©Leopardo Filmes

Fairytale – Sombras do Velho Mundo, em análise

Com Alexander Sagabashi e Vakhtang Kuchava no elenco, “Fairytale – Sombras do Velho Mundo” faz a sua aguardada estreia em Portugal!

FORÇA SUPREMA, OS QUE JÁ MORRERAM SAÚDAM-TE…!

Lê Também:   Broker - Intermediários, em análise

Estamos na estação mais propícia ao recolhimento, para mim a fuga ao frio do maldito Inverno, um período em que a distribuição cinematográfica em sala se retrai face ao streaming. Entretanto, há poucas semanas estreou a muito aguardada mega-produção AVATAR: THE WAY OF THE WATER (AVATAR: O CAMINHO DA ÁGUA), realizado pelo senhor James Cameron, numa série de multifacetados ecrãs de que apenas recomendo os que nos oferecem uma verdadeira projecção 3D, sem parolices de salpicos de água ou outras idiotices mercantilistas de feira popular. Estamos assim na época dominada pelo rolo compressor que esmaga qualquer concorrência nas bilheteiras e que não merece uma estrela, como já vi dar, nem as cinco estrelas de um deslumbramento meramente digital que não fica bem aos que se querem especialistas desta actividade a que damos o nome de crítica de cinema. Digamos que, se ficarmos apenas por duas componentes maiores de qualquer obra fílmica, as coisas até podiam ficar assim: TECNOLOGIA: 5 (ou 100 na nomenclatura da MHD), HISTÓRIA: 1 (ou 20 na nomenclatura MHD). Dito isto, 5 + 1 = 6 / 2 = 3 (ou seja, 60 na roda MHD). Por mim, analisando outras componentes, dou-lhe mais meia estrela: leia-se por fim, um 70.

Fairytale
©Leopardo Filmes

Mas porque estou eu a falar deste filme a propósito de outro e outros sobre os quais me irei debruçar nesta e nas próximas semanas? Na verdade, qualquer filme que agora se apresente para estreia faz-me lembrar os gladiadores a entrarem na arena e a dirigirem-se ao imperador perante o qual gritavam “MORITURI TE SALUTANT”, esse autêntico grito de força e coragem “OS QUE VÃO MORRER SAÚDAM-TE”. De facto, assim vai o mundo da distribuição e exibição que com similar força e coragem continua a lançar filmes atrás de filmes cujas possibilidades de combate são praticamente nulas face ao colosso do realizador canadiano. E, no entanto, alguns desses filmes são os que o público cinéfilo irá fazer perdurar na memória da História do Cinema. Portanto, nada está perdido. E aqui chegado viro a agulha para a obra de que agora inicio a análise individual, SKAZKA (FAIRYTALE – SOMBRAS DO VELHO MUNDO), 2022, num certo sentido a mais fascinante e seguramente a mais difícil de enquadrar no panorama das estreias, uma fantasia experimental realizada pelo visionário mestre russo Alexander Nikolayevich Sokurov.

Lê Também:   A Mulher que eu Abandonei, em análise

Este realizador (nascido em 1951 em Podorvikha, distrito de Irkutsky, na antiga União Soviética), possui inegáveis provas da sua genialidade numa filmografia marcada por um cariz muito pessoal, recheada de grandes momentos da arte cinematográfica que desafiaram e continuam a desafiar as mais redutoras convenções no domínio criativo da manipulação das imagens e sons. Desde cedo, assumindo o controlo de um império de sombras, luz e magníficas sonoplastias como podemos ver, por exemplo, em MAT I SYN (MÃE E FILHO), 1997, RUSSKIY KOVCHEG (A ARCA RUSSA), 2002, OTETS I SYN (PAI E FILHO), 2003, FAUST (FAUSTO), 2011, para citar apenas algumas das suas longas-metragens que estrearam no circuito comercial e puderam ser visionadas no nosso país. Depois de FRANCOFONIA, 2015, mais uma que passou pelos nossos ecrãs, volta agora com a sua magnífica incursão pelos caminhos da mais pura e ousada fantasia baseada na realidade palpável de figuras carismáticas do Século XX, nomeadamente daquelas que protagonizaram os anos mais negros da Segunda Guerra Mundial. Estamos a falar de um elenco de estrelas que na vida real seria muito difícil reunir e muito menos contratar, actores improváveis de um firmamento laico, onírico e proto-religioso, onde as suas personalidades despertam de um modo cíclico e persistente para um confronto entre os próprios e a materialidade irreal de um cenário que podemos considerar um local de passagem, o Purgatório que antecede as portas do Inferno ou do Paraíso. No limite, a via que os conduz ao confronto directo com Deus, não necessariamente o ser omnisciente e omnipresente, mas sim a força suprema que detém o poder de julgar o destino dos homens, mesmo os que se consideram imortais como as divindades. E que elenco vem a ser esse? Nada mais nada menos do que o austríaco-alemão Adolf Hitler, o romano-italiano Benito Mussolini, o georgiano-soviético Josef Stalin, o anglo-saxónico Winston Churchill, contando ainda com a participação especial de Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte. E ainda (como diria Cecil B. DeMille se alguma vez lhe passasse pela cabeça fazer um filme assim) “a cast of thousands”, leia-se, a presença de milhares de figurantes que a certa altura hão-de aparecer sob a forma de um gigantesco magma de mortos, numa série sucessiva de vagalhões cujas ondas de choque atingem a pedreira erguida no meio do nada como um falso altar civilizacional ao efémero poder humano. Monumento multifacetado pelas superfícies de clivagem, onde os citados políticos acabam encurralados, encontrando-se literalmente encostados a uma inquietante fragilidade existencial, não obstante as muralhas de pedra que os protegem, situação que antes não suspeitavam poder ser coincidente com a sua condição de homens poderosos mas de carne e osso.

Fairytale
©Leopardo Filmes

Para conseguir esta proeza de vermos renascer diante dos nossos olhos este grupo muito especial de comparsas, cúmplices, adversários e inimigos, Alexander Sokurov reuniu uma equipa que de forma meticulosa e eficaz procurou em diversos arquivos internacionais as imagens reais das personagens reais que pudessem posteriormente encaixar no puzzle imaginado pelo realizador. Tratou-se de encontrar não a imagem exemplar, a que mais vezes foi usada para efeitos de propaganda ou mera informação circunstancial, mas sim aquela onde o político produzia um esgar, um franzir de sobrancelha, desviava o olhar ou dirigia-o directamente para a objectiva omnipresente nas suas aparições públicas. Tratou-se de usar as imagens assim seleccionadas num contexto em que elas precisavam de ser combinadas e articuladas em movimentos e sequências de interacção, simulando diálogos, produzindo reacções de aproximação ou de repulsa. De igual modo, a mesma equipa investiu na manipulação suprema das emoções que o cinema permite, que está muito para além da simples montagem dinâmica, quando a uma imagem com a expressão corporal e facial reveladora de um significado X lhe atribuiu, por associação a outra imagem, digamos Y, um significado final Z. Finalmente, o realizador rejeitou a ideia de gerar digitalmente imagens falsas das personagens visadas, preferiu antes manipular a verdadeira imagem da verdadeira pessoa. Isso dá-nos uma sensação material dos que ali estão a expor as suas angústias e a vociferar os seus insultos que chega a ser assustadora, por ser demasiado íntima, no melhor e pior sentido da palavra, sobretudo porque nos revela o lado “normal” daquilo que podia ser a sua personalidade escondida, mas nunca o seu lado normal. Este exercício ao longo dos setenta e oito minutos que o filme dura, só por si, já seria matéria de fruição cinéfila mais do suficiente para promover uma visão atenta de FAIRYTALE – SOMBRAS DO VELHO MUNDO e, diria mesmo, sucessivas revisões. Mas há mais. Estas personagens falam entre si, picam-se, provocam-se sistematicamente. De certo modo, no filme e nas circunstâncias em que se encontram não levam ou não querem levar a sério os seus interlocutores. Por isso, as palavras que lhes saem da boca e se ouvem nas suas diferentes línguas (frases dobradas por actores a partir do que disseram na vida real), são o cimento coral e sonoro que introduz neste filme cascatas de humor cáustico e subliminar iluminado por uma luz que fornece aos diálogos o brilho certo e seguro para nos fazer pensar, minuto a minuto, na verdade ou na mentira do que está a acontecer diante de nós. Tudo por fim coadjuvado no seio de um enquadramento gráfico e plástico que abarca a globalidade da produção digital, onde a influência pictórica dominante passa pelas gravuras do francês Gustave Doré (1832-1883), particularmente o seu desenho do Inferno de Dante (talvez a referência mais óbvia para a maioria dos espectadores), e pela pintura barroca do francês Hubert Robert (1733-1808).

Lê Também:   A Vida de uma Mulher, em análise

Fairytale
©Leopardo Filmes

Termino a minha análise (que gostaria que fosse, mais do que uma crítica, um convite para não deixarem de ir a um grande ecrã sentir o impacto desta deslumbrante experiência de arte e cinema) com o delicioso diálogo que logo ao início se estabelece entre Josef Stalin e Jesus Cristo. Estão ambos deitados no seu leito de morte, encerrados nas catacumbas do Purgatório:

Plano de Josef Stalin, como fora fotografado no seu velório oficial: “Cheira a vinho novo. Estou esfomeado. Tenho as mãos e o corpo entorpecidos… Não morri e nunca morrerei…

Plano de Jesus Cristo, deitado numa simples laje ao lado de Josef Stalin. Numa porta próxima vemos Winston Churchill e Benito Mussolini. Continuamos a ouvir Josef Stalin, que se dirige agora a Jesus Cristo: Levanta-te, preguiçoso, veste-te, levanta-te…

Plano médio de Jesus Cristo, que diz: Dói, dói-me tudo… Mas lembro-me de tudo.

Josef Stalin levanta-se e responde: Dói? Então rasteja até ao teu pai! Ele vai curar-te.

E Jesus Cristo interrompe: Não vou… Estou na fila como todos os outros…

Plano de Josef Stalin: Estás na fila… A irritar as pessoas. Estou farto de ti aqui… Continuas a pregar.

Entra um plano de Adolf Hitler, que lança uma provocação: Vestiste-te outra vez, falso generalíssimo… Dormiste vestido com a farda de gala completa.

Fardado, Josef Stalin olha Jesus Cristo imóvel: Já cheiras mal.

Grande plano de Winston Churchill que assistia, aparentemente inquieto: Vá lá. Vá lá. O Juiz está à espera.

Josef Stalin passa ao lado de Winston Churchill: E tu, carequinha, também cheiras mal. Vai-te embora.

Sai da catacumba e continua para Winston Churchill: Duque, não te metas com o gajo. Ele, Cristo, é jovem e bondoso. Pode vir a ser-nos útil.

Próxima paragem, o encontro com a Força Suprema. Um filme indispensável. Não o deixem ser afogado pela água da Pandora dos Na’vi.

Fairytale - Sombras do Velho Mundo, em análise
Fairytale

Movie title: Skazka

Director(s): Aleksandr Sokurov

Actor(s): Alexander Sagabashi, Vakhtang Kuchava, Fabio Mastrangelo

Genre: Drama, 2022, 78min

  • João Garção Borges - 100
100

Conclusão:

PRÓS: Não se encontram muitos filmes que se possam apelidar de inovadores. Este será um que para os devidos efeitos se poderá incluir nessa categoria.

CONTRA: Nada.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply