Arcane T2, a crítica | Um espetáculo visual na Netflix com alma fragmentada
Arcane redefiniu os padrões da animação numa narrativa serializada, mas será que a segunda temporada consegue manter esse estatuto revolucionário?
AVISO: SPOILERS
Confesso, sem pudor ou hesitação, que a primeira temporada de “Arcane” ocupa um lugar sagrado no meu panteão pessoal de obras narrativas. Atribuí-lhe inicialmente uma classificação de 9/10, avaliação essa que, com o passar do tempo, só se solidificou mais profundamente nas minhas convicções críticas. A sua mestria na conjugação de elementos narrativos, visuais e temáticos estabeleceu um novo paradigma não só para a animação, mas para a narrativa serializada como um todo.
Aproximei-me desta segunda temporada com um misto de entusiasmo febril e cautela. A história do entretenimento está repleta de segundas partes que não conseguiram igualar a magnificência dos seus predecessores. No entanto, se alguma equipa criativa tinha o potencial para manter tal nível de excelência, seria certamente a Fortiche e a Riot Games.
O início promissor de Arcane T2
Os primeiros episódios da segunda temporada mantêm a mestria técnica da temporada anterior, com uma progressão diegética que retoma exatamente onde a primeira terminou, em Piltover, após o ataque de Jinx (Ella Purnell ) ao Conselho. A mise-en-scène inicial é deslumbrante, com um trabalho de câmara que rivaliza qualquer produção cinematográfica contemporânea.
Contudo, à medida que a temporada avança, surgem fissuras na estrutura narrativa. A gestão temporal é mal executada, com a deambulação de Caitlyn (Katie Leung) e Vi (Hailee Steinfeld) por Zaun a carecer de ancoragem temporal, o que cria dissonância com os eventos em Piltover que envolvem Jayce (Kevin Alejandro) e Ekko (Reed Lorenzo Shannon). Um dos aspetos mais preocupantes é a forma como a agência das personagens é comprometida em prol de conveniências narrativas. Os Firelights, antes uma força organizada, desaparecem inexplicavelmente durante eventos críticos, o que mina a verosimilhança do mundo estabelecido na primeira temporada.
Particularmente dolorosa é a transformação de Heimerdinger (Mick Wingert), cuja alteração de carácter contradiz o arco da primeira temporada e enfraquece as suas intervenções.
As inconsistências começam a acumular-se:
- A ausência prolongada de Viktor (Harry Lloyd), especialmente considerando a sua conexão vital com o Hexcore;
- Decisões que privilegiam o espetáculo visual em detrimento da lógica interna;
- Um sistema de causalidade dependente de coincidências forçadas.
Do ponto de vista técnico, a temporada mantém e às vezes supera os padrões da primeira. A animação continua revolucionária, com fluidez e expressividade excecionais. As performances são fantásticas, com Ella Purnell e Hailee Steinfeld a brilhar nos seus papeis. A direção artística é impecável, criando enquadramentos dignos de uma galeria de arte. Contudo, a excelência técnica não mascara as falhas narrativas que começam a corroer os alicerces desta temporada.
A fragilidade do tecido narrativo
À medida que a temporada progride para o seu segmento intermédio, as fissuras previamente identificadas desenvolvem-se em verdadeiras fraturas estruturais. A narrativa, que na primeira temporada se desenvolvia com uma lógica clara, começa a apresentar falhas.
Particularmente problemática é a conceptualização dos sistemas de segurança do Hexcore. A ideia de que uma tecnologia avançada não tenha salvaguardas que não coloquem em risco Zaun é incoerente com o ethos científico de Piltover. Esta decisão narrativa não só diminui a credibilidade dos seus criadores – Jayce e Heimerdinger – como também sugere uma preguiça argumental que era ausente na primeira temporada. Jayce, membro do conselho, não faz nada para impedir o abuso de sua tecnologia. E a série finge que decisões sobre a tecnologia Hextech podem ser feitas sem o criador, ou um dos maiores membros do conselho, envolvido. Um membro que passou a primeira temporada inteira a lutar para que a mesma não fosse usada depois de acidentalmente matar uma criança. Dois grandes pilares da serie têm de agir de forma completamente contraditória para que isto funcione.
A metamorfose de Caitlyn numa líder militarista representa um dos aspetos mais problemáticos desta fase da narrativa. Esta transição, que podia ser um estudo sobre trauma e poder, é abrupta e parece quase “character assassination”. A ausência de suporte narrativo para esta evolução resulta numa dissonância cognitiva para o espectador informado.
Dissonância temática
A exploração temática, antes uma das forças da série, está diluída:
- Os diálogos entre Jayce e Ekko sobre Hextech carecem da profundidade da primeira temporada e substituem conversas mais necessárias.;
- O conflito moral de Caitlyn surge como artificial, desprovido do desenvolvimento necessário para sustentar o seu peso dramático;
- A dicotomia Piltover/Zaun torna-se um maniqueísmo simplista.
O problema da temporalidade
A gestão temporal continua a ser um calcanhar de Aquiles significativo. Eventos que exigiriam desenvolvimento prolongado são comprimidos em montagens musicais – um dispositivo que, embora visualmente impressionante, serve frequentemente como muleta narrativa para evitar o trabalho árduo de desenvolvimento de personagem orgânico. Tantos saltos temporais e desenvolvimentos do mundo e das personagens acontecem off-screen, é frustrante.
O rico universo estabelecido na primeira temporada sofre de uma notável erosão:
- Sistemas cruciais para a narrativa aparecem e desaparecem conforme a conveniência narrativa;
- A logística da cidade, antes meticulosamente estabelecida, torna-se nebulosa;
- As dinâmicas de poder entre fações perdem a sua complexidade anterior.
A redenção parcial
Após uma trajetória maioritariamente descendente, a temporada encontra finalmente o seu momento de maior brilhantismo no sétimo episódio – uma hora de televisão que serve como uma lembrança agridoce do potencial desperdiçado desta temporada. Este episódio representa uma anomalia fascinante no tecido narrativo da série, oferecendo uma lufada de ar fresco através da sua premissa de universo alternativo.
A decisão de explorar uma realidade alternativa podia facilmente ter-se transformado num exercício de autoindulgência narrativa. No entanto, o episódio consegue transcender as expectativas através de:
– Uma execução técnica sublime que eleva ainda mais os já impressionantes padrões de animação da série;
– Uma estrutura narrativa que serve tanto como comentário meta-textual sobre as escolhas das personagens como história independente;
– Um equilíbrio delicado entre fanservice inteligente e desenvolvimento significativo de personagem
Os episódios finais: Um regresso aos problemas
Infelizmente, após o ponto alto do sétimo episódio, a narrativa volta a tropeçar nos seus próprios pés:
- Resoluções apressadas de arcos narrativos estabelecidos ao longo da temporada;
- Decisões de personagens que parecem motivadas mais pela necessidade de chegar a um determinado clímax do que por uma progressão orgânica;
- Uma conclusão que, embora visualmente deslumbrante, carece da ressonância emocional que caracterizou o final da primeira temporada.
É justo questionar se as expectativas estratosféricas criadas pela primeira temporada estão a contribuir para uma receção mais crítica desta segunda iteração. No entanto, mesmo tendo isso em consideração, as falhas identificadas ao longo desta análise são problemáticas do ponto de vista da construção narrativa. A segunda temporada de “Arcane” apresenta-se como um estudo fascinante sobre os desafios de dar seguimento a uma obra-prima. Do ponto de vista técnico, representa um novo patamar na animação televisiva. No entanto, as suas conquistas visuais não conseguem mascarar as suas falhas narrativas fundamentais.
A temporada não é, de forma alguma, um fracasso – momentos como o sétimo episódio demonstram que a magia da primeira temporada ainda pode ser recapturada. No entanto, a inconsistência na qualidade narrativa resulta numa experiência significativamente menos impactante que a sua antecessora.
Veredicto Final
Se a primeira temporada de “Arcane” merecia o seu 9/10 – uma avaliação que só se fortaleceu com o tempo – esta segunda temporada estabelece-se como um 6.5/10: tecnicamente brilhante mas narrativamente irregular. Representa um exemplo clássico de como excelência técnica, embora crucial, não pode compensar totalmente por falhas fundamentais na construção narrativa.
Arcane T2, a crítica
Name: Arcane
Description: "Arcane" segue a história de dois mundos em conflito: a próspera cidade de Piltover e a oprimida Zaun, localizadas no universo de "League of Legends". A narrativa explora a origem de figuras icônicas como Vi e Jinx, e como as suas jornadas pessoais se entrelaçam com a ascensão de uma tecnologia poderosa chamada Hextech. À medida que tensões políticas e sociais aumentam, as personagens enfrentam dilemas morais, lealdades divididas e o impacto das escolhas que fazem, levando a um confronto que ameaça equilibrar os destinos de ambos os mundos.
Author: Christian Linke and Alex Yee
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Vítor Carvalho - 65
Conclusão
A segunda temporada de “Arcane” mantém a excelência técnica da primeira, com animações deslumbrantes e uma direção artística impecável. No entanto, a narrativa sofre de falhas estruturais significativas, como inconsistências no desenvolvimento das personagens, gestão temporal deficiente e escolhas de conveniência que enfraquecem a profundidade do enredo. Embora ainda ofereça momentos de grande brilho, como o sétimo episódio, a temporada falha em capturar a magia da obra original, resultando numa experiência menos impactante e coerente.
Pros
- Técnica Impressionante: A animação continua revolucionária, com fluidez e expressividade excepcionais.
- Direção Artística: A criação de cenários e enquadramentos mantém a qualidade impressionante, com estética de alta qualidade, digna de uma galeria de arte.
- Exploração de Realidade Alternativa (Episódio 7): Apresenta uma narrativa fascinante e visualmente sublime, equilibrando fanservice e desenvolvimento de personagens.
- Expansão do Universo: Continuam a explorar com profundidade o mundo de Piltover e Zaun, incluindo elementos que expõem o impacto das decisões tecnológicas.
- Personagens Complexas: Algumas personagens continuam com arcos complexos e emocionantes, mantendo o seu apelo.
- Impacto Visual: Os visuais mantêm-se deslumbrantes, com momentos cinematográficos que continuam a impressionar e a enriquecer a narrativa.
Cons
- Problemas de Gestão Temporal: Muitos eventos importantes ocorrem off-screen ou em montagens rápidas, prejudicando o desenvolvimento orgânico das personagens e a lógica da narrativa.
- Inconsistências na Narrativa: A falha na coerência dos eventos e decisões de personagens, como o desaparecimento dos Firelights e a transformação forçada de Heimerdinger, diminui a credibilidade do universo.
- Dissonância Temática: A exploração de temas como o conflito entre Piltover e Zaun perde profundidade, tornando-se simplista e maniqueísta.
- Falhas no Desenvolvimento de Personagens: Transformações abruptas, como a mudança de Caitlyn para uma líder militarista, carecem de apoio narrativo, resultando numa sensação de “character assassination”.
- Falta de Complexidade nos Conflitos Morais: A redução dos dilemas morais que definiram a primeira temporada torna as escolhas das personagens mais previsíveis e menos impactantes.
- Decisões Narrativas Convenientes: A narrativa depende de coincidências forçadas e mudanças abruptas nas dinâmicas de poder, comprometendo a imersão e a lógica interna do mundo.
- Resoluções Apressadas: Os arcos narrativos são encerrados de maneira apressada, sem o desenvolvimento adequado que a série se destacou na temporada anterior.
- Subutilização de Personagens Secundários: Algumas figuras secundárias que foram bem desenvolvidas na temporada anterior são deixadas de lado ou não têm um papel significativo no desenvolvimento da história.