o pesadelo dos sogros tradicionalistas pelo que, a pedido do filho, fingem ser heterossexuais. Inicialmente, isso envolve pedir ajuda à mãe biológica do menino, mas a situação descontrola-se e um dos senhores acaba vestido como mulher para enganar e simular os bons costumes. Enfim, é uma loucura.

Na altura, essa paródia gálica foi um sucesso imenso, transcendendo o mercado europeu e conquistando os amores das audiências Americanas também. Tanto assim é que, para além de uma catrefa de Césares, a equipa foi ainda indicada para três Óscares – Melhor Realização, Melhor Argumento Adaptado e Melhores Figurinos. O fenómeno das bilheteiras teve direito a duas sequelas e, em 1983, até regressou às suas origens teatrais. Só que, agora, fê-lo na forma de um musical que até já teve direito a encenação portuguesa por parte de Filipe La Féria. Ou seja, Hollywood refazer a fita era uma inevitabilidade.

O raro remake que supera o original!

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© United Artists

O que mais surpreende na “Casa de Doidas” de 1996 será mesmo quão superior é ao original. Remakes melhores que o primeiro filme são uma raridade imensa, e uma comédia queer que começou a vida em França parece de difícil tradução para um público Americano. Contudo, o realizador Mike Nichols conseguiu esse milagre, em parte porque aborda o material com muito maior generosidade e menos laivos trocistas que Édouard Molinaro dezoito anos antes. Por outras palavras, não nos rimos do casal queer, mas sim da absurda situação. Não nos rimos da sua dor nem somos levados a ver a sexualidade em si como uma piada barata. Nem mesmo a arte do drag é desrespeitada pela lente de Nichols.

Grande parte destas mudanças dependem do elenco, justificando aquele glorioso SAG. Mas sempre assim foi o cinema deste autor, desde a génese do seu trabalho no grande ecrã com “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?” e “A Primeira Noite.” A trupe desta “Casa de Doidas” é só mais uma genialidade numa filmografia cheia delas, com Robin Williams e Nathan Lane a arrasarem nos papéis principais, repensados nesta versão para tomarem partido dos seus novos atores. Como homem hétero a fazer de gay, Williams poderia ter caído na caricatura, mas jamais comete esse erro. Há dignidade no seu Armand, assim como as marcas de alguém que sentiu na pele o ódio da sociedade mainstream.

Mas Williams também não escolhe a via da masculinidade mais estereotípica, dando asas à imaginação e ao seu exagero cómico em cenas como aquela em que o dono de cabaret exemplifica o estilo de uma série de coreógrafos famosos. Um verdadeiro aliado da comunidade queer, a estrela de Hollywood até protegeu o colega durante a promoção da “Casa de Doidas,” quando a imprensa queria que Nathan Lane saísse do armário à força toda. O ator tornou-se conhecido fora dos círculos teatrais graças a esta comédia, quase conquistando uma nomeação para o Óscar, e consolidando o seu legado além do que já tinha conseguido na Broadway e na televisão.


E não é por menos, sendo que o Albert de Lane é um dos grandes feitos desta adaptação, humanizando a figura da drag queen e do homem afeminado sem perder nenhum do seu potencial cómico. Tão estrondoso é o trabalho que o filme corre o risco de pintar o filho do casal como um vilão. Afinal, ele é ingrato até dizer chega, relutante em mostrar afeto para com os homens que o criaram e sempre disposto a magoá-los. Só que, novamente, Nichols sabe bem como negociar tons e puxar pela complexidade dos sentimentos. Numa cena em que Armand e o filho primeiro veem Albert numa fatiota conservadora, sente-se a dor da repressão ao mesmo tempo que a imagem provoca o riso.

Tais reações multifacetadas são mais que as mães nesta “Casa de Doidas.” Pensemos no conflito matrimonial dos protagonistas, fonte de humor e pathos simultâneo, chegando ao seu clímax numa conversa sincera, onde o amor entre os dois se confirma mais uma vez. O mesmo se pode dizer da forma como Nichols e companhia representam a família reacionária da futura nora. Desta vez são uma dinastia de políticos Republicanos, contextualizando-os num círculo mediático Americano e dando asas às loucuras do último ato, quando a verdade vem ao de cima e Albert resolve tudo ao por o pai conservador em drag como disfarce.

Por muito ingénuo que seja perante as realidades amargas do nosso mundo, o florescer de entendimento entre as duas famílias num momento de crise é um raio de esperança precioso que Nichols e a argumentista Elaine May incluem entre a palhaçada. De novo, isto só funciona graças aos atores, com Gene Hackman e Dianne Wiest a espremer todo o humor possível das suas personagens. Ela traz vulnerabilidade à alquimia tragicómica do texto, e sua indignação para com o marido sente-se no íntimo. Em meia hora de um jantar desastroso, entendemos a dinâmica dos dois e quase conseguimos imaginar décadas vividas fora dos limites da narrativa.

Um elenco de luxo, hilariante, sem igual.

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© United Artists

Hackman surpreende ainda mais, puxando pela fama de machão que o tornou numa das grandes estrelas da Nova Hollywood dos anos 70, para depois subverter tudo quando o político se encanta com Albert em modo de dona-de-casa e depois até se parece divertir com a dissimulação do drag para fugir aos repórteres. Esses quatro são os melhores atores em cena, mas todos estão de parabéns, desde Christine Baranski a Calista Flockhart, passando por Dan Futterman como o filho pródigo e Hank Azaria no registo mais potencialmente ofensivo do filme. Se há algo na fita que envelheceu mal, será o seu Agador Spartacus, imigrante da Guatemala e estereótipo em carne e osso e calções minúsculos. Mas mesmo aí, é difícil resistir ao riso.

Já muito falámos do elenco, das adaptações textuais, da comédia hilariante e dos talentos de Nichols na direção de atores. Mas as mais-valias da “Casa de Doidas” não se ficam por aí. Não obstante os figurinos do lendário Piero Tosi no filme de ’78, o remake Americano é superior em quase todos os departamentos. E mesmo em termos de guarda-roupa, será difícil encontrar mácula a apontar nas escolhas estilísticas de Ann Roth. Parte do sucesso desses designs depende da ideia que o traje conservador é, na sua essência, uma forma de drag tão teatral como as fantasias que Albert enverga para as noites de cabaret.

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Os cenários são ainda mais impressionantes e valeram ao filme a sua única nomeação para os Óscares. Bo Welch e Cheryl Carasik são ases da cenografia e conseguem tornar todo o espaço numa piada visual. Nada melhor que a ideia de respeitabilidade heterossexual de Armand e Albert, com crucifixos gigantescos e a estética geral de uma masmorra Católica. Depois há as maquilhagens, a montagem aprumada de Arthur Schmidt, a fotografia em tons de crepúsculo pastel com que Emmanuel Lubezki pinta o ambiente Floridiano. É claro que, no fim, tudo volta ao casting, ao milagre de Ellen Lewis e Juliet Taylor. Se a nova categoria da Academia já existisse na altura, elas e a “Casa de Doidas” já teriam ganho Óscares em 1996.

A “Casa de Doidas” de Mike Nichols está disponível na Amazon Prime Video. Podes ainda alugar o filme através da Apple TV.



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