A História de Souleymane, a Crítica | Abou Sangaré é o Melhor Ator Europeu do ano
“A História de Souleymane” de Boris Lojkine é um dos filmes mais aclamados do ano passado, tendo ganho o European Film Award para Melhor Ator. De facto, Abou Sangaré é uma revelação no papel titular.
O dia começa à meia-noite, quando o alarme toca e lembra os sem-abrigos de Paris que têm de assegurar cama para a noite seguinte. O sistema é meio sádico, mas é assim que os centros de acolhimento funcionam. Depois da marcação – sendo sucedida ou não – é voltar a pousar a cabeça na almofada e dormir mais umas horitas. Chegada a alvorada, o despertar é imposto pelas luzes que se acendem sem aviso e há turnos no acesso às casas-de-banho. No caso de não haver camas, estas preparações fazem-se em lugares públicos, quiçá ao relento. Mas é importante estar apresentável ou as consequências poderão ser terríveis.
Dos arredores para o centro da capital, recolhe-se a bicicleta arrumada na noite anterior e começa-se um dia de recolhas e entregas, tudo à mercê de uma economia gig em que os direitos do trabalhador são um sonho inalcançável. O mais pequeno atraso coloca tudo em risco e nenhuma desculpa serve para apaziguar os clientes em casa ou os cozinheiros nos restaurantes. Assim sendo, lá a bicicleta voa pelas ruas, um frenesim com o perigo de colisão perpetuamente presente na mente daquele para quem cada segundo conta. Para os imigrantes e refugiados em espera de um visto, a situação é pior ainda pois o trabalho em si é ilegal.
O cinema é gerador de empatia e ansiedade.
São pessoas desesperadas que necessitam de fundos para assegurar os documentos e condições do apelo jurídico. Só que a legislação francesa impede o emprego sem visto, atirando as pobres almas para o mundo do trabalho ilícito e abusos laborais. Em muitos casos, estes estafetas dos apps alugam os perfis de cidadãos capazes de assinar os contratos devidos. Em certa medida, convertem-se assim em trabalhadores sem alternativa, sem direitos, que têm que pagar pela mera chance de se sustentar. E no fim de tudo isso, o que mais importa será a sua história, o choradinho feito no pedido de asilo. Se não for convincente, não há documente que ajude.
Esta é a situação de Souleymane, um guineense recém-chegado a França em busca de asilo político. Estes são os seus dias, rotina bárbara e impiedosa, um ritmo alucinante que puxa pela exaustão do homem e de quem o vê. Assistir à “História de Souleymane” de Boris Lojkine é uma experiência chocante, com toda a escolha formal e narrativa em suscitação de ansiedade. Como Ebert disse, o cinema é máquina de empatia e nessas maquinações produz também a aflição de quem se senta na sala escura testemunhando, impotente, o sofrimento alheio. O jogo pode até sugerir alguma autorreflexão e, com ela, um sentimento de culpa.
Afinal, quantos de nós já ficaram a olhar para uma entrega atrasada, acompanhando o ponto no mapa digital, e refilaram sobre a lentidão? Quem não se zangou já com esses trabalhadores, mesmo sem expressar isso diretamente? Quem já não teve vontade de fazer reclamação sem sequer considerar o impacto que isso possa ter na vida desse desgraçado? Vivemos num contexto socioeconómico que promove o individualismo egoísta e, sem nos apercebermos, vamos perdendo a nossa humanidade. Ela é erodida aos poucos, escoriada com cada ocasião em que pensamos nas outras pessoas não como pessoas, mas como provedores de serviços acima de tudo o resto.
Nesse aspeto, “A História de Souleyman” faz pensar no realismo social de Ken Loach e outros realizadores esquerdistas na tradição Europeia. Só que este trabalho não se restringe à perspetiva do Velho Mundo, centrando o imigrante africano enquanto figura totémica e personagem específica. Souleymane representa mais que si mesmo, mas não deixa, por isso, de ser uma presença tridimensional cujo valor vai além do simbolismo político. Aliás, numa das escolhas mais arriscadas do projeto, Lojkine decide retratar o protagonista como alguém com segredos e falhas pessoais, arestas vivas ao invés de alguma idealização exangue. Afinal, a razão pela qual a história de Souleymane o deixa tão nervoso é o facto de ser mentira.
Abou Sangaré é sublime como Souleymane.
Desde que “A História de Souleymane” estreou na secção Un Certain Regard em Cannes que Abou Sangaré tem sido aclamado pela crítica. Chegado o fim do festival, o ator, que nunca tinha aparecido num filme até este projeto, ganhou o prémio para Melhor Prestação. Desde então, o seu perfil só tem aumentado, culminando com uma vitória nos European Film Awards, onde se afirmou acima de nomes muito mais famosos. Todo este furor é justificado, sendo o seu desempenho o tipo de milagre que raramente se vê no grande ecrã. Sem medo e sem pudor, ele rende-se ao papel de Souleymane, dando-nos acesso à sua interioridade ao mesmo tempo que telegrafa a fisicalidade de um homem levado aos extremos da exaustão.
Muitas cenas são construídas com base na observação das suas expressões mais ínfimas, apurando o espetador para mudanças de tom e o modo como o guineense negoceia as interações com uma enorme variedade de personagens. Vai desde a prostração perante autoridades capazes de o destruir, à fome nua e crua na presença de alguém que o quer trapacear, a melancolia agridoce ao falar com uma antiga namorada e a gentileza inesperada para com um cliente idoso. O retrato de personagem é enriquecido por toda uma construção formal onde os mecanismos do thriller são reapropriados para a crítica social – a sonoplastia também ganhou nos European Film Awards!
Os dias passam-se ao lado de Souleymane e o espetador vê desgraça suceder-se a desgraça, o terror constante, até que tudo se precipita na manhã em que ele tem a entrevista que ora lhe irá assegurar asilo ou condenar à deportação. Não querendo revelar pormenores demais, da mentira cai-se para a verdade, sem juízos de valor ou moralidades impostas pelo cineasta sobre a fita. Através de Sangaré, seu monólogo arrebatador, temos uma visão direta para o coração pulsante da personagem, sua alma despida perante a câmara. Trata-se daquele cinema que é doloroso de se ver, tão visceral que o sentimos no corpo, poderoso ao ponto de se alojar no nosso inconsciente e lá permanecer até ao fim dos dias. “A História de Souleymane” é aquele cinema que pode mudar o modo como alguém vê o mundo. O tipo de cinema que pode transformar uma pessoa.
A História de Souleymane, a Crítica
Movie title: L'histoire de Souleymane
Date published: 15 de January de 2025
Duration: 93 min.
Director(s): Boris Lojkine
Actor(s): Abou Sangaré, Nina Meurisse, Emmanuel Yovanie, Younossa Diallo, Keita Diallo, Ghislain Mahan, Mamadou Barry, Yaya Diallo
Genre: Drama, 2024
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Cláudio Alves - 85
CONCLUSÃO:
“A História de Souleymane” constitui um exercício em realismo social cruzado com o estudo de personagem. Ancorado por uma prestação sem igual de Abou Sangaré, o filme conta a história de um emigrante guineense tentando sobreviver nas ruas de Paris enquanto espera pela confirmação do asilo político. Sem idealizações indevidas, o filme mostra-nos a realidade crua e dura, adaptando os mecanismos do thriller a uma crítica política capaz de nos arrebatar e deitar abaixo, de acender os fogos da revolta no coração do espetador.
O MELHOR: O trabalho de Abou Sangaré, impecável e poderoso, ainda mais impressionante quando uma pessoa se lembra que se trata do esforço de um estreante em cinema.
O PIOR: A estrutura narrativa que limita a nossa perceção de Souleymane a alguns dos dias mais angustiosos da sua vida tem o seu mérito. Contudo, também acaba por reduzir a sua experiência a um sofrimento constante. Em nome de um filme poderoso e mensagem forte, perde-se alguma complexidade dramatúrgica.
CA