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LEFFEST ’23 | Hit Man, a Crítica

Com estreia mundial em Veneza,”Hit Man”, a nova narrativa co-assinada e realizada por Richard Linklater, passou pelo LEFFEST 2023 na Selecção Oficial – Fora de Competição. Esta comédia aparentemente leve coloca a psicanálise na linha da frente e entrega-nos uma proposta muito distinta da parte do cineasta texano. O valor de entretenimento é irrefutável. 

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Quando pensamos em Richard Linklater pensamos em fragmentos de existência captados em câmara, ficções que se confundem com o próprio real. Vem-nos à mente algumas das suas obras de referência:  “Boyhood – Momentos de Uma Vida”, filmado ao longo de 12 anos com um mesmo ator central. Surge-nos a trilogia romântica “Antes do Amanhecer”, “Antes do Anoitecer” e “Antes da Meia-Noite”, gravada no período de 18 anos e quiçá detentora dos melhores diálogos românticos alguma vez imortalizados em cinema. Discutível, mas é justo dizer que o impacto desta saga é difícil de ultrapassar (e que poucos escrevem relações como o trio Linklater, Delpy, Hawke).

Pois bem, a filmografia de Linklater é bem mais extensa e compreende géneros bem distintos e “Hit Man” remete-nos para tal. O oposto de sereno ou pausado, este filme é uma fonte constante de agitação e, não sendo livre de intelectualização (o protagonista é um académico e professor de Filosofia e Psicologia, ao fim de contas), é certo dizer que o seu intuito máximo é entreter. Sucede nesse campo.

Richard Linklater LEFFEST '23
Glen Powell na pele de um sensual ‘assassino a soldo’ ©LEFFEST

A ACÇÃO FREUDIANA DE LINKLATER

Desde os primeiros instantes de “Hit Man” sentimos um ritmo constante e uma imersão na narrativa. Com o protagonista Glen Powell ao seu lado e ainda Skip Hollandsworth, o argumento co-escrito por Linklater apresenta-nos uma reflexão assente em termos vindos da teoria Freudiana – Ego, Super Ego, e Id – conceitos fulcrais para a sua definição da psique. Numa fase inicial do enredo, estes conceitos são esmiuçados, estando toda a progressão da história dependente dos mesmos. Como conciliar a parte mais consciente da nossa personalidade e impedir que a nossa impulsividade tome conta? Como tomar decisões moralmente sãs que não sejam subjugadas à busca por prazer e aversão ao medo?

A própria noção de personalidade e identidade é aqui explorada a partir de um ponto de partida válido: uma narrativa inverosímil mas que, ao fim de contas, se baseia levemente numa história verídica.  Esta exploração nunca se torna soturna ou pesada, como as temáticas poderiam antever. Antes pelo contrário, os códigos de storytelling aqui utilizados são, em grande parte, os da comédia e, em igual medida, os da acção.

Para além do timing cómico impecável de que se faz “Hit Man”, o próprio elenco também é composto por atores associados a este género (Como Retta de “Parks&Rec” ou Molly Bernard de “Younger”, entre outros). Por outro lado, as regras da progressão são amplamente orientadas pelo que é esperado nos reinos da acção. Quer estejamos a falar da presença de armas constante (recentemente Linklater já se havia insurgido contra a violência militar nos Estados Unidos em “Derradeira Viagem” ou “Last Flag Flying”) ou da existência de um herói que salva ou é salvo ao último minuto e de vilões que lhe dificultam a jornada. Os clichés estão lá, neste caso, para que com eles seja possível criar comédia e até alguma problematização.




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AS MULTITUDES DE GARY JOHNSON EM HIT MAN

Claro que o Gary Johnson de Glen Powell, professor universitário de Filosofia e Psicologia, não corresponde de todo ao arquétipo do género. Contudo, Glen Powell, o seu intérprete, ator e duplo, que entrou recentemente no grande sucesso de acção “Top Gun: Maverick”, encaixa perfeitamente na descrição. Entre o lugar de Gary nas narrativas de ação (este professor seria certamente a personagem que precisa de ser salva, não a que salva o dia) e o aspecto físico e destreza do seu intérprete vai um mundo de diferença. A tríade de argumentistas sabe usar esta dissonância a favor do filme, criando um contraste eficaz e permitindo ao seu herói de acção um arco de progressão muito acentuado.

E quem é exatamente Gary Johnson (Glen Powell), personagem inspirada numa história verídica? Professor de filosofia com uma vida rotineira e apenas dois gatos como companhia, Gary trabalha para a polícia como técnico, nas horas livres, ajudando com escutas. A sua vida vê-se radicalmente transformada quando começa a fazer trabalho infiltrado, encarnando a pele de um assassino a soldo, de forma a conseguir que aqueles que procuram tais serviços sejam presos pela polícia.




O nosso protagonista começa a viver cada vez mais na pele destes personagens, os quais parecem restituir-lhe uma certa sensação de vivacidade, aliada a adrenalina e a um maior entendimento da psique humana. Como académico, Gary abraça este envolvimento mas um obstáculo é colocado no seu caminho: a belíssima Maddy Masters (Adria Arjona) é colocada no seu caminho, investida em acabar com o tormento junto do seu marido abusivo ao contratar um assassino para o matar. Gary quebra aqui o protocolo e dá-lhe a oportunidade de começar de novo.

Hit Man no Toronto International Film Festival
©TIFF

UM MR. & MRS. SMITH MAIS IRREVERENTE?

A partir deste momento desenvolve-se uma comédia romântica disfuncional, sensual e envolvente, com ecos da vertigem de eventos das não-convencionais screwball comedies. Ao longo de quase duas horas, “Hit Man” nunca abranda o seu ritmo, captando a audiência cada vez mais na sua loucura.

Glen Powell co-escreve para si um papel que lhe permite abranger o seu leque de valências e a sua química sexual com Adria Arjona é um dos pontos altos da história. Como comédia genuinamente hilariante, e também inteligente, é pena que “Hit Man” esteja condenado a não ser um filme para a grande generalidade do público. A sua violência é bem explícita e a classificação etária pesada é não só uma probabilidade como uma necessidade.

Ainda assim, esperamos que a obra, que neste momento faz ainda a sua rota de festivais, tenha direito a uma abertura doméstica e internacional simpática, pois este é capaz de ser o filme mais memorável que Linklater realizou e co-escreveu desde “Boyhood”, quase há uma década.

A comédia criminal de Richard Linklater chega às salas portuguesas no próximo ano, a 18 de abril de 2024, com distribuição pela NOS Audiovisuais. Teve direito a uma primeira exibição pública em terras lusas no âmbito do 17.º LEFFEST. 

Hit Man, a crítica
Hit Man Linklater Leffest 23

Movie title: Hit Man

Movie description: Inspirado numa história verídica, Hit Man acompanha a vida de um professor de filosofia (Glen Powell) que é também um misterioso assassino a soldo a trabalhar como infiltrado para a polícia. Quando decide quebrar o protocolo para proteger uma mulher desesperada (Adria Arjona) que tenta fugir de um relacionamento abusivo, as barreiras que o distinguem da sua falsa persona esbatem-se à medida que começa a contemplar a ideia de se tornar um verdadeiro criminoso. Entre o thriller e a comédia de true crime, o filme conquistou o público nos festivais de Toronto e de Veneza e foi descrito pela crítica como uma das obras mais espirituosas de Linklater.

Date published: 30 de November de 2023

Country: EUA

Duration: 113'

Author: Richard Linklater, Glen Powell, Skip Hollandsworth

Director(s): Richard Linklater

Actor(s): Glen Powell, Adria Arjona, Retta, Austin Amelio

Genre: Comédia, Crime, Thriller

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  • Maggie Silva - 85
85

Conclusão

Com “Hit Man”, Richard Linklater propõe um filme apenas à primeira vista leve. Esta sua obra tem o potencial de agradar a públicos diversos, tendo em conta os vários níveis de leitura que nela se encontram. Glen Powell joga no melhor de dois mundos, ao conseguir combinar a sua paixão pela ação e fisicalidade com a maior interioridade dos argumentos de Linklater. É do seu encontro específico que nasce o charme da longa-metragem.

Pros

  • A exuberante sensualidade de “Hit Man” e o seu encontro entre a comédia, o drama existencialista e as histórias de ‘true crime’. Que receita invulgar e cativante!
  • A inserção de códigos claros da comédia não banaliza os meandros da história. Leve mas robusta, assim é a narrativa aqui apresentada.
  • Glen Powell releva-se uma caixinha de surpresas e Adria Arjona é deslumbrante e não se deixa ofuscar pela estrela.
  • A homenagem a géneros de comédia e crime do século XX casada com uma visão cética, cansada e neurótica muito ao jeito dos dias de hoje.

Cons

  • Nada de particular a apontar, não é perfeito mas cumpre o seu propósito sobejamente.
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