Cruellas do Passado | As modas de Glenn Close
A nova “Cruella” da Disney é uma diva da moda com figurinos a condizer. Contudo, já a antiga encarnação da vilã era conhecida pelo seu esplendor estilístico. Em “101” e “102 Dálmatas”, Glenn Close fez de Cruella vestindo um ostentoso guarda-roupa desenhado por Anthony Powell, figurinista vencedor de três Óscares.
Não há vilã da Disney com mais estilo ou extravagância que Cruella De Vil. Verdade seja dita, também não há nenhum antagonista tão fortemente ligado ao mundo da moda. Em 1996, quando os estúdios decidiram refazer a história dos “101 Dálmatas”, a vilã foi ligeiramente mudada. De uma socialite tresloucada, Cruella passou a ser uma estilista perigosamente obcecada com peles. Esta transformação colocou um foco ainda maior no seu traje, pelo que a Disney entregou a responsabilidade de criar tais vestes a um artista de grande prestígio. Anthony Powell já tinha três Óscares ganhos quando vestiu Glenn Close no papel de Cruella.
A atriz é uma apaixonada pela arte dos figurinos, sendo que coleciona todos os visuais que enverga em frente às câmaras, inclusive as peças exuberantes de Cruella. Como tal, ela teve grande interesse no processo criativo de Powell e os dois trabalharam juntos para conceber uma personagem que é tanto um ícone estilístico, uma tradução de estéticas animadas e uma paródia das modas contemporâneas. Os resultados da sua colaboração são estrondosos, tendo ares de Mugler e uns cheirinhos de Westwood, muitos padrões animais e quilos e quilos de peles falsas. É claro que, dentro do universo fílmico, nenhum pelo é sintético, mas sim uma prova da impiedade sanguinária de Cruella.
Barbara Matera foi a costureira principal encarregue de materializar as ideias de Powell e seu trabalho é uma milagrosa interseção da moda, do figurino, e até do drag. Apesar de ser impossível replicar as silhuetas angulares da figura animada, Close e companhia tentaram sugerir proporções mais perto da ilustração que da biologia natural. Não só Cruella usa saltos agulha e chumaços aguçados, como sua cintura está espartilhada. Em termos práticos isto também ajudou a atriz a entrar no papel e não perder a figura entre os enormes volumes de pelo e plumas com que Powell a cobriu. Felizmente, Matera executou todos os visuais com sublime precisão, desde o primeiro conjunto até ao último.
A entrada de Cruella é marcada pelo pormenor do figurino. Antes de vermos a cara da atriz, vislumbramos os seus sapatos brilhantes, o manto de peles que se arrasta pelo chão, o toucado gigante e, é evidente, a cigarrilha vermelha segurada entre garras afiadas. Trata-se de uma visão da mulher de negócios tornada em demónio das histórias de meninos. Talvez o pormenor mais perfeito seja mesmo o véu de rede que distingue Cruella como uma figura fora de tempo. Todos em seu redor se vestem como pessoas em 1996, mas a vilã vive noutra dimensão estilística, onde tendências e gostos contemporâneos são temas sem interesse.
Powell fez questão de sempre acrescentar pormenores animalescos a todos os figurinos, mesmo aqueles em que tais detalhes se manifestam com mais subtileza. Vejamos a pregadeira feita em forma de dente e marfim que adorna um dos fatos pretos da diva. Ao invés de envergar um roupão corriqueiro para descansar em casa, ela aparece num vestido de celofane com enormes mangas rematadas com penos de galo. Noutras ocasiões, os recortes no tecido simulam os dentes de um tubarão, enquanto uma pulseira ligada ao anel simula a forma de uma cobra de joalharia. Acima de tudo, Cruella é um predador voraz, sempre à caça de nova vítima.
São os seus trajes mais exagerados que perduram na memória, contudo. Falamos do casaco de zebra com que ela invade a casa de Anita ou a capa tigrada que a senhora De Vil enverga quando tenta comprar os cachorrinhos. Acima de tudo, referimo-nos ao derradeiro conjunto vestido por Glenn Close em “101 Dálmatas”, um pesadelo de vermelho e preto que referencia o figurino no filme de animação em termos de forma e volume. As botas de vinil brilhante e a bolsa listrada como uma doninha são os acessórios perfeitos. Powell e Matera tiveram de criar várias cópias destas peças devido à sequência em que os animais de uma quinta se revoltam contra Cruella e protegem os dálmatas indefesos. Glenn Close amou tanto o look que foi à estreia do filme vestida como o figurino vermelho e preto.
Os “101 Dálmatas” tem um guarda-roupa espetacular, é certo. Contudo, nada se compara à fabulosa opulência de “102 Dálmatas”. Nesta sequela, Cruella é “curada” da maluquice, tornando-se em Ella. Assim é até ao dia em que o som do Big Ben desfaz a terapia e ressurge a malvadez desta vilã clássica. Com tais transformações, também o figurino e a maquilhagem se alteram, dando a Powell e Close uma oportunidade para explorar o visual de Cruella nos extremos da moralidade. Como Ella, a estilista assume-se como uma figura quase santificada e os figurinos refletem isso mesmo, apelando a estéticas dos anos 60 e até à silhueta das freiras.
Como sempre, vestir Cruella – ou Ella – é um exercício em exagero. Ao invés de espartilhados, estes figurinos da estilista benigna exploram as possibilidades da amorfia e da saia tipo campânula. A certa altura, como já não usa peles ou penas, Glenn Close apresenta-se coberta de flores de organza e seda, noutra cena está coberta por plástico trabalhado para parecer folhos. Nesta medida, apesar de espiritualmente redimida, a vilã feita amiga ainda ocupa espaço cénico com volumosas criações. Só que, sem o peso do pelo, têm de ser estes materiais mais estranhos que conferem a impressão de extravagância. O mais interessante figurino, contudo, é aquele que Glenn Close veste aquando da sua metamorfose monstruosa.
À medida que Ella regressa à loucura de Cruella, também o seu visual retorna aos paradigmas da antagonista dos “101 Dálmatas”. Um fato preto-e-branco em paródia da Chanel perde as linhas suaves e explode em ombros de Pagode e lantejoulas. Um colar de pérolas e moedas torna-se numa juba de espigões pretos, enquanto as luvas brancas escurecem e ganham as aguçadas unhas postiças com que Cruella assinala sua qualidade bestial. Depois desta cena, a personagem volta a vestir-se à boa maneira de uma vilã infernal, mas tem de fingir estar redimida na cara das autoridades. Isso cria uma interessante dicotomia.
Nos seus esquemas secretos com o esfolador Le Pelt, Cruella enverga trajes que refletem a sua verdadeira interioridade. Num fato bem alfaiatado, ela quebra a monotonia da lã preta com um forro em brocado escarlate e apliques em forma de dragão Chinês. Noutra cena, vemo-la num vestido muito reminiscente dos visuais do filme anterior. Enquanto conspira com o colega sobre o redesenho do casaco dálmata, Cruella é uma visão de padrões felinos que se estendem até uma gola de penas espampanantes, listradas em imitação tigrada. O que mais fascina, contudo, é o que Cruella veste quando ainda tenta fingir que está curada da maldade.
Para tramar o infeliz dono de um canil, a vilã enverga padrões gráficos em preto-e-branco, uma espécie de pelo dálmata em modo abstrato, feito de algodão ao invés de animal. No interior, contudo, vemos um reflexo dos segredos cruéis desta senhora sob a forma de forro de pele de zebra. Há que dizer que, como sempre, estes materiais são todos sintéticos, pois Powell não queria usar peles verdadeiras num filme tão consistente na sua crítica de tais práticas. Outro figurino com ideias semelhantes é uma visão de organza e cetim bordado para parecer labaredas solidificadas. Uma saia coberta por plumas em tons de vermelho, laranja e amarelo continua o motivo fogoso. Glenn Close queria parecer como um demónio a sair diretamente das chamas do inferno e o efeito é muito bem conseguido.
O último figurino desta Cruella de outros tempos é uma criação que tenta referenciar o vermelho e negro do filme anterior. Desta vez, o casaco de pelo básico sofreu uma alteração significativa, tornando-se num complexo edifício de riscas e caudas pendulares. O vestido de baixo é todo coberto por lantejoulas pretas e o toucado tem espigões e picos, penas em forma de agulha que dão a impressão que a cabeça da vilã está em processo de explosão. Como aconteceu antes, este figurino teve de ser feito em muitas versões pois, no clímax, Cruella é derrotada pelos cachorrinhos no cenário de uma pastelaria francesa. Para se vingarem, os dálmatas cozinham a inimiga na forma de um bolo e assim Glenn Close acaba os filmes no seu traje mais estapafúrdio de todos – um doce invertido decorado com pepitas arco-íris e saliva de buldogue.
Todos estes figurinos compõem um guarda-roupa sem precedentes na história da Disney. Glenn Close é uma verdadeira drag queen no papel de Cruella, tão exuberante quanto deliciosa, predisposta ao ridículo e à performance da malvadez absurda. Os figurinos de Anthony Powell para o segundo filme foram justamente nomeados para o Óscar e, verdade seja dita, deviam ter ganho o troféu ao invés de “Gladiador”. Quiçá a nova encarnação de “Cruella” terá mais sucesso no que se refere aos prémios de cinema. Uma coisa é certa, por muito grande que seja o espólio de figurinos de Glenn Close, o guarda-roupa que Emma Stone usou no novo filme é muito mais vasto. É claro que quantidade nem sempre significa qualidade. Veremos isso noutro artigo.
Não percas a nossa futura análise do guarda-roupa de “Cruella”. O novo filme e estas obras mais antigas estão todos disponíveis no Disney+.