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A Irmandade da Sauna, a Crítica | Anna Hints apresenta uma obra ritualista e serena

“A Irmandade da Sauna” é o mais recente documentário da cineasta Anna Hints.

Em inglês chama-se “Smoke Sauna Sisterhood”, revelando assim essa designação a especificidade do lugar onde iremos acompanhar um grupo de mulheres literalmente encerradas, por vontade própria, numa casa de madeira, no meio de uma floresta e junto de um lago onde se dispõem a desfrutar os prazeres e rituais da dita irmandade e da sauna de fumo, naquilo que podemos considerar um acolhedor ponto de encontro de corpos e almas. Mais acolhedor ainda porque estamos numa região remota do Sudoeste da Estónia onde, como diz um amigo meu canadiano que habita uma região similar na vastidão do Saguenay (Norte do Estado do Quebec), se as coisas correrem bem lá se consegue gozar um ou dois fins-de-semana de Verão, leia-se, de sol e calor que por aquelas bandas se encara como um verdadeiro luxo. Títulos há muitos e, para os devidos efeitos de identificação no nosso país, a referência que irá circular no circuito comercial será “Savvusanna Sósarad” (A Irmandade da Sauna), 2023, co-produção entre a Estónia, a França e a Islândia, primeira longa-metragem de Anna Hints.

SUAR É PRECISO, E VIVER…TAMBÉM!

A Irmandade da Sauna
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Pessoalmente já experimentei o bem que nos faz estas saunas, não na Estónia mas na Finlândia. Passei largos minutos em idênticas saunas que são cada vez mais difíceis de encontrar, porque a maioria já não usa os métodos ancestrais que lhe davam o charme impossível de imitar. Tradicionais, muito parecidas com a que vemos neste filme, com uma arquitectura muito própria. São construções de madeira que possuem um forno a lenha que serve para aquecer uma quantidade de pedras sobre as quais se despeja água fria de modo a produzir o vapor que nos faz suar, suar, suar em cascata (nunca imaginara antes que fosse possível destilar daquela maneira).

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Lá dentro sentimos as quatro paredes da sauna como a necessária protecção para concentrar o calor, mas o seu perímetro limitado surge igualmente como uma espécie de útero materno. Tal como se nota no comportamento da irmandade retratada neste filme, aqueles que se submetem ao ritual único da sauna não estão lá apenas para limpar as impurezas da pele, a sujidade física, ou activar a circulação. Estão lá igualmente para limpar o espírito, sentir a sua volatilidade, a sensação de rejuvenescimento global que, sobretudo a seguir a uma noite bem dormida, nos dá a sensação de sermos uns super-homens e, no caso das protagonistas, umas verdadeiras super-mulheres. Super, mas sem preconceitos de supremacia artificial sobre os outros ou sobre a Natureza com quem partilham uma fraterna comunhão pessoal e colectiva.




Bem ao contrário do posicionamento individualista, o sentimento dominante passa por saberem o modo mais vincado de se encaixarem no quadro geral como a peça que faltava no puzzle de uma qualquer imagem cósmica que antes apenas se adivinhara. Mas para visionar “A Irmandade da Sauna” não precisamos de muito mais do que a nossa verdadeira e cúmplice disponibilidade para compreender e apreciar o modo como a realizadora decidiu avançar para este projecto salientando na prática uma série de diálogos entre irmãs da mesma causa com maior ou menor grau de intimidade, que atinge um impacto decisivo quando da simples conversa de circunstância se passa ao patamar confessional.

A Irmandade da Sauna
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Como disse anteriormente, há qualquer coisa de uterino no interior da sauna e naquelas paredes enegrecidas pelo fumo onde cintila na humidade a luz filtrada do exterior que entra pelas frestas e por pequenas janelas. Iluminação que convida ao recolhimento, suficiente apenas para não se perder o contacto visual e ninguém se espalhar ao comprido ou cair em cima dos outros. Esse espaço fechado, mas aberto ao desvendar do que nos alegra ou apoquenta, faz dele um local ideal para limpar o corpo e a alma. Para além do mais, a nudez acentua a exposição livre das ideias guardadas, ou até reprimidas. E muitas serão as vozes dispostas a revelar os segredos que ao ar livre porventura não seriam verbalizados.

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As palavras sucedem-se dando conta de histórias da mais diversa natureza, sobre assuntos como maternidade, amizade e relações amorosas, paixão e sexo, doença e cura, pesar e lamento, passando pela cronologia assombrada de um acto de violência que decerto marcou a juventude de quem hoje consegue falar do que lhe sucedeu mas sem ainda mostrar a cara. Também há no filme segmentos proto-simbólicos em que através do fumo se ouve uma voz sem rosto definido, fantasma de uma velha senhora que fala de vergonhas passadas, ritos sociais a que eram submetidas as mulheres, as desigualdades entre elas e os homens vincadas desde o nascimento, o minuto primeiro e diferenciador de qualquer ser vivo. Tudo isto precisava de ser enquadrado por imagens e sons que não fizessem da frontalidade física das protagonistas uma barreira para a absorção da sua componente emocional.

A Irmandade da Sauna
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Por isso mesmo, considero notável a maneira como Anna Hints e o seu Director de Fotografia, Ants Tammick, escolheram fragmentar o espaço da sauna, concebendo planos de um imperioso bom gosto que nos vão dando a ver apenas o necessário do círculo íntimo da irmandade. Na verdade, a maioria das mulheres não são modelos imaculados de beleza, e no entanto a sua presença volumétrica e o modo como são fotografadas faz delas personagens de um quadro de natureza viva por oposição ao figurino habitual da natureza morta, a mulher de papel ou a mulher cujo corpo só cumpre a função patética de sustentar uma narrativa pseudo-erótica. Há aqui sangue, (muito) suor e lágrimas, pedaços exemplares de vidas, e um excelente exercício de montagem que nos mantém atentos e interessados do princípio ao fim. Em suma, um filme no feminino, não sectário do ponto de vista da agenda ideológica, e muito menos feminista no sentido redutor do conceito. Para ver, absolutamente…!

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Por fim, deixo-vos informação sobre a importância que a UNESCO atribuiu a estas saunas no contexto patrimonial do povo da Estónia e da região de Võromma: desde 2014 que a sauna de fumo passou a receber o estatuto de Herança Cultural Intangível da Humanidade.

A Irmandade da Sauna, a Crítica
A Irmandade da Sauna

Movie title: Savvusanna sõsarad

Director(s): Anna Hints

Actor(s): Kadi Kivilo, Maria Meresaar, Elsa Saks, Marianne Liiv, Eva Kübar

Genre: Documentário, 2023, 89min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Muitas e boas razões que indico na respectiva análise.

Deixo aqui notícia dos principais galardões que “A Irmandade da Sauna” recebeu em 2023:

Prémio para Melhor Realização na categoria World Cinema Documentary do Festival de Sundance.

Melhor Documentário e Melhor Fotografia nos Prémios Europeus do Cinema.

Melhor Documentário no Festival de San Francisco.

Foi seleccionado pela Estónia para representar o país na corrida aos Óscares. Não foi nomeado, mas isso vale o que vale, como veremos no próximo dia 10 na cerimónia dos ditos em Los Angeles.

Entretanto, o Cinema City Alvalade em Lisboa organiza uma sessão especial do filme no dia da estreia, pelas 19 horas, em colaboração com a “MUTIM – Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento”. Depois da projecção será lançado um debate com Rita Benis e Mariana Liz, ambas membros fundadoras da associação.

CONTRA: Nada.

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