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A Terra Prometida (Bastarden), a Crítica | Mads Mikkelsen procura sucesso no drama de Nikolaj Arcel

Mads Mikkelsen enfrenta o desconhecido em busca de sucesso em “A Terra Prometida” (Bastarden), o novo drama de Nikolaj Arcel.

Títulos repetidos já os houve no passado. Não obstante, a duplicação de referências que daí resultou, pelo menos nos dois casos que passamos a referir, apresentava alguma distância entre a sua autorização. Estamos a falar de “Promised Land” (Terra Prometida), 2012, do norte-americano Gus Van Sant, e “Ziemia Obiecana” (Terra Prometida), 1975, do polaco Andrzej Wajda. Mas que no mesmo mês, na mesma semana e no mesmo dia dois filmes, cujos distribuidores pediram recentemente ao IGAC que confirmasse as suas escolhas, acabem a receber luz verde para se estrearem como “A Terra Prometida” (só o artigo inicial está a mais em relação aos mais antigos exemplos) afigura-se inédito. Escusado será dizer que estas situações geram natural confusão e mal-estar no seio da distribuição e exibição, já para não falar dos espectadores que precisam de se acautelar, não vão os mais distraídos sentar-se para ver um filme e sair-lhes outro pela frente.

UMA VIDA BASTARDA NA CHARNECA DO DIABO

A Terra Prometida Bastarden Mads Mikkelsen Nikolaj Arcel
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Seja como for, digo-vos desde já que um e outro filme são muito distintos, e basta estar atento aos nomes inscritos no campo da realização, entre outros, para darmos conta das diferentes matérias ficcionais, e não só. Quanto ao valor de cada um, cá estamos nós, os da crítica, para o destacar separadamente, não nos deixando levar por estas estranhas formas de cumprir os regulamentos que, salvo melhor informação, anda estão em vigor e impedem (ou deviam impedir) que estas coisas se passem. Deixem-me acrescentar que no original nenhum deles se refere a Terra Prometida nenhuma, mas sim ao nome de uma mulher, “Shoshana” (o filme distribuído pela Outsider Films) e a uma condição social e de nascimento “Bastarden” (o filme distribuído pela Alambique Filmes). Sobre este último farei de seguida a respectiva análise. Todavia, consagrarei igualmente ao outro a crítica que se justifica e que será publicada de forma independente.

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Em meados do século dezoito, mais precisamente em 1755, um capitão do exército do Reino da Dinamarca, Ludvig Kahlen (magnificamente interpretado por Mads Mikkelsen), que ao longo de vinte e cinco anos subira na posição social e militar a pulso porque não lhe corria o “sangue certo” nas veias, como se diz no filme pela boca de um verdadeiro canalha da aristocracia fundiária, procura convencer os poderosos e mais influentes na corte dinamarquesa de que podia dar vida a uma região dominada por um solo considerado estéril, dificilmente rentável e seguramente pouco produtivo. Tratava-se de uma vasta área de charneca situada na Península da Jutlândia, território que faz parte da Dinamarca e do extremo Norte da Alemanha.




Perante a arrogância de classe demonstrada pelos conselheiros do Rei (não se diz o nome do dito mas sabemos que reinava na época Frederico V que, segundo se menciona claramente no filme, passava os dias embriagado deixando as decisões importantes para os oportunistas que o rodeavam e que de forma intencional ocultavam do monarca os interesses que no fundo defendiam para seu próprio proveito), o empobrecido Ludvig Kahlen manter-se-á sempre firme e sereno perante as numerosas provocações que lhe atiram para cima, nunca soçobrando na quase perfeita convicção com que defende a sua proposta de missão. Mais adiante saberemos porquê. Por um lado, desejava com o seu eventual sucesso obter um estatuto mais elevado na hierarquia social, como o de Barão, que acabará por conseguir. Por outro, guardava consigo e em segredo a receita para o sucesso que ninguém acreditava estar ao seu alcance.

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Na verdade, durante as campanhas militares na Alemanha (fala-se das Guerras da Silésia, a primeira das quais iniciada no final de 1740), descobriu a existência da batata, produto importado do Novo Mundo que crescia em qualquer solo e que só não resistia a uma forte geada. Muitas vezes esquecemos que a cultura da batata, muito comum no continente americano, só entrou na Europa pela mão dos que a partir do século XVI passaram a dominar as rotas comerciais e marítimas no Oceano Atlântico. Muito provavelmente entrou primeiro não pelo Norte da Europa mas sim pelo Sul e pela Península Ibérica. Dito isto, a história do capitão continua.

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Para construir o guião de “Bastarden” (A Terra Prometida), 2023 (argumento baseado no romance “O Capitão e Ann Barbara”, de Ida Jessen), o realizador e argumentista Nikolaj Arcel coloca-o, com um grupo de pessoas, algumas perseguidas por razões diversas e na maior parte dos casos arbitrárias, no meio da charneca maldita, não obstante a beleza da vegetação rasteira, sobretudo quando desponta a Primavera, e cuja luz será frequentemente esmagada por um céu que mais parece feito de chumbo. Manto celeste que anuncia as portas enegrecidas de um qualquer inferno. Para mal dos seus pecados, Ludvig Kahlen iria constatar que, para além do avançado e despudorado cinismo dos que manobravam as decisões na corte, aproveitando-se da presença mais ou menos decorativa e patética do Rei, teria de enfrentar mil e um preconceitos dos seus semelhantes e ainda das populações marginais, ou melhor, marginalizadas, que por ali sobreviviam e que, por sua vez, por superstições subdesenvolvidas, afastavam do seu seio aqueles que por serem diferentes (destaque para uma rapariguinha morena, uma cigana, que será salva pelo capitão e pela sua, ao princípio, improvável companheira) eram relegados para o frio e fome, padrão que grassava naquelas paragens habitualmente agrestes e sombrias.




Para piorar a situação, um dos aristocratas locais com poder e força bruta naquelas terras irá ameaçar a frágil presença da proto-colónia que ele considerava ilegal, contrariando o disposto no decreto real que a autorizava. Terras que o fidalguito marialva e grunho, Frederik De Schinkel (Simon Bennebjerg) considerava suas e não do Rei. Esta figura sinistra, coadjuvada pelos seus cúmplices e mercenários, por diferentes meios mas sempre com uma dose abjecta de violência física e verbal, procurará fazer a vida negra aos colonos e destruir os planos do capitão, patrão e protector da pequena comunidade. Neste ponto, a estrutura fílmica de “A Terra Prometida” articula um conjunto de situações que correspondem a uma série de sequências onde degrau a degrau se vai elevando a fasquia da guerra de personalidades e de classe a um patamar em que o inevitável confronto se desenha, a partir de certa altura, já não como um esboço ou uma hipótese mas sim como uma certeza mais ou menos iminente.

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Neste contexto, o argumento desenvolve uma corrente activa de histórias paralelas que se cruzam com o fio condutor principal. Em alguns dos episódios nota-se o desejo de que as contradições entre personagens encontrem um suporte de verdade capaz de sustentar a maioria dos mais sérios conflitos narrativos. Não obstante, a introdução de factores romanescos, como o desejo de uma aristocrata norueguesa se relacionar intimamente com Ludvig Kahlen (jovem mulher falida e por isso submetida contra a sua vontade a partilhar a vida e morada com o arqui-inimigo do capitão), acaba por fragilizar o que até ali se apresentara como um percurso seco de gorduras melodramáticas. Situação difícil de conceber no quadro de uma relação onde os imperativos da divisão classista, a risível questão do sangue azul, eram mais fortes do que as manifestações sentimentais, por mais naturais que elas fossem. No entanto, nada desses pozinhos de melodrama apagam o que fica de concreto e essencial numa obra com alguns sinais de épico e onde se apontam com clareza as razões que movem montanhas contra as piores evidências e que darão por fim uma nova configuração e cor ao outrora sombrio ambiente da nova colónia, a da charneca do Diabo.

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De facto, por ali nem o padre solidário com o esforço e motivações de um obstinado Ludvig Kahlen conseguiu o feito de a baptizarem como Terra de Deus. Seja como for, preferível seria manter o foco na relação mais credível entre o capitão e a jovem proletária Ann Barbara (Amanda Collin), viúva cujo marido fora barbaramente assassinado por De Schinkel e que virá a ser, por voltas que o destino dá, o motivo da redenção e da perdição de Ludvig Kahlen, já que após a catarse vingativa sobre o prepotente aristocrata não restou ao capitão senão o abandono do seu sonho a favor de um outro que o empurrou para soluções que fizeram dele um fora-da-lei. Pior ainda, que o fizeram regressar ao seu ponto de origem, o de ser um simples bastardo, não obstante os possíveis e impossíveis que realizou para ultrapassar uma vida bastarda.

A Terra Prometida, a Crítica
A Terra Prometida Bastarden Mads Mikkelsen Nikolaj Arcel

Movie title: Bastarden

Director(s): Nikolaj Arcel

Actor(s): Mads Mikkelsen, Amanda Collin, Simon Bennebjerg, Melina Hagberg, Kristine Kujath Thorp, Gustav Lindh

Genre: Drama, 2023, 127min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Primeiro ponto de destaque, o argumento. Trata-se da adaptação de um romance, por sua vez baseado na personagem real do capitão Ludvig Kahlen, filho bastardo que no seio do exército alcançou a patente de capitão ao fim de vinte e cinco anos, coisa que um qualquer aristocrata nascido num berço de ouro conseguiria no curto período de seis meses. Estou a referir este aspecto, que será matéria dos diálogos do filme, porque nele passa em certa medida a ideia prevalecente do principal conflito dramático do filme cuja acção se situa em meados do século dezoito. Nele estão patentes as relações e antagonismos de classe e aquilo que outros irão apelidar de luta de classes e que já constituía, como sempre constituiu, um dos motores da História. Neste caso, da História com H grande e da história do intrépido capitão que procurou vencer as ideias feitas sobre o pouco interesse produtivo da charneca situada na Península da Jutlândia, Reino da Dinamarca. Tudo com uma arma secreta, a batata, a que adicionou a força maior da vontade e perseverança.

Todavia, mais significativo ainda será o enquadramento áudio e visual, sobretudo o proporcionado pela excelente Direcção de Fotografia de Rasmus Videbaek.

Finalmente, será preciso dizer que Mads Mikkelsen foi a escolha perfeita para protagonizar o elenco. Consegue a proeza de monopolizar qualquer cena em que aparece, e para isso muitas vezes basta-lhe estar lá, com a sua figura serena mas vigorosa e imponente e o seu olhar penetrante. Recebeu o galardão para Melhor Actor nos Prémios do Cinema Europeu de 2023. O filme recebeu ainda o Prémio de Melhor Fotografia e o de Melhor Guarda-Roupa.

CONTRA: Nada.

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