"Azul", de Ágata de Pinho, eleva-se através da fotografia de Leonor Teles |©IndieLisboa/ Uma Pedra no Sapato

IndieLisboa ’22 | Competição Nacional Curtas 2

A Competição Nacional Curtas 2 contou com duas sessões no âmbito do IndieLisboa ’22. Marcámos presença na segunda, a 7 de maio, pelas 16h45, na sala 3 do Cinema São Jorge. Deixamos algumas impressões acerca da experiência da sala escura, que contou ainda com a enriquecedora presença de dois dos cineastas com obras projetadas. 

No total, a sessão viu exibidas quartas curtas-metragens, todas elas de dimensão considerável, no mínimo a tocar a marca dos 20 minutos. Tematicamente, todas elas apresentam, apesar da sua divergência de géneros fílmicos, situações e estruturas narrativas, uma inclinação geral para trabalhar matérias ligadas à identidade. Sejam elas o “eu” e a sua fragmentação, a identidade do sujeito em função do coletivo, a identidade de indivíduos quando vista pela lente de uma comunidade ou ainda a identidade de género vista por intervenientes com pontos de partida díspares.

Bem-vindos à riqueza temática e estilística de Competição Nacional Curtas 2, que passamos a analisar brevemente de seguida.

AZUL DE ÁGATA DE PINHO (PORTUGAL, 2022, 20′) 

azul no indielisboa '22
©Uma Pedra no Sapato/ IndieLisboa

 

Yves Klein disse que o azul estava para além das dimensões. Este filme leva-nos a conhecer as de alguém que acredita que irá desaparecer no seu 28.º aniversário, qual profecia.

“Azul”, da conceituada produtora portuguesa Uma Pedra no Sapato, a casa de Leonor Teles, é um trabalho muito pessoal para a sua realizadora Ágata de Pinho. A autora não só realiza esta pequena obra simbólica, como também a escreveu ao longo de quase uma década, bebendo das suas próprias experiências pessoais, para, por fim, apresentar uma curta-metragem profundamente subjetiva.

No filme, a personagem principal acredita que irá desaparecer no dia em que completar 28 anos de idade. A mesma idade que a mãe tinha quando ela nasceu. Impelida pelo trauma, a jovem volta-se para um elemento catártico – a água. “Azul” é um projeto dominado por uma paleta de cores à lá “Trilogia das Cores” que, segundo a sua realizadora, trabalha sobre a crise e o trauma. A autora esteve presente na sala e revelou que o filme bebe muito da sua individualidade. Aliás, no website do IndieLisboa, o filme apresenta-se como parte ficção e parte documentário. Com muito respeito pelo seu próprio material, Ágata recusa-se a explicar os eventos do filme ou a separar a fantasia da realidade. É sem dúvida uma opção inteligente da sua parte, pois o filme tem uma forte natureza simbólica que resiste à explicação ou categorização.

“Azul” é descrito pela sua autora como a expressão de um episódio de dissociação – em que a mente está ausente e o corpo subjuga o sujeito. Apesar de ser impossível compreender a totalidade da experiência do sujeito fílmico, tornando-se o filme algo obscuro (o que o impede de cumprir em pleno a sua função de objeto pertinente para a consciencialização relativa à saúde mental), é inegável constatar como está este repleto de imagens marcantes. Leonor Teles, que em tempos criou com base numa fotografia muito elementar – vide “Balada de um Batráquio”  – fica com esse departamento a seu cargo e cria um produto visualmente deslumbrante, quiçá o maior atributo desta obra complexa.

Classificação: 80/100

OCELOT DE BERNANDO DE JEURISSEN (PORTUGAL/ FRANÇA, 2021, 21) 

Ocelot curta-metragem Portugal / França
©Operandi

 

Xavier é um músico a tentar singrar com a sua banda que faz um acordo faustiano, com toda a inevitável tragédia que isso implica.

Competição Nacional Curtas 2 continua com “Ocelot”, de Bernardo De Jeurissen, numa co-produção entre Portugal e França e que conta, uma vez mais nesta sessão, com o realizador também no papel do protagonista. De Jeurissen edifica nesta narrativa um gesto muito arriscado – tenta criar um mito no decorrer de uma pequena obra de 20 minutos. Um conto sobre os temíveis lugares mais sombrios da fama, acerca das consequências da ambição desmedida – acerca de moralidade e também sobre caminhos fatídicos.

Xavier quer, para lá de toda a rejeição, singrar enquanto músico. Qual é o grande problema deste vocalista e bon vivant? Ser incapaz de filtrar a crueldade e os engodos que reinam no mundo. O conto de “Ocelot” é trágico e relativamente impactante, mas como primeiro grande defeito é bastante previsível. Adicionalmente, não oferece ao espectador um final satisfatório. Todavia, a verdadeira falha desta curta-metragem prende-se com a opção polémica de narrar, com recurso a uma voz-off, toda a a história do seu protagonista. O voz-off tudo comanda, tudo consome, está sempre presente. Não dá oportunidade ao filme para respirar, sufoca-nos com o seu palavreado demasiado extenso.

Mais grave, não permite a quem vê retirar quaisquer conclusões adicionais sobre a história, deixando todos os eventos e sentimentos bem narrados, a alto e bom som. Onde ficou, afinal, o mistério?

Classificação: 64/100

UM CAROÇO DE ABACATE DE ARY ZARA (PORTUGAL, 2020, 20′)

Competição Nacional Curtas 2 um caroço de abacate
©Take it Easy Films

Larissa, uma mulher trans e Cláudio, um homem cis encontram-se numa noite em Lisboa. São duas pessoas com realidades dispares que até ao amanhecer fazem a sua troca de mundos numa dança cativante que os desafia. Uma história de empoderamento, livre de violência para nos despertar dias melhores.

O realizador Ary Zara, que recentemente celebrou nas redes as várias vitórias no IndieLisboa ’22, deixou bem claro, num Q&A atipicamente emocionante, porque decidiu fazer “Um Caroço de Abacate”. Ele próprio trans, procura na escrita e na realização uma forma de expressar a sua verdade. Zara menciona, de forma pertinente e poderosa, a necessidade de criar narrativas positivas para pessoas trans, que não sejam escritas e realizadas partindo de um ponto de vista de realizadores cisgénero que acabam por fetichizar a imagem de alguém transsexual – pessoa essa relegada a uma representação violenta e frequentemente desoladora.

Zara rejeita este gesto, esta condenação e cria uma curta-metragem verdadeiramente bela e luminosa que, ao longo de uma noite, representa uma interação entre uma mulher trans e um homem cis. Os seus mundos entram em rota de colisão e, à medida que o tempo passa, sentimos cada vez mais estas personagens como reais, palpáveis.

Gaya de Medeiros – dançarina, dramaturga, produtora, coreógrafa, encanadora – é uma força da natureza imperdível como Larissa. Já o muito estabelecido no mainstream, Ivo Canelas (“Florbela”), está no topo do “seu jogo”. A química entre os dois é inegável e um ponto altíssimo nesta história sobre desejo, amor, compreensão, empatia. Este é um pequeno filme caloroso, para lá de bem-humorado e engraçado, sensual e provocador, nitidamente criado pela sua equipa com todo o cuidado e carinho. É o tipo de produção que melhora o nosso dia simplesmente por existir, por oferecer a hipótese de um mundo mais tolerante, onde a igualdade é a nossa certeza última. Que a experiência de todxs nós possa ser pautada pela energia positiva que Ary Zara e sua equipa conseguem injetar neste filme. Para que um dia possamos ser, simplesmente ser, livres de políticas opressivas que fechem o sujeito numa pequena caixa de limitações.

“Um Caroço de Abacate” levou o Prémio para Novos Talentos, Prémio do Público e ainda uma Menção Honrosa do Prémio Escolas. Tudo merecido! Apenas pedimos que esta equipa continue a iluminar a escuridão do mundo com a sua calorosa ficção cheia de sonhos, sonhos que ousam imaginar um mundo do qual nos possamos orgulhar. O mundo do amor, não o mundo dos crimes de ódio.

Classificação: 95/100

DOMY + AILUCHA, CENAS KETS! DE ICO COSTA (FRANÇA/PORTUGAL, 2022, 30′) FECHA A COMPETIÇÃO NACIONAL CURTAS 2

IndieLisboa 2022 • Competição Nacional
©Terratreme

Resultado de uma pandemia, Ico Costa deixa uma câmara com Ailucha e Domy. O que vemos é o seu quotidiano em Inhambane, onde estes jovens moçambicanos vivem a juventude.

A sessão Competição Nacional Curtas 2 fecha num registo bem distinto, desta vez inteiramente documental, com “Domy + Ailucha – Cenas Kets!”, uma curta que se destaca pela sua etnografia – colocando a câmara nas mãos do sujeito filmado e deixando que ela simplesmente tente captar a vida que se desenrola à sua volta. O que vemos é uma comunidade jovem, vibrante, que não precisa de muito para se divertir e que não perde a oportunidade de mostrar a sua capacidade criativa, a sua música, a sua rotina, as suas paixões.

O realizador assume um gesto pouco habitual e por isso desafiador – deixa a sua câmara e uma manifestação de vida em estado puro surge como consequência, provando a validade desta decisão. Esta produção Terratreme tem a sua estreia nacional no âmbito da programação desta Competição Nacional Curtas 2 e prova que a espontaneidade tem um lugar sempre justo e meritório no cinema independente.

Classificação: 80/100

O IndieLisboa ’22 já chegou ao fim mas as sessões de filmes premiados continuam nas noites do Cinema Ideal até quarta-feira, 11 de maio. “Domy + Ailucha – Cenas Kets!” e “Um Caroço de Abacate” exibem numa sessão de curtas premiadas na terça, 10 de maio, pelas 20h00. 

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