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Loulou, em análise

Maurice Pialat volta a dar que falar, com a exibição da sua obra “Loulou”, no ciclo da Leopardo Filmes.

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Maurice Pialat habituou-nos em muitos dos seus filmes a misturar azeite com água, para daí resultar não uma mistela foleira e intragável mas uma mistura acutilante e explosiva, que de forma controlada faz espoletar com subtil violência na cara do espectador de maneira a atingi-lo em cheio nos seus preconceitos mais arreigados. Em LOULOU, 1980, cronologicamente a quinta longa-metragem do cineasta que antecedeu o sempre mais citado e celebrado À NOS AMOURS (AOS NOSSOS AMORES), 1983, o realizador, argumentista, actor e artista plástico nas horas vagas não podia ser mais explícito ao dar-nos a conhecer a crónica de vida de uma burguesa, bem instalada mas muito mal casada, Nelly (uma Isabelle Huppert em estado de graça), que a certa altura se apaixona por um marginal de rosto meigo e sedutor mas com um passado pouco recomendável, o nosso Loulou (um Gérard Depardieu que representa o papel como se fosse o único da sua carreira que o podia levar a receber os prémios de interpretação no palmarés de mil e um festivais). Tudo salpicado por uma intermitente presença do marido de Nelly, um burguês desorientado com um feitio do estilo não f… nem sai de cima, André (um seguríssimo Guy Marchand), mais o caleidoscópio de estranhas companhias, cúmplices e pseudo-amizades de Loulou, homens e mulheres que vagueiam pelas ruas e pelos cafés a viver de expedientes e um ou outro golpe mais duvidoso, e ainda uma ou outra alma perdida do género feminino que não anda muito longe da personalidade masoquista de Nelly e aceita ser escorraçada e humilhada por um macho armado em bom de cada vez que quer impor, sabe-se lá como ou porquê, a lei do “eu posso, quero e mando”, ou seja, a lei do mais forte.

DIÁRIO DE RELAÇÕES PERDIDAS

Loulou
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Naturalmente, como falta o dinheiro a Loulou, a sua relação com Nelly (que paga as contas do que comem e bebem mais as despesas dos quartos de hotel onde passam as noites a fornicar) atravessa uma zona mais luminosa, digamos assim, mais “normal” ou normalizada, não vá o Diabo inverter a equação e a chulice pura e dura exercida sobre a sua voluntária amante ser posta em causa. Impiedoso como sempre, Maurice Pialat não faz juízos de valor nem emite opiniões morais na estrutura narrativa que nos propõe, mas isso não o impede de nos mostrar clara e repetidamente o jogo de uns e outros (caçadores ou presas, acossados ou cidadãos livres) de modo a expor não só o corpo como a alma, muitas vezes retorcida, das personagens que atira para o palco principal de um vendaval de paixões que se complica na proporção exacta da energia gerada pelas forças contraditórias em confronto: por um lado, uma gradual e até certo ponto surpreendente sinceridade adquirida na relação que julgamos amiúde perdida e, por outro, o desmoronar das expectativas futuras que se alimentavam de uma maternidade obviamente não desejada por uma das partes, a mulher, e provavelmente apenas vista pela outra, a dos homens, como uma espécie de fruto redentor capaz de preencher uma existência vazia de sentido.

Loulou
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Na verdade, a liberdade que Loulou parece querer abraçar a qualquer preço não passa de uma ilusão. O seu percurso enquanto rebelde de causas desconhecidas esbarra num quotidiano que ele julga controlar mas, no final das contas, será ele que muitas vezes cai na armadilha do prazer pelo prazer, já que na sua prisão sem grilhetas não sabe nem quer fazer mais do que já faz, pouco ou coisa nenhuma. Trabalhar faz calos, poderia ser o seu lema e nós, espectadores, interrogamo-nos sobre o que raio faz uma rapariga como Nelly ao lado de um Loulou que ladra mas não morde. Estudo brutal, directo, sem demagogia, sobre o mal-estar daquela sociedade francesa e europeia que no início de uma nova década não sabia para onde ir, nem o que fazer. Mal que atingia diferentes classes, como as de Nelly e Loulou, os amantes improváveis que no ecrã escreveram em 110 minutos e de um fôlego o diário assombrado, e porventura só deles, de um amor sem barreiras numa sociedade cercada por muitas, quase sempre difíceis de superar.

Loulou
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Loulou, em análise
Loulou

Movie title: Loulou

Director(s): Maurice Pialat

Actor(s): Isabelle Huppert, Gérard Depardieu, Guy Marchand, Humbert Balsan

Genre: Drama, 1980, 110min

  • João Garção Borges - 90
90

Conclusão:

PRÓS: Trabalho magnífico patente na direcção de actores, sobretudo no modo como o realizador leva até ao limite as potencialidades de cada sequência que corta na montagem de modo a ficar só a carne, o filet-mignon sem ossos nem peles ou gorduras desnecessárias e mal saborosas. Destaque maior para Isabelle Huppert e um grande, sublime, Gérard Depardieu. Novíssimo… e sedutor, apesar da personagem meio canalha que interpreta.

Todas as obras exibidas no ciclo UM VERÃO COM MAURICE PIALAT são cópias digitais restauradas. Nota 100 para qualquer delas.

E aqui deixo mais uma citação extraída da promoção da LEOPARDO FILMES e MEDEIA FILMES que me parece sintetizar de forma certeira não apenas este filme como o cinema de Maurice Pialat: “Há cineastas do plano e cineastas da sequência. Pialat é, pelo seu lado, um cineasta da cena, no duplo sentido da palavra, diga-se. É com uma cena (de ciúme sexual) que começa a narrativa deste filme (narrativa na qual poderíamos ver uma continuação ou um segundo episódio de QUANDO O AMOR ACABA, Guy Marchand e Isabelle Huppert sendo seguramente os avatares de Jean Yanne e Marlène Jobert). […] as frases trocadas são curtas, cortadas, brutas. As palavras são utilizadas como gestos ou golpes, raramente de outra maneira. Nada que se pareça a uma ideia: aqui são as vísceras que falam”.  Pascal Bonitzer, Cahiers du Cinéma.

CONTRA: Nada.

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