LEFFEST ’19 | Atlantique, em análise
Fora da secção competitiva, e com duas sessões no Lisbon & Sintra Film Festival, encontramos o notável “Atlantique”, a primeira obra de ficção no formato de longa da autoria da franco-senegalense Mati Diop, atriz, realizadora e argumentista. A sua carta de amor ao mar, e àqueles que no mar se perderam venceu o cobiçado Prémio do Júri no Festival de Cannes.
Mati Diop apresenta com “Atlantique” uma proposta fortíssima, uma narrativa fora do vulgar que oscila em termos tonais, e que evolui em direcções inesperadas. No início, o seu âmago é, acima de tudo, shakeasperiano. Ada (interpretada uma soberba Mame Bineta Sane) está prometida em casamento a Omar, um sujeito rico com quem não se identifica. Vive num subúrbio de Dakar plantado à beira-mar, e vive entre diversos mundos e influências. Uma jovem ainda a sair da adolescência, encontra-se perdida de amores por Souleiman, um jovem que trabalha nas obras. Contudo, as circunstâncias e o drama da emigração clandestina pelo mar cria um espaço irrecuperável entre os dois.
Como outro elemento central da narrativa, temos a acção que se desenrola numa luxuosa torre que está a ser construída na capital do Senegal. Os trabalhadores desta obra não são pagos há meses, e a tensão vai-se intensificando, e é aí que acabam por, num ato de desespero, fazer-se ao mar, procurando uma vida melhor na Europa, o sonho do El Dourado europeu que tantas vezes vemos no cinema independente. Aqui, vale a pena dizer que o mar é o palco por excelência deste filme, o elemento ao qual os protagonistas entregam a sua alma e sonhos, e uma das imagens mais recorrentes.
Inicialmente algures entre o drama romântico e o realismo, “Atlantique” evolui, naquele que podemos considerar um segundo acto, para uma estrutura e tom bastante diferentes. Esta transição é orgânica, nada forçada e para lá de imaginativa. O clima do filme torna-se mais mágico, mas também mais pesado. Não é mais um conto realista sobre emigração e populações pobres e exploradas, é um realismo mágico, é uma obra repleta de suspense, de sobrenatural, de uma mística única, até com alguns laivos de terror. É ardente, contagiante, e não nos abandona depois de abandonarmos a sala de cinema.
É um coming of age tale, uma história sobre a difícil e confusa transição da adolescência para a vida adulta. Ada vai casar-se com um homem rico que a mima e lhe oferece um product placement descarado da apple na forma de um iphone. O seu novo quarto é luminoso e a inveja das suas amigas. Contudo, o seu amor perdido torna-a quase letárgica, indiferente a tudo o que se passa em seu torno.
Além disso, Ada vive entre mundos. As suas mais antigas amigas são “boas muçulmanas”, caseiras e tradicionais. As novas amigas são dadas a vícios, aos prazeres da vida nocturna e a um estilo de vida mais excêntrico. Ada procura tornar-se uma pessoa formada, no seio de todo este tumulto e mudança. Por muito fora da caixa que a narrativa se possa tornar, o essencial é sempre a história de uma jovem que aprende a amar e a afirmar-se num mundo complexo e difícil de entender.
É complicado desenvolver excessivamente acerca do filme sem entrar no reino dos spoilers, mas há que dizer que a espiritualidade tem um peso relevante, um peso que não se previa desde o início. “Atlantique” é surpreendente e irreverente, e fez história em Cannes. Por estranho que pareça, Diop tornou-se a primeira mulher negra a ter uma longa-metragem na competição principal do festival. E como foi já dito, saiu vitoriosa com o Grande Prémio. Adicionalmente, esta foi escolhida como a entrada do Senegal para os Óscares. Entre 93 países em competição, é um dos que se encontra mais bem posicionado.
A obra foi adquirida pela Netflix aquando da vitória do Grande Prémio em Cannes, e, por isso, “Atlantique” poderá ser visto na plataforma já a partir do dia 29 de novembro. Esta aquisição faz parte de uma estratégia louvável de diversificação, e nomeadamente uma recente aposta em cinema africano, que já foi assinalado como estando em expansão por parte de responsáveis do serviço de streaming.
“Atlantique” recupera a herança da sua realizadora e argumentista, sobrinha do aclamado cineasta Djibril Diop Mambéty. Nomeadamente, o seu documentário “A Thousand Suns” de 2013 é um tributo ao clássico “Touki Bouki” (1973), da autoria do seu tio.
O filme já passou pelo Espaço Nimas, no dia 21 de novembro e é ainda exibido por Sintra neste Sábado, 23 de novembro, pelas 21h00, no Centro Cultural Olga Cadaval. Uma proposta distinta, a não perder!
Atlantique
Movie title: Atlantique
Date published: 22 de November de 2019
Director(s): Mati Diop
Actor(s): Mame Bineta Sane, Amadou Mbow
Genre: Drama, Romance , Sobrenatural
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Maggie Silva - 89
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Cláudio Alves - 95
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José Vieira Mendes - 80
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Virgílio Jesus - 90
CONCLUSÃO
“Atlantique” coloca o vasto Oceano Atlântico no centro da narrativa, e nele deposita sonhos, esperanças, mágoas e realizações pessoais. É uma ode a toda esta vastidão, e tudo o que ela representa. É também uma inovadora perspectiva sobre um tema que parecia exigir realismo social.
O MELHOR: A total quebra de expectativas e a transição tonal admirável.
O PIOR: Apesar de ser “desculpável” devido ao carácter misterioso do filme, a verdade é que a narrativa tem diversas pontas soltas.