©Leopardo Filmes

III Guerra Mundial, em análise

Houman Seyyedi introduz-nos a uma nova realidade com o seu “III Guerra Mundial”, protagonizado por Mohsen Tanabandeh.

SHAKIB, O HOMEM E A SUA MÁSCARA…!

Lê Também:   Babylon, em análise

Não restam dúvidas sobre a vitalidade do cinema iraniano, o mesmo será dizer, sobre a força e coragem dos profissionais que no Irão atacam de frente os problemas que qualquer produção cinematográfica pressupõe e que não se resumem exclusivamente, como muitas vezes se quer fazer acreditar, ao campo da escolha de assuntos mais ou menos controversos num contexto em que o regime político e, neste caso, as autoridades religiosas, podem bloquear qualquer dissidência incómoda, mais visível ou de maior impacto mediático na esfera nacional ou internacional. E muitas vezes fazem-no. Seja como for, a História das relações entre os cineastas e o poder não se escreve só a preto e branco e possui antes muitas variáveis e não poucas contradições. Diga-se a propósito que o filme que iremos analisar, não obstante ser uma longa-metragem candidatada pelo Irão aos Óscares que serão atribuídos em 2023, não recebeu apoio do governo. Na verdade, foi produzido com fundos oriundos da iniciativa privada e com o apoio financeiro de uma plataforma privada de streaming.

III Guerra Mundial
©Leopardo Filmes

Não deixa de ser significativo que na short list divulgada pela Academia para as longas-metragens internacionais, as que ainda podem vir a ser nomeadas para os cinco lugares da categoria, não figure este mas sim HOLY SPIDER, que se refere ao Irão, foi realizado por um iraniano, Ali Abbasi (há anos emigrado na Europa), mas com produção dinamarquesa e alemã. Intolerância ou falta de visão estratégica por parte da Academia? Talvez sim. Talvez não? Logo veremos…!

Lê Também:   A Noiva, em análise

Feita a introdução, vamos ao que para já importa, a estreia portuguesa de JANG-E JAHANI SEVOM (III GUERRA MUNDIAL), 2022, escrito e realizado por Houman Seyyedi. Se há filmes que polarizam a atenção sobre um protagonista, este pode ser considerado um exemplo maior dessa opção. Na verdade, do princípio ao fim iremos acompanhar o percurso difícil, acidentado, quase assombrado, de um homem viúvo que perdeu mulher e filha num sismo de grande amplitude e que a partir daí nunca mais recuperou as condições de vida nem a paz de espírito que possuía antes desse dramático acontecimento. Ou seja, nem as condições objectivas nem as subjectivas, a julgar pela manifesta falta de alegria subjacente a qualquer relação estável com os outros, mesmo se povoadas de dificuldades ou contradições. Permanece hoje um homem acossado e humilhado pelas circunstâncias, vivendo parcamente de biscates, remoendo um sentimento de perda que procura ultrapassar com a proximidade a uma mulher que suspeitamos, pela forma como ele coloca dinheiro na cama do quarto onde os encontramos logo ao início, ser muito provavelmente uma prostituta. Esta relação, que a partir de uma certa altura parece ser mais do que meramente profissional para adquirir algum grau de cumplicidade sentimental, nunca saberemos ao certo se possui alguma espécie de verdade ou se continua a ser a continuidade de um “favor” pago, uma amizade mascarada que pode acabar no momento em que a fonte do vil metal secar. Esta ambiguidade será, aliás, um dos aspectos que melhor rima com a personalidade multifacetada do homem, Shakib (magnífica interpretação do actor Mohsen Tanabandeh), que vai ser contratado como simples operário para qualquer serviço por uma equipa de cinema apostada em rodar um filme que revive numa versão muito local, digamos assim, as atrocidades cometidas pelos nazis num campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Nos primeiros dias de rodagem não passa de mais um anónimo pau mandado, que tanto pode carregar às costas pesados fardos de mercadorias como levar ao ombro grandes barrotes de madeira, num esforço que o faz suar apesar do clima frio e agreste do Norte do Irão onde decorrem as filmagens. Porém, logo a seguir pode ser obrigado a despir-se para, juntamente com os seus infelizes colegas, entrar como figurante numa sequência em que prisioneiros de um campo de concentração nazi são empurrados para as câmaras de gás.

III Guerra Mundial
©Leopardo Filmes

De repente, o desgraçado que fazia de Adolfo Hitler cai redondo no chão, vítima de um ataque cardíaco (apesar da importância da figura retratada, não era personagem digna de ser representada por um actor com experiência e com a devida ficha clínica atestando-lhe a boa saúde). Como a rodagem não podia parar, na lógica do meia bola e força, Shakib será apontado como substituto do morto e prontamente metamorfoseado no papel do ditador alemão. Onde outrora havia uma bela barba e cabelo farto passou a existir um bigodinho ridículo e uma carecada ainda mais ridícula. E Shakib, quando se olha ao espelho, não gosta do que vê. Mas que remédio, as coisas são o que são e, porque a função lhe atribui privilégios inesperados, acaba por aceitar o seu papel de embrulho, resignado ao seu novo rosto, a bizarra máscara hitleriana. Facto porém que lhe vai dar em plena rodagem a ilusão e a sensação de um certo poder, pelo menos assim parece quando de forma compenetrada e eficaz executa e maltrata, após a voz de acção, os supostos inimigos do Terceiro Reich. Tudo obviamente no plano da ficção e do fingimento mas que, mesmo assim, não deixa de provocar nele uma série de expressões conexas reveladoras de forte e estranha ambiguidade. Pouco a pouco, Shakib percebe os benefícios da conjuntura criada pelo seu estatuto na produção cinematográfica, que passam até por habitar uma casa erguida propositadamente para o filme que se desenrola dentro do filme, que apesar de confortável não deixa de ser cenário. Os membros da equipa de Teerão são os únicos que pernoitam num hotel. Mas essa situação airosa de poder dormir num local com o mínimo dos mínimos, independentemente da segregação social que lhe está inerente e que Houman Seyyedi salienta sem papas na língua nas diversas interacções do grupo, atrairá para junto dele a prostituta que está agora a contas com o chulo, que por sua vez a persegue. Shakib sabe que os produtores não querem ninguém que venha de fora para contaminar o normal decurso da rodagem, e por isso vê-se obrigado a um sem número de expedientes para a esconder. Quando finalmente nos alicerces da casa encontra uma solução complicada mas aceitável para iludir os responsáveis pela produção, o frágil edifício humano desmorona-se como um castelo de cartas quando a casa cenografada vai pelos ares na sequência de uma explosão programada para cumprir um guião que previa a sua violenta destruição. Shakib, ausente do local de rodagem, é apanhado de surpresa. Naturalmente, o óbvio invade-lhe a mente. Mas será verdadeira a nossa percepção, que coincide com os seus receios? Deste ponto para a frente deixo o espectador descobrir como a metamorfose de um homem receoso, com medo da própria sombra, pode ou não ultrapassar a dor de uma segunda perda e, por outro lado, como a espiral de vertigem existencial o atinge ao ponto de ser pela primeira vez um ser de incomparável determinação no confronto violento com os outros. Ele que só mostrava má cara quando se fazia passar por Adolfo Hitler.

III Guerra Mundial
©Leopardo Filmes

Do ponto de vista da estrutura narrativa, assim como do modelo de representação que o realizador propusera até aqui no seu III GUERRA MUNDIAL, víramos um filme que apostava no percurso ondulante de Tensão/Repouso, dominante na maioria dos conflitos dramáticos. Modelo que se consubstanciava no modo como, por exemplo, encenava o contraste de comportamentos entre o Shakib operário, o Shakib actor na persona de um ditador e o Shakib na intimidade das relações secretas, censuráveis ou proibidas. Mas a partir daquela catástrofe, que só por ignorância dele o foi, Shakib passa a ser catapultado para o papel do vingador, o homem que leva até ao fim o conceito da barbárie nazi, o da solução final:  incorpora a personalidade daquele que soubera antes representar, mais bem do que mal, e decide fechar um capítulo da sua vida encerrando as páginas da vida dos que o rodeiam.

Lê Também:   Broker - Intermediários, em análise

No momento em que podia ser alguém, sair da sua depressão, o mundo mergulhado na Terceira Guerra Mundial dos imponderáveis humanos acabou com o sonho que chegou a sonhar em conjunto com aquela que desapareceu. Mas desapareceu mesmo? E ele próprio, vai mesmo desaparecer? Fica essa descoberta ou reflexão para os espectadores. Mas sempre vos digo que, mais uma vez, prefiro a ambiguidade da solução final (refiro-me naturalmente e só à do filme) às respostas concretas e redutoras que podiam ser dadas e que provavelmente retirariam a componente de mistério e surpresa que muito bem faz a qualquer obra que aposta na inteligência intrínseca de quem a vê.




III Guerra Mundial, em análise
III Guerra Mundial

Movie title: Jang-e jahani sevom

Director(s): Houman Seyyedi

Actor(s): Mohsen Tanabandeh, Mahsa Hejazi, Neda Jebraeili, Navid Nosrati

Genre: Drama, 2022, 117min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Notável interpretação da figura protagonista, responsabilidade do actor Mohsen Tanabandeh. Em geral, excelente presença dos secundários. Muito boa Direcção de Fotografia de Peyman Shadmanfar. Excelente inserção na estrutura narrativa do chamado filme dentro do filme, onde reconhecemos o caos controlado de uma rodagem e as peripécias inerentes a uma produção em que a maioria dos profissionais cumpre o seu papel, mas sem a necessária convicção, pois parece algo bizarra a escolha do assunto: uma revisitação dos campos de concentração nazis num país habituado a um cinema que possui parâmetros artísticos e programáticos habitualmente mais próximos dos valores culturais iranianos e concentrados no que se costuma apelidar cinema de autor. Não obstante, desenganem-se. Há de facto no Irão uma produção comercial onde os mais diversos assuntos podem ser abordados. E este filme de uma grande eficácia e inteligência, que não deixa de ser um filme de autor, sabe isso perfeitamente e joga com essa alegada estranheza para nos falar, quer subliminar quer objectivamente, de um país e de uma produção cinematográfica relevante no domínio da sua intervenção nacional e internacional.

Montagem eficaz assumida pelo realizador, que ainda escreveu o argumento em parceria com Arian Vazirdaftari e Azad Jafarian.

Entre outros prémios (Prémio FIPRESCI atribuído por unanimidade no Festival de Estocolmo e Prémio Especial do Júri no Festival de Tóquio), recebeu no mais recente Festival de Veneza o prémio para Melhor Filme na secção Orizzonti, e na mesma competição o prémio para Melhor Actor.

CONTRA: Nada.

Sending
User Review
3 (2 votes)

Leave a Reply