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A Noiva, em análise

“A Noiva” é uma obra de Sérgio Tréfaut, que conta com Joana Bernardo no elenco principal!

CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS, MAS NINGUÉM VAI PARA O PARAÍSO…!

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A Noiva
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Habitualmente não consulto muita informação antes de visionar um qualquer filme, a não ser a rigorosamente indispensável para o situar, mais as suas diversas componentes estruturais, num contexto de produção específico. E isto porque, por exemplo, um filme sobre o Daesh realizado por um militante de uma organização radical islâmica seria igual ou semelhante ao realizado por um extremista cristão, mesmo que usasse a mesmíssima matéria primordial relativa ao mesmo assunto? Pode acontecer, mas só por uma bizarra e estranha coincidência. Deste modo, só vendo se dissipam as dúvidas. Por outro lado, as notas de intenções que acompanham muitos projectos de filmes são muitas vezes meros exercícios especulativos, literatura de cordel e poeira lançada aos olhos de quem vai julgar a oportunidade de apoio financeiro. Quantas vezes não encontrei nas referidas notas, enquanto júri do IPACA, ICAM e do actual ICA, abundante produção literária que indicava uma direcção X e, uma vez o filme concluído, o que se via na cópia síncrona era um resultado Y. Por isso, repito, prefiro visionar os filmes por aquilo que eles são e julgar o que está delimitado pelas quatro linhas do enquadramento e não por aquilo que os produtores ou realizadores queriam que eles fossem. Mas existem excepções, como se costuma dizer, que acabam por confirmar a regra. E uma delas chama-se A NOIVA, 2022, filme realizado por Sérgio Tréfaut, cineasta nascido no Brasil mas radicado em Portugal e que desde há muito vem dividindo a sua carreira cinematográfica entre os dois países e o mundo, nos domínios do documentário e da ficção, algo que não deixa de ser importante e visível na definição geral do modelo narrativo que observamos na sua derradeira longa-metragem que a seguir passo a analisar. Por serem significativas as palavras que o realizador e argumentista escreveu, divulgadas numa nota de imprensa intitulada “as razões de um filme”, aqui deixo alguns excertos dessa prosa que ajuda a perceber, não as intenções, mas sim as motivações para avançar para um projecto sobre uma realidade que os mais atentos aos fenómenos da geopolítica e dos conflitos prevalecentes nas mais diferentes regiões do globo já conhecem, mas que nunca será demais acolher como complemento da informação anteriormente recebida: “Quando, em Junho de 2014, o auto-proclamado Estado Islâmico fez de Mossul a sua capital e Abu Bakr Al-Bagdadi declarou o início de um novo califado na Grande Mesquita de Al Nur, não acreditei no que via e ouvia. Eu tinha visitado Mossul várias vezes no ano anterior, durante a pesquisa para um documentário sobre as consequências da intervenção norte-americana no Iraque. Ainda guardava vivos na memória os cheiros e as cores do mercado da cidade. (…) Perguntava-me o que teria acontecido àqueles vendedores de tão variadas origens e credos: cristãos, arménios, curdos, judeus, chiitas, sunitas”. Depois de fazer a localização do espaço vital de A NOIVA, Sérgio Tréfaut interroga-se sobre a adesão de muitos europeus aos pressupostos existenciais do Daesh, sobretudo dos jovens que aos milhares se deslocavam para a Síria e para o Iraque, referindo: “E não pertenciam apenas às segundas gerações da imigração muçulmana. Alguns eram jovens cristãos, ou sem origem religiosa, que se tinham convertido a uma estranha forma de idealismo assassino. Em Portugal uma vintena de combatentes passou a ter cara, nome, destaque na imprensa, direito a capa de revista. (…) Estes jihadistas portugueses eram facilmente separáveis em dois grupos: os jovens de origem africana (…) que tinham ido jogar futebol no UK Football Finder ou tentar a sorte de outra maneira no Reino Unido, e que tinham sido convertidos por extremistas paquistaneses em Londres, e os filhos da imigração portuguesa na Europa, em contacto próximo com as comunidades muçulmanas na Europa do Norte, marcadas por um forte sentimento de rejeição.” Depois de salientar o elenco do seu possível filme, Sérgio Tréfaut descreve na mesma nota a hipótese de argumento que a partir de 2015 desenvolveu e que devia concentrar a atenção no percurso de um desses rapazes, jogador de futebol. Para isso leu biografias de jihadistas famosos como Jihadi John, falou com sobreviventes, seguiu os crimes praticados pelo Daesh, sem no entanto conseguir compreender completamente as motivações que levavam rapazes e raparigas de uma pequena-burguesia urbana a virar do avesso a sua vida e a vida de muitos a quem apelidavam de infiéis. “Quando tinha o argumento quase pronto, cheguei à conclusão que aquele não era o filme que eu queria ver. Parecia um biopic, um thriller para a Netflix. (…) Transmitia talvez a ilusão de compreender um percurso que eu não compreendia, apesar de ter estudado o assunto.” Neste ponto do seu depoimento, Sérgio Tréfaut introduz-nos ao ponto de viragem que o fez sair desta sinuosa estrada para entrar no estreito caminho de um outro projecto. De certo modo, uma abordagem mais rara da problemática jihadista, um novo projecto erguido sobre o anterior e sobre as cinzas da queda de Mossul, reconquistada entretanto pelas forças curdas e pelo exército iraquiano, com apoio internacional. E aqui nasceu a personagem protagonista de A NOIVA, a mulher de quem agora se fala. Na verdade, este virar de agulha para a componente feminina de uma guerra que se quer santa, apesar de diabólica nas suas dramáticas consequências, constitui na minha opinião uma opção acertadíssima porque através dos olhos de uma jihadista, convicta do seu papel de repouso carnal do guerreiro e de piedosa mãe procriadora, iremos desde as primeiras sequências sentir a devastação física, espiritual e moral do conflito que ali se desenrolou e que, infelizmente, ainda se desenrola, assim como a visão redutora que os vencedores insistem em defender perante uma realidade que parecem não compreender, apesar de suspeitarmos que pela radicalidade da sua posição justiceira passa muitas vezes a ideia de que não querem compreender. Porque alguns juízes, ao julgarem os crimes do Daesh, fazem-no com a má consciência dos crimes que eles próprios aceitaram que a parte vencedora cometesse ou as barbaridades que cinicamente encobriram.

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A Noiva
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Quando ao início vemos a execução de prisioneiros do Daesh (incluindo a do marido da noiva que se encontra grávida) ser praticada diante dos olhos das suas mulheres e companheiras, o que isso significa de barbárie não fica longe da barbárie que se condena ao inimigo. Esta noiva, personagem interpretada de forma segura pela portuguesa Joana Bernardo, enquanto viúva sofre a pressão da sua anterior associação matrimonial, sendo submetida de modo compulsivo a um conjunto de provações e humilhações que irá afectá-la e aos dois filhos, ainda crianças. Tudo conjugado com a frágil posição e com as contradições que se depreendem do comportamento das restantes mulheres submetidas ao mesmo cativeiro. Todas esperam o julgamento e algumas suspeitam, ou sabem mesmo, que a justiça de ressonâncias marciais ali aplicada irá acabar por ditar a sua execução. Todo o filme vai ser dominado por este conflito dramático entre a vida e a morte, a incerteza do desfecho, algo impossível de retirar da equação ficcional que está sobejamente e bem concentrada na realidade palpável, proto-documental, da análise concreta de uma situação concreta. No rosto de Joana Bernardo, quer no seu olhar assustado, impotente ou acusador, quer nos seus prolongados silêncios ou nas suas parcas intervenções verbais, podemos vislumbrar um outro filme interior, povoado de emoções que vão gradualmente crescendo, digamos, purificadas pela metamorfose da consciência que se anuncia a cada passo que a vemos dar, sozinha ou amontoada nas frias e sombrias celas de uma prisão com as restantes acusadas de cumplicidade com os guerrilheiros do Daesh. Num determinado ponto, ela acaba por proferir um depoimento que ficará como a mais directa, mas também mais ambígua das suas declarações. Ela diz que “ninguém vai para o paraíso”. Está a falar do passado, do presente, do futuro? Significa essa frase, no meio de outras que a denunciam, que o seu rumo mudou? Deixou de aceitar o seu papel passivo de noiva, mãe e combatente, para assumir um outro papel que pode ou não ser um posicionamento militante? Seguramente, voltando de novo ao depoimento de Sérgio Tréfaut, não restam dúvidas de que essa ambivalência constitui uma das mais bem construídas mais-valias de A NOIVA: “Acabei por fazer um filme em contraponto do que via nos media, onde a maioria dos meios ocidentais procurava explicações sociológicas ou psicológicas para algo que continuará sempre a ser misterioso. Nos piores casos, havia repórteres que procuravam colocar-se no lugar da justiça. Assumi que seria interessante fazer o contrário: oferecer ao espectador a ilusão de estar num lugar onde nunca esteve e descobrir uma realidade perturbadora, uma personagem dividida entre dois mundos, sem oferecer um conforto explicativo”.

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A Noiva
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Pergunta número um, a mais perturbadora quando aqui se chega: Quem será afinal esta mulher? Esta adolescente que pensa como uma adulta sairá dali derrotada ou vitoriosa? De facto, crescei e multiplicai-vos, mesmo sabendo que o Paraíso não existe ou, pelo menos, já não está ao virar da esquina. Em última análise, fica o inferno da ideologia que prevalece muito para além dos escombros materiais provocados pela guerra.




A Noiva, em análise

Movie title: A Noiva

Director(s): Sérgio Tréfaut

Actor(s): Joana Bernardo, Hugo Bentes, Lola Dueñas

Genre: Drama, 2022, 81min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Para além da qualidade da realização e argumento de Sérgio Tréfaut, são de destacar outras contribuições: Direcção de Fotografia de João Ribeiro, Montagem segura, económica e incisiva de Pedro Filipe Marques, Direcção Artística eficaz de Hashim Saci. E, claro, a prestação dos actores, sobretudo do conjunto de mulheres em cativeiro onde se destaca a protagonista, Joana Bernardo.

CONTRA: Nada.

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