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As Mãos Sobre a Cidade, a Crítica | Rod Steiger lidera a clássica obra de Francesco Rosi

O cinema clássico italiano regressa a Portugal com a “As Mãos Sobre a Cidade” de Francesco Rosi.

Em “Le Mani Sulla Città” (As Mãos Sobre a Cidade), 1963, de Francesco Rosi, que a Leopardo Filmes e a Medeia Filmes nos dão agora a ver em estreia numa excelente cópia restaurada (na verdade, reposição de um clássico do cinema italiano, política e socialmente empenhado), o realizador concentra a sua e a nossa atenção sobre as múltiplas faces da especulação e corrupção imobiliária na cidade que o viu nascer, a sempre bela, controversa e misteriosa Nápoles, ali mesmo ao lado do  imprevisível  vulcão Vesúvio. Para além dessa matéria sempre controversa e movediça, avançou sem papas na língua contra os caminhos cruzados das numerosas cumplicidades urdidas entre corruptores e corrompidos na alta e baixa roda das negociatas de natureza económica.

ESCOMBROS DA POLÍTICA E DERROCADA DA PLUTOCRACIA URBANA

Esquemas manhosos, maioritariamente protagonizados pelos representantes autárquicos e pela pressão estratégica dos modelos de investimento pouco recomendáveis defendidos por empresas capitalistas cuja ambição passava e continua a passar pela construção desenfreada e a qualquer preço, mesmo que isso implique situações limite que podem ser perigosas e, como veremos, põem de facto em risco a segurança e a própria vida dos cidadãos que habitam nos bairros degradados por falta de manutenção adequada, os quarteirões que se quer deitar abaixo sem precaver o futuro e o bem-estar de quem lá mora. Como disse, situações a que iremos assistir ao longo do filme e de forma exuberante nos primeiros e, a esse nível, assombrosos minutos. De uma forma consistente, mais uma vez sem rodear o que precisa de ser dito e sem recorrer a floreados desnecessários, Francesco Rosi planifica a matéria primordial da ficção ao redor da denúncia dos problemas levantados pela derrocada de um prédio.

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Em suma, indo directo ao assunto lança um repto ao espectador: olha para o que está mal e julga de acordo com a análise concreta da situação concreta. Logo a abrir e antes mesmo do genérico inicial vemos uma imensa cratera urbana e ao fundo uma fileira de imóveis que se erguem perante os olhos dos que ouvem, com mais ou menos entusiasmo, um plutocrata da indústria imobiliária, Eduardo Notolla (interpretado por Rod Steiger, que contracena com uma larga maioria de actores não-profissionais). Ele aponta as qualidades sonantes dos investimentos que se podem fazer em solos considerados como zona agrícola e que, naquele início dos anos sessenta do Século XX em Itália, podiam valer qualquer coisa na ordem dos 300, 500 ou até 1000 liras por metro quadrado. E sublinha o empreendedor que, se fossem comprados e o Plano de Urbanismo fosse alterado de modo a encaixar a expansão da cidade para aquelas ditas paragens rurais, ampliando igualmente o quadro geral dos seus interesses particulares e dos que com ele se conluiassem, o mesmo solo passaria a valer 70 000 liras ou mais.




Dito de outro modo, obtinha-se cinco mil por cento de lucro. E quem assim fala acrescenta: “Isto é o ouro dos nossos dias. O que pode ser melhor que isto? O comércio? A indústria?”. E logo a seguir, referindo com ironia sarcástica aquilo que na altura se apelidava como a perspectiva de um novo fôlego para o “Renascimento industrial do Sul”, atira para cima dos seus interlocutores o que no fundo eles queriam ouvir: “O que estou a propor é uma situação que não gera preocupações nem pressupõe grande esforço para se atingir os objectivos. Tudo lucro, e sem riscos”. Mas as forças do Destino são como a lava do vulcão que um dia destruiu uma outra grande cidade, Pompeia. E foi assim que um belo e negro dia se assistiu nas margens da imensa baía de Nápoles ao colapso de um prédio que sofrera um impacto estrutural provocado pela demolição de um outro prédio adjacente. E adivinhem quem era o promotor imobiliário a quem devia assacar-se a responsabilidade pelo sucedido?

As Mãos Sobre a Cidade
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Isso mesmo, o conselheiro municipal Eduardo Notolla, sobretudo o seu filho, que ele se apressa a esconder em local afastado da urbe até que o escândalo desencadeado pelo nefasto acontecimento fosse remetido pelas portas giratórias da corrupção moral e financeira para os arquivos bolorentos, ou melhor, bafientos e venenosos da memória. Todo o filme será daqui em diante subordinado ao processo de inquérito desencadeado pelo poder local e pelos deputados da esquerda que num ou noutro ponto chegam mesmo a receber o apoio de representantes das forças políticas situadas ao centro. O desabar descontrolado do edifício, que Francesco Rosi e a sua equipa filmam com invulgar realismo, contrasta com a aparente firmeza dos que no Consiglio Comunale manipulam as decisões a favor deste ou daquele círculo íntimo e mais ou menos limitado de pessoas interessadas em perpetuar o business as usual. São mais brandas e menos exaltadas as vozes dos cidadãos afectados pelas decisões político-administrativas do que as vozes dos consiglieri.

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Tudo na assembleia municipal parece um circo, uma confusão infame, mas porventura calculada, onde ninguém se faz ouvir no seio de um ruído ensurdecedor de acusações, provocações e demais manobras para manter o status quo dominante. Só a custo e com grande perseverança se consegue ouvir uma voz discordante, a que não se cala e não aceita o que a maioria insiste em dar como o quadro único das soluções viáveis. Estamos num período em que quem mandava na cidade de Nápoles era a direita conservadora. Dito isto, o filme irá ser balizado pela rota de colisão iniciada por Eduardo Notolla contra alguns notáveis do seu próprio partido e, contra ventos e marés, será ele a protagonizar o dilema maior de continuar ou não continuar pela via que elegera, acabando por sucumbir a uma outra derrocada, desta vez de natureza moral e política, num filme que se organiza de forma muito competente como um retrato impiedoso dos que se movimentavam (enfim, movimentam) no seio da classe dirigente italiana, assim como das grotescas máscaras que servem para esconder o rosto dos que usam e abusam do poder que lhes foi atribuído.

As Mãos Sobre a Cidade, a Crítica

Movie title: Le mani sulla città

Director(s): Francesco Rosi

Actor(s): Rod Steiger, Salvo Randone, Guido Alberti, Angelo D'Alessandro

Genre: Drama, 1963, 101min

  • João Garção Borges - 95
95

Conclusão:

PRÓS: Em 1963, “As Mãos Sobre a Cidade” recebeu o Leão de Ouro, prémio máximo do Festival de Veneza.

Já o disse antes, mas nunca será demais repetir: nota 100 para o imaculado restauro que nos permite apreciar no seu maior esplendor, sobretudo, a excelente fotografia de Gianni di Venanzo.

CONTRA: Nada.

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