Marcello Mio, a Crítica | A autorreflexão de Chiara Mastroianni
Christophe Honoré invoca a memória de Marcello Mastroianni num retrato meta-cinematográfico da sua filha, Chiara Mastroianni. “Marcello Mio” estreou na Competição Oficial de Cannes no ano passado, esteve na Festa do Cinema Italiano e agora traz a sua peculiar magia às salas portuguesas.
Numa Paris que faz de Roma, Chiara Mastroianni faz de Anita Ekberg, essa diva escandinava que, em 1960, sob a direção de Federico Fellini, fez a sedução de Marcello Mastroianni na Fontana di Trevi. O fantasma de “La Dolce Vita” e seus criadores é invocado sem pudor nem bom gosto na abertura de “Marcello Mio,” sujeitando a filha do grande ator italiano a uma estranha humilhação que só poderia parecer boa ideia àqueles que se deixam inebriar pela nostalgia e perdem as funções críticas pelo caminho. Pela sua parte, Christophe Honoré encena o momento para máximo burlesco, com uma fotógrafa caótica cujas ordens só confundem sua modelo e cujo uso de ventoinhas gigantes quase traz um tufão à capital francesa.
As tonalidades do momento são curiosas. Honoré tudo filma com câmara ao ombro, uma displicência formal que quase puxa para o documentário falseado. A encenação certamente vai pela via humorística, degradando a protagonista com prazerosa exuberância. Só que, a piada parece escapar a Chiara em si. Filha pródiga do grande Marcello e Catherine Deneuve, a atriz debate-se com a fantasia Ekberg e com a água violenta, com a fotógrafa e com o próprio conceito de estar a imitar uma figura com que, em tempos, seu pai interpretou uns devaneios eróticos. No entanto, o desespero cómico nunca se manifesta e o melodrama também não. Plácida, serena, confusa, mas profissional, a fita inicia-se com a sua heroína enquanto mistério.
Viver à sombra dos pais, ofuscada.
Em certa medida, sentimos uma certa gentileza na forma como Honoré recusa a caricatura fácil de Chiara, sua colaboradora de longa data e musa suprema à volta da qual “Marcello Mio” se constrói. Uma meta-narrativa em que quase todos os intervenientes se representam a si mesmos, o filme conta a história dessa ‘nepo baby’ do cinema europeu perdida nos confins de uma crise existencial. Sempre na sombra dos pais famosos e ainda a matutar o vazio deixado pela morte paterna, Chiara aparece-nos como uma mulher que não sabe para onde se virar e, por isso, olha para o passado e para o outro, para o legado de Marcello e sua lenda. Nesse gesto, transforma-se nele e exige ao mundo que lhe indulte a loucura.
Mas é loucura ou paródia? Estamos perante uma reflexão sobre juízos perdidos ou a testemunhar a mais estranha das sátiras? Há muita ironia das veias do projeto, disso não temos dúvida. Contudo, também se denota sinceridade no engenho, uma abertura emocional a dois passos do sentimentalismo. Se a intenção é fazer rir, a piada tem pouco efeito. Se o propósito é o choro, esse mandato chega-nos tão distorcido que é difícil levar a sério. Não que as ideias presentes em “Marcello Mio” estejam predispostas a leituras descomplicadas ou conclusões fechadas. Se a criação de Honoré nos aparece meio perdida, seria erróneo desdenhar isso como acidente ao invés de um efeito deliberado.
O retrato ficcionado e distorcido de Chiara Mastroianni desenha-se à imagem da protagonista que para si imaginou. A racionalidade vai borda fora e o estilo é o da cópia da cópia cuja imagem original se perdeu no processo, degradada até ao ponto da desfragmentação. Porque a Chiara que o filme nos apresenta não está tanto a transformar-se em Marcello Mastroianni como se está a submergir na imagem que outros tinham dele. Há exceções, mas o seu trabalho é uma mimese fundamentalmente imperfeita, talvez vácua e superficial. “Marcello Mio” segue o seu exemplo, tentando a homenagem Fellini sem, no entanto, concretizar uma única imagem que chegue aos calcanhares do mestre italiano.
E nem sequer nos estamos a referir ao Fellini em auge de carreira. “Marcello Mio” pode fazer muita referência ao figurino de “La Dolce Vita” e “Otto e Mezzo,” mas está mais próximo de “Ginger e Fred” ou “Intervista.” Uma passagem em talk show é especialmente reminiscente desse Fellini tardio, quando o cinema se fazia sobre cinema, mais melancólico que concetualmente esquivo ou estilisticamente atrativo. De facto, a tristeza que emana de “Marcello Mio” é a sua componente mais genuinamente Fellini e o aspeto da fita que Honoré melhor invoca. Quer seja nas conversas entre Chiara/Marcello e um soldado inglês à espera de um amor que nunca virá ou nos muitos encontros entre mãe e filha.
Um filme e uma heroína em crise de identidade.
Por muito disfuncional que o exercício possa ser, há genuíno risco naquilo que Chiara Mastroianni interpreta para Honoré. Seu autorretrato é revelador, por muito paródico que possa ser, revelando inseguranças entendíveis no que se refere a uma mulher que seguiu o caminho artístico dos pais com plena consciência que seria sempre comparada negativamente com eles. Também há a vertente da filha em luto, sua perda tornada em algo grotesco, numa tentativa de ressurreição pela performance com todas as limitações subjacentes à proposta. Uma cena de linhas quase incestuosas onde Chiara e Catherine Deneuve exploram o apartamento onde, em tempos moraram, é especialmente memorável pelas emoções delicadas que conjura.
Nesse instante, mais do que um circo, “Marcello Mio” torna-se em teatro da memória e seu conceito doido é visto como algo profundo, quiçá necessário. Enfim, boas ideias não fazem necessariamente bom cinema e Honoré é um cineasta demasiado inconsistente para domar a quimera em que este seu filme se tornou. Chiara Mastroianni está de parabéns, pois claro, mas é Deneuve quem mais impressiona, muitas vezes funcionando como uma chapada na cara de um espectador que possa estar a ficar atordoado perante as dimensões psicóticas do projeto. Gostávamos de poder dizer o mesmo das sequências com Nicole Garcia, Fabrice Luchini ou Melvil Poupaud, mas Deneuve está num patamar superior a todos.
Para o final, Honoré parece mesmo capitular às vertentes mais vulneráveis que as suas atrizes personificam, orquestrando uma coda no precipício da lamechice e onde quaisquer leituras desta palhaçada enquanto meditação sobre identidade de género vai com as ondas, levado pela maré para outro projeto mais equipado para explorar tais realidades. O próprio Marcello Mastroianni se perde pelo caminho, feito tão abstrato que se torna num conceito imaterial, um espetro que nada tem que ver com o homem, com a estrela, com o mito cinematográfico. Na melhor das hipóteses, o filme sacrifica tais noções em nome de Chiara enquanto indivíduo aparte dos pais. No pior, o filme banaliza Marcello Mastroianni e a dor deixada na sua ausência. Esse é provavelmente o maior pecado de “Marcello Mio.”
Marcello Mio, a Crítica
Movie title: Marcello Mio
Date published: 30 de April de 2025
Duration: 120 min.
Director(s): Christophe Honoré
Actor(s): Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Fabrice Luchini, Nicole Garcia, Melvil Poupaud, Hugh Skinner, Stefania Sandrelli, Benjamin Biolay, Robi Arquette, Marlene Saldana
Genre: Comédia, 2024
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Cláudio Alves - 60
CONCLUSÃO:
Christophe Honoré homenageia a sua maior musa com “Marcello Mio,” filme onde Chiara Mastroianni invoca a memória do pai, transformando-se nele para o transtorno da família e amigos. Apesar da prestação principal forte e uma Catherine Deneuve em estado de graça, o realizador francês tem dificuldade em negociar o equilíbrio entre as ideias mais melancólicas do texto e seu espírito brincalhão. O resultado final banaliza os sujeitos e os conceitos, perdendo o controlo sobre um exercício que é muito mais ambicioso do que possa parecer.
O MELHOR: Todas as passagens em que Chiara como Marcello interage com Deneuve como si mesma.
O PIOR: No centenário do grande ator italiano, “Marcello Mio” não faz jus à sua memória. Nem mesmo funciona enquanto manifestação dele como sombra que leva a filha à loucura de interpretar o papel que nunca quis para si mesma – uma cópia imperfeita do pai.
CA