Corações Partidos – análise

“Corações Partidos,” também conhecido como “Beating Hearts” e “L’amour ouf” no original francês, é o mais recente filme do ator tornado realizador Gilles Lelouche. A longa-metragem com Adèle Exarchopoulos e François Civil competiu no Festival de Cannes e conquistou 13 nomeações para os Prémios César.

Quando um ator decide tentar o ofício de realizador, a cinefilia internacional sustém a respiração em espera expectante. Afinal, já muitas foram as estrelas que fizeram essa mesma viagem, afirmando-se tão bons atrás das câmaras como diante delas. No entanto, não diria que o sucesso seja norma. De facto, é costume testemunhar grandes atores provarem ser cineastas medíocres, sem aptidões para as particularidades da linguagem estética deste meio e suas gramáticas audiovisuais. Normalmente, o foco fica todo nos atores, quiçá também no trabalho de personagem, descurando os outros aspetos da sétima arte.

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Talvez por isso, Gilles Lellouche se destaque tanto dentro deste contexto de atores tornados realizadores. Nas últimas décadas, ele tem vindo a ganhar fama como intérprete, alcançando sucesso tanto em registo dramático como na comédia. O currículo é extenso, englobando grandes fenómenos comerciais e cinco nomeações da Academia Francesa. Enfim, enquanto ator, ele não tem nada que provar. Como realizador, a história é bem diferente, tendo esse percurso profissional começado com algumas curtas e videoclips nos anos 90. A primeira longa chegou em 2004 na forma de “Problemas de um Dorminhoco,” uma comédia ligeira sem grande impacto.

Só catorze anos depois é que Lellouche assinaria um segundo projeto da mesma envergadura, ainda num tom de brincadeira leviana. Mas, desta vez, “Ou Nadas ou Afundas” foi um sucesso com a crítica e o público, abrindo novas portas a um ator que agora encontrava prestígio equiparável na cadeira de realizador. Só mesmo o triunfo popular dessa fita justifica a inclusão de Lellouche entre os autores em competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado. Não que “Corações Partidos” se assemelhe às comédias passadas do cineasta, quer seja em tom ou ambição formal.

Uma história de amor em tons de safiras e rubis.

coracoes partidos critica
© NOS Audiovisuais

Na mesma medida em que “Problemas de um Dorminhoco” e “Ou Nadas ou Afundas” eram aquele típico filme do ator-realizador, esta obra mais recente é quase o seu oposto absoluto. O trabalho de câmara está muito acima de qualquer preocupação com os atores ou suas personagens, o texto subalterno a uma explosão de criatividade estilística. Exploram-se lugares comuns ao nível narrativo, ao mesmo tempo que Lellouche e sua equipa criativa fazem tudo o possível para surpreender o espectador com uma panóplia de proezas técnicas, desde maximalismos fotográficos a uma cena de dança no limiar do género musical.

“Corações Partidos” conta a história de duas almas apaixonadas, abrangendo duas décadas nas vidas entrelaçadas de Jackie e Clotaire. Ela vem da classe média-alta, habituada ao conforto material, mas sempre agrilhoadas a maladias emocionais que a seguem desde a meninice até à idade adulta. Por outro lado, Clotaire é um rapaz com um passado mais conturbado, existindo num patamar socioeconómico muito mais inferior, onde a barreira entre o doméstico e o marginal é extremamente porosa. Um miúdo rebelde no seio de uma família de acolhimento sem meios para sustentar tanta criança, ele é facilmente seduzido pelo mundo do crime.


Dito isso, algo mágico acontece quando os dois adolescentes se conhecem, tendo Jackie sido forçada a ingressar na escola pública após ser expulsa do colégio Católico. A parelha trava uma amizade vibrante na vertigem do romance e, num abrir e fechar de olhos, temos um “Romeu e Julieta” para o Nordeste Francês no fim do século XX. Todo o mundo parece estar contra eles e, no fim do primeiro ato destes “Corações Partidos,” Clotaire acaba atrás das grades, condenado a doze anos de prisão. O filme reencontra-os no fim dessa sentença, separados e distantes, mas em clara rota de colisão. Seu amor é daquelas constantes da natureza, imparável e incontornável.

Oxalá essa qualidade fosse percetível para a audiência. Não me levem a mal, pois Mallory Wanecque e Malik Frikah dão tudo o que têm como as versões juvenis dos protagonistas, demonstrando a sagacidade dos diretores de casting e a habilidade de Lellouche com atores inexperientes. Só que eles são traídos por um guião perdido em clichés, carente de especificidade, mais rascunho que grande épico romântico. Parte do problema devém do romance de Neville Thompson em que o filme se baseia, mas Audrey Diwan e os restantes coargumentistas merecem a maior percentagem da culpa. E nem Lellouche consegue colmatar a calamidade enquanto realizador.

Lellouche não sabe aproveitar a excelente equipa.

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© NOS Audiovisuais

Porque, não obstante a expressividade da sua câmara, todo o aparto formalista se manifesta como uma tentativa desesperada de tornar o material entediante em algo que, sem ser realmente empolgante, pelo menos tem a aparência de dinamismo e drama. Laurent Tangy faz milagres na fotografia, puxando pelo antinaturalíssimo com luzes coloridas e coreografias excessivas. Um conflito doméstico torna-se numa dança frenética através da feitiçaria de Tangy, com composições trabalhadas a surgirem pelo meio do plano sequência. Num sonho ao som dos Cure, um holofote segue os enamorados e, na discoteca, o ar brilha como safiras enquanto os corpos transpiram rubis.

A música original de Jon Brion também se esmera para contrariar a arritmia mortal destes “Corações Partidos,” qual desfibrilhador a tentar trazer a vida de volta a um organismo fílmico a dar as últimas. Amo especialmente os toques de ópera eletrónica que rugem na banda-sonora em cenário de fábrica, como se Jackie e Clotaire se tivessem transmutado em Orfeu e sua Eurídice em fuga de um Hades pós-industrial. Infelizmente, estes tesouros não chegam para compensar as muitas falhas desta narrativa, todas elas exacerbadas por questões estruturais e uma montagem em constante défice de energia.

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O resultado enfada e quase adormece, um embalo para o espectador que deveria ter o coração aos pulos ao invés de combater a inconsciência. Por outras palavras, nada justifica a duração de duas horas e 46 minutos, especialmente quando as personagens permanecem esbatidas e inanas até ao último suspiro. Louvo Adèle Exarchopoulos que muito faz para tornar a depressão de Jackie em fenómeno visceral sem, no entanto, contrariar o maximalismo patente nas estilizações de Lellouche e companhia. Como sempre, a atriz esmera-se e quase chega ao estado de graça nos momentos mais sôfregos da história.

Verdade seja dita, “Corações Partidos” não merece o seu talento, pois nunca o aproveita devidamente. Só Deus sabe como é que este fracasso ambicioso conseguiu lugar de destaque na programação de Cannes e tanto amor dos César. Enfim, gostos não se discutem e ainda bem que alguém consegue amar esta proposta cujo esforço é tão evidente como as suas insuficiências, transversais a quase todas as áreas do projeto sem contar com aquelas três maravilhas – Tangy, Brion, Exarchopoulos. Palmas para Lellouche por saber formar uma equipa estupenda, mas muita vaiada pelas muitas formas como ele a desperdiça. Pelo menos, não se tratam dos erros habituais de atores feitos realizadores.

Corações Partidos

Conclusão:

  • “Corações Partidos” conta uma história previsível e enfadonha de amor proibido, ternura e violência de mãos dadas, através de uma gramática cinematográfica onde o excesso estético é regra. Essa vertente estilizada dá personalidade à obra de Gilles Lellouche sem justificar as suas muitas fragilidades ao nível narrativo, temático e rítmico. Essas últimas falhas são especialmente prejudiciais, pois aliam-se a uma duração de duas horas e 46 minutos para criar uma experiência mais próxima do teste de esforço que do êxtase artístico.
  • Dito isso, há muito que apreciar num trabalho cujas partes individuais são bem mais meritosas que o todo. Destacamos a fotografia de Laurent Tangy e a música de Jon Brion, dois feitos tão impressionantes e vistosos que, só por si, já justificam o preço do bilhete de cinema. Adèle Exarchopoulos também é exemplar, confirmando ser um dos grandes nomes na produção francesa contemporânea. Ela já era sublime na “Vida de Adèle” em 2013. Desde então, só tem melhorado.
  • No seu caso, a nomeação para o César de Melhor Atriz é amplamente justificada. Não podemos dizer o mesmo de muitas daquelas treze indicações que incluíram Montagem e Realização – loucura total!
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