Debaixo do Radar | Janeiro 2019
A primeira investida do ano contra a música comercial. Escuta a melhor música que passou “debaixo do radar” dos críticos e do público durante o mês de Janeiro.
Após um ano, no mínimo, memorável, que nos presenteou com uma selecção eclética de discos estupendos, como Be The Cowboy, Double Negative, 7 e Twin Fantasy, o despontar dos promissores artistas Tomberlin, Shame e Rolling Blackouts Coastal Fever e ainda o imponente retorno dos veteranos Interpol e Yo La Tengo, até o mais prudente dos seguidores de música alternativa pode olhar para trás e, de modo exultante, reconhecer que 2018 foi um dos pontos culminantes desta década. No entanto, 2019 chega em força e reivindica o nosso aprimorado ouvido, sugerindo-nos que deixemos o passado de lado (pelo menos, por enquanto) e que recebamos, de braços abertos, as primeiras cartadas do ano: Remind Me Tomorrow, de Sharon Van Etten (o nosso álbum do mês), o mais recente single da banda pós-hardcore La Dispute, “Footsteps At The Pond”, e o audaz disco de estreia dos noruegueses Spielbergs, This Is Not The End, entre muitos outros projectos de qualidade (que te damos a conhecer na rubrica mensal, “Mês em Música”).
Com um início de ano tão atribulado, seria de prever que Mês em Música | Playlist de Janeiro não conseguisse cobrir, na totalidade, o que de melhor se produziu, ao longo de Janeiro, na indústria musical. Debaixo do Radar surge como um complemento fundamental à rubrica-mãe, resguardando o talento de jovens artistas independentes e de bandas que, por alguma razão, passaram “debaixo do radar” do público e dos críticos. Simultaneamente, favorece uma vigorosa posição defensiva da música alternativa e de resistência à mera comercialidade do produto, da sua elaboração ou apropriação tendo em vista um conjunto predefinido, na moda, de fins secundários. A voz da revolta introduz-se aos leitores sob a forma de uma playlist de Spotify constituída por trinta obscuras canções e de dez imprescindíveis álbuns/ EP’s lançados durante o mês de Janeiro.
Janeiro Debaixo do Radar | Singles
Black Country, New Road, “Athen’s, France”
A surpreendente fusão de três distintos estilos de arte com uma identidade sui generis patenteada. A analogia às sonoridades de Spiderland (1991) e In The Aeroplane Over The Sea (1997), a narrativa literária reminiscente de Lolita (1955) e o turbulento relatório visual de Ai no mukidashi (2008). A banda britânica Black Country, New Road não peca pela audácia. “Athen’s, France”, o single de estreia, eleva o pedestal dos seis artistas a altitudes vertiginosas e a incumbência de conservar esta essência do seu trabalho avizinha-se desafiadora. Cacofónico e severamente atormentado por demónios interiores, o vocalista Isaac encaminha-nos pelo seu calvário, um itinerário de sofrimento e desespero, cuja imutável sensação de inquietude só é ampliada pelo esquema de guitarras outrora idealizado pelos Slint, autênticos doutores nesta matéria. No entanto, são também as subtilezas mordazes da música dos Black Country, New Road que expõem o seu inegável talento ao público, isolando a sua persona de referências ou actos paralelos.
O discurso de “Athen’s France” é escrupulosamente operado como método de distanciamento, tóxico e voyeurístico (excepto na sagaz ironia de “She loves pop culture, she has ‘thank u, next’ stuck in her head”, com a qual nos identificamos totalmente). Porém, é este mesmo distanciamento que nos possibilita constatar a genialidade presente na sua idiossincrasia. Segundo Bertolt Brecht, dramaturgo alemão do século XX, o distanciamento é primordial na apreciação de um trabalho, já que a identificação motiva a manipulação emocional da audiência. Perante “Athen’s, France”, não nos resta outra alternativa senão a de conservar as aptidões analíticas imparciais, assumir uma conduta amoral, dessensibilizada e atentar a canção como obra-de-arte autónoma, não como objecto de estudo da nossa própria hierarquia de valores. O single de estreia dos Black Country, New Road reproduz um inconformado cenário distópico, ocasionalmente metafísico, que homenageia o intelecto musical e a arte subversiva, enquanto persegue o seu devido lugar nesta área de nicho.
Slonk, “Strange”
“Strange”, a última faixa do novo EP do britânico Joe Sherrin (conhecido, na indústria da música, por Slonk), Holidays, é uma modesta celebração das excentricidades inerentes a cada ser-humano. “I know I’m a little bit strange” canta o artista de Bristol, cuja fotografia de capa do Spotify incorpora uma banheira com cópias de In The Aeroplane Over The Sea (1997), The Lonesome Crowded West (1997), Blue Album (1994) e Analphabetapolothology (1998), dispostas ao lado do champô e gel-de-banho. À primeira vista, a meritória influência destas bandas na sua música poderá parecer ilusória. De facto, Slonk compõe graciosas faixas lo-fi, peças indissociáveis de si mesmo. Todavia, o carácter musical desamarrado de trivialidade que inculca ao público foi, certamente, banhado pela resoluta singularidade da lírica dos Neutral Milk Hotel, Modest Mouse, Weezer ou Cap’n Jazz. “Strange” é uma canção antémica, produzida dentro de um claustrofóbico casulo. Um crescendo possante, que se manifesta no seu estado mais amplo através de uma secção de violinos, harmónicas e harmonias vocais. Um relato auto-depreciativo, entoado de modo festivo e até brioso.
Black Midi, “Speedway”
Black Midi, a banda “mais bizarra do Reino Unido”, regressa com o single “Speedway”. O quarteto londrino formado pelos guitarristas Geordie Greep e Matt Kelvi, o baterista Morgan Simpson e o baixista Cameron Picton, que assinou recentemente pela conceituada editora discográfica Rough Trade Records (Sufjan Stevens, Starcrawler), apadrinha o secretismo do seu próprio conteúdo musical e a propagação de boca em boca, renunciando a Internet. Um “modelo de negócio” pouco usual, tendo em conta o período de alienação tecnológica que vivemos. Sarcasticamente, este modo de operação garantiu-lhes o estatuto de “banda do momento” (com apenas dois singles lançados em plataformas digitais), os seus concertos sigilosos são excepcionalmente procurados pela comunidade alternativa e outras prestigiadas bandas, como os Shame, já vieram a público elogiar a sua música e espectáculos ao vivo. “Speedway” é uma faixa difícil de caracterizar, o que acaba por ser um factor muito positivo. A indústria musical sempre actuou como um processo cíclico e casos eremíticos, como o dos Black Midi, são anormais e desejáveis. A sua sonoridade incorpora, vagamente, elementos clássicos do math-rock e pós-punk, reprimidos por uma acentuada componente electrónica dissonante e o arranhar de guitarras. A descrição mais aproximada (e negligente) do seu estilo de música encontra-se numa alusão ao vanguardismo dos Death Grips. “Speedway” estranha-se, depois… entranha-se? Não, talvez não se chegue a entranhar. No entanto, caso suceda, adquire a forma de uma droga altamente viciante… e de dependência devastadora.
Janeiro Debaixo do Radar | Álbuns
Oupatient, 5 Track EP
Quem viveu o pop-punk durante os anos dourados da adolescência, reconhece a condição decadente que o género de nicho adopta com moderada altivez, nos dias que correm. A música de eleição das jovens minorias insubordinadas (a par do hip-hop), instituída, durante a década de 70, pelos Ramones e Descendents nos Estados Unidos da América e pelos Buzzcocks no Velho Continente, assemelha-se, actualmente, a um “caixote do lixo” abundante em cópias baratas dos blink-182… e não da respeitável época de Cheshire Cat (1995) e Dude Ranch (1997). Infelizmente, replicar a incompetência guitarrística do Tom DeLonge é uma tarefa bem mais acessível do que idealizar progressões de acordes tão cativantes e, de certo modo, renovadoras como as suas. Durante a presente década, algumas bandas têm remado contra a corrente e tentado remodelar, de modo positivo, este estilo de música, sendo os Joyce Manor, The Menzingers, PUP, The Front Bottoms e Remo Drive, relevantes exemplos da exígua insurreição. Oupatient destacam-se como a primeira grande alegria do ano de 2019. O seu EP de 5 canções é rápido, visceral e eficiente, tal como indicam as regras do jogo. Não oculta, de forma alguma, as suas (muitas) referências, contudo a música produzida pelo guitarrista HD, baterista LT, baixista NJ e vocalista AJ é suficientemente pessoal e pelejadora para que se distinga do aglomerado de bandas pop-punk “sintéticas”. “Old Chaos” e “My Own” encaixariam que nem uma luva num American Pie, Tony Hawk’s Pro Skater ou na editora discográfica Fat Wreck Chords, apoderando-se de um intenso valor nostálgico impossível de ignorar. Fat Mike, mantém-te atento a estes miúdos.
Outpatient, 5 Track EP | “Old Chaos”
Joose Keskitalo, En lähde surussa
“Traz sempre para casa discos cantados num idioma que não entendas”. A lei de Matt Groening, descrita e aprovada no encarte de Cigarettes & Carrot Juice: The Santa Cruz Years (2002), uma compilação de cinco discos da banda de rock alternativo Camper Van Beethoven. Frequentemente, os álbuns alóctones acarretam um enigmático fenómeno de misticismo na sua estrutura. Em () (2002), terceiro álbum de estúdio dos islandeses Sigur Rós, as letras são cantadas num idioma delineado pela própria banda, Hopelandic. A voz angelical de Jónsi funde-se com os restantes elementos instrumentais das composições, entregando a natureza dos vocábulos à nossa imaginação. En lähde surussa, o nono álbum do cantautor finlandês Joose Keskitalo, assina o cenário musical mais íntimo deste mês. Um sonho fogoso, sonorizado por luxuriante folk nórdico e cripticamente declamado pela figuração da Morte. No entanto, fluência em finlandês (ou uma investigação do conteúdo lírico) é requerida para que se absorva, na totalidade, este tópico literal. Controversamente, no caso de En lähde surussa, a ignorância pode também ser uma benção. Degustar o projecto de Joose Keskitalo pela vivacidade dos instrumentos musicais, o galopar das harmónicas, saxofone e flautas e a maciez das melodias vocais do cantautor é um exercício puramente sensorial, contemplativo, enquanto uma posterior análise lírica, alicerçada nas versáteis matérias do romance e do fim dos tempos, simboliza o respeitável acto de “descer à terra” para assimilar a nota de intenções original do autor. Uma obra multifacetada, sempiterna e vulnerável.
Joose Keskitalo, En lähde surussa | “Nyt on sinun aikasi”
A.A.Williams, A.A.Williams
A.A.Williams, o EP homónimo de quatro canções da artista londrina, é o raro exemplo de um projecto introdutório que tange a excelência. A faixa de abertura, “Control”, lançada como single durante o ano passado, é o clímax antecipado desta amostra da habilidade de A.A.Williams. Enquanto a primeira metade da canção se encarrega de ludibriar o ouvinte através de uma interpretação qualitativamente proeminente do estereótipo de cantautora de coração partido e voz harmoniosa, a segunda eclode numa inesperada catarse de pós-rock, pincelando os contornos atmosféricos de A.A.Williams. As melodias vocais da artista escoltam, sincronizadamente, as guitarras eléctricas, baterias e sintetizadores. A sua escrita minimalista abre espaço para a concepção de uma paisagem remota e transeunte, apesar de submissa ao poder da voz autoritária. O profissionalismo deste disco e a atenção ao ínfimo detalhe são a prova suprema de que o vasto potencial de A.A.Williams poderá levá-la a alçar voos ainda mais altos com o álbum de estúdio de estreia. Mal podemos esperar.
A.A.Williams, A.A.Williams | “Terrible Friends”
Debaixo do Radar | Destaques do Mês
- Worms In Dirt, Worms In Dirt (4 Janeiro)
- Joose Keskitalo, En lähde surussa (Playground Music Oy, 11 Janeiro)
- Outpatient, 5 Track Ep (14 Janeiro)
- Lo Rays, Unstable Air (15 Janeiro)
- Nkisi, 7 Directions (UIQ, 18 Janeiro)
- Melancholy Robot, Too Bored To Live, Too Scared To Die. (18 Janeiro)
- William Tyler, Goes West (Merge Records, 25 Janeiro)
- Sarah Louise, Nighttime Birds And Morning Stars (Thrill Jockey Records, 25 Janeiro)
- Black To Comm, Seven Horses For Seven Kings (Thrill Jockey Records, 25 Janeiro)
- A.A.Williams, A.A.Williams (Holy Roar Records, 25 Janeiro)