Mês em Música | Playlist de Fevereiro 2019

A abrir com os Grammys e a fechar com os Óscares, o mês abundou em espetáculo. Mas a Playlist de Fevereiro prova que o melhor acontece nas entrelinhas.

Se houve emotividade em Fevereiro, foi nos ecrãs e daquela que não dura. Embora tenha animado na recta final, este mês foi bem mais calmo do que o anterior. Os anúncios de lançamento de discos abrandaram e foi difícil decidir qual o nosso álbum de Fevereiro por falta de um óbvio candidato. Ainda assim, muita coisa saiu que vale a pena conhecer, particularmente no campo dos singles, em alguns dos quais oscila já, pendurado, o rótulo de “melhor do ano”. Uma coisa é certa. A nossa Playlist de Fevereiro é bem melhor do que quase tudo o que desfilou e actuou nos Grammys. E nos Óscares, já agora.

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Este mês ficará também para a história por razões mais tristes. Mais uma lenda desaparece e cedo demais. Mark Hollis era (juntamente com o seu colaborador de longa data Tim Friese-Greene) a alma genial por detrás dos Talk Talk e da sua metamorfose de banda new wave idiossincrática a pioneiros do pós-rock. Há muito que se retirara, primeiro da ribalta, com a viragem experimental de Spirit of Eden (1988) e Laughing Stock (1991), e depois da música, porque a agitação da estrada não lhe permitia ser o pai que desejava: “Decido-me pela minha família. Pode ser que outros o consigam, mas eu não posso estar em digressão e ser um bom pai ao mesmo tempo”.

Ainda assim, confortava saber que, mesmo vivendo no seu mundo, Hollis estava presente no nosso, tendo contribuindo para a sua elevação e alargamento e continuando a fazê-lo, agora de outro modo. Fazemos questão de, no mês que vem, relembrar, ou mostrar mesmo, como o nosso mundo ficou um lugar diferente por causa desse outro criado por Mark Hollis e os Talk Talk. Até lá, aqui fica uma, se não das maiores, pelo menos das mais conhecidas canções, ainda assim uns bons furos acima da maior parte do new wave da altura e da pop de agora. Such a shame, indeed.

TALK TALK | “SUCH A SHAME” AO VIVO

Playlist de Fevereiro | Os singles

Um dos dois candidatos ao melhor single (e canção, porque não?) da Playlist de Fevereiro é “Living Room, NY”, de Laura Stevenson. Não se pode dizer que esta canção tenha rompido o silêncio da cantautora, punk mais de origem e em alma do que propriamente na sonoridade. Embora o seu último LP, Cocksure, já tenha saído em 2015, não faltou um álbum ao vivo, lançado no ano a seguir, uma contribuição para a compilação de covers Don’t Stop Now, editada em 2017, e uma homenagem à mãe sob a forma do duplo single The Mystic & The Maker, lançado o ano passado. Este último foi gravado na casa de infância em Long Island, com o produtor Joe Rogers, e revela um abandono do som punk mais agressivo de Cocksure para regressar ao lado folk de Wheel (2013). Uma tendência que, de acordo com o comunicado de imprensa, continuará no novo álbum, The Big Freeze, a sair no dia 29 de março, por meio da Don Giovanni, e cujo anúncio o single “Living Room, NY” acompanha.

Laura Stevenson - Playlist de Fevereiro
Laura Stevenson

The Big Freeze foi também ele gravado na casa onde Laura Stevenson cresceu e, apesar da sua origem punk e da esporádica inclusão de uma banda de suporte, o foco deste novo disco são a sua voz e guitarra, que se salientam à boa maneira da tradição folk a que a cantautora igualmente pertence. A atmosfera íntima que se pode ouvir tanto no duplo single lançado o ano passado como agora em “Living Room, NY” é construída com o recurso a várias faixas de voz, trompas, violoncelos e violinos, cujas melodias se entrelaçam em orquestrações que vão inchando e sossegando subtilmente, enquanto Stevenson explora ideias de distância e incompreensão. Deste single, Laura Stevenson disse, na sua conta de twitter, que se trata de “uma canção sobre sentir a falta de alguém no outro lado do mundo, que [começou] a escrever durante uma digressão pela Austrália”. E, de facto, o desejo e a saudade vibram em cada fibra melódica, em cada fímbria do timbre de uma voz que se demora na ideia dos espaços concretos onde o amor se desenrola e do qual o corpo se encontra dolorosamente afastado. Até a canção se tornar aquele abraço que a distância impede.

LAURA STEVENSON | “LIVING ROOM NY”

Depois do grande álbum Capacity e do presente que foi também abysskiss, o álbum a solo de Adrianne Lenker, os Big Thief estão de volta, com um novo álbum fantasticamente intitulado U.F.O.F.. Se as canções mantiverem todas o nível do seu single principal, estamos diante de um dos álbuns do ano. “UFOF” é a segunda faixa, (quase) titular, do novo registo e é o nosso outro grande candidato a single do mês, nesta Playlist de Fevereiro.

Sob a imagem etérea e insólita de um OVNI, algures entre a tecnologia da ficção científica e a animação dos super-heróis, Lenker dá voz ao desejo de um paraíso ou felicidade que pudesse ser a nossa habitação, um lugar ao qual as criaturas estranhas que somos aspiram desde sempre. Com outras imagens, sob outras formas, mas desde sempre. O tempo que passou desde que esse sempre começou, o tempo que é o nosso de agora tornam difícil, contudo, acreditar na existência do espaço querido e imaginado. Fica só a realidade, a sua conceptualização e as suas leis: “There will soon be proof/ That there is no alien/ Just a system of truth and lies/ The reason, the language/ And the law of attraction”.

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Talvez seja esta realidade o sonho mau que se transformará no globo azul do qual Lenker se afasta levada pelo OVNI. Talvez o sonho mau seja afinal, numa reviravolta inesperada, o OVNI que não passaria de escapismo e ilusão, condenado a desvanecer-se. Fica a incerteza, a instabilidade criada por aquele “you” que acumula características opostas, numa atmosfera melódica de beleza prometida e, por breves instantes, realizada. Só para desaparecer quando ainda mal floresceu, num ritmo que, seguro e ágil, nos vai atirando sempre para diante até ao momento em que, cessando abruptamente, nos deixa em terra a interrogarmo-nos sobre se teremos visto mesmo o que julgamos ter visto. Ou ouvido, a bem dizer.

BIG THIEF | “UFOF”

Assim que acabei de ouvir a “Glass Eyes” de JW Ridley, enquanto as imagens desoladas do vídeo de Dan W. Jacobs me passavam diante dos olhos, não consegui evitar a sensação de que fora invadida pela atmosfera da “Pyramid Song”, dos Radiohead. Que vem também ela, aliás, acompanhada de um vídeo de animação onde a solidão individual é construída no contexto e por analogia com a devastação de um espaço social. Confesso que me esquecera que uma das canções antigas da banda finalmente gravadas em estúdio e coligidas em A Moon Shaped Pool era precisamente a “Glass Eyes”. Seja como for, foi para a órbita da “Pyramid Song” (e da época dourada da banda), não da homónima canção, que o mais recente single de Jack Ridley me transportou.

No centro da canção está o vazio do tempo que passa aparentemente sem significado, experimentado por Ridley numa época difícil da juventude: “All your wasted time/ playing with forever/ like it’s never/ a part of me, a part of you”. Esta terra deserta desemboca num enigmático “cause I never met you/ it’s like I’ve never met you now”. Suspeitamos, mas nada mais, que este tu não seja senão o eu ocultado pela vida adiada. É verdade que as melodias dos teclados, piano e voz, a lembrar as da banda de Oxford, contribuem para a melancolia que envolve e paira sobre as palavras de Ridley. E é verdade que a animação do vídeo aprofunda esta tristeza com as suas imagens de um bairro dos subúrbios, vazio à hora do crepúsculo, numa mistura de filme negro com os vários Impérios das Luzes, de Magritte. Mas, apesar de tudo, um calor imiscui-se, subtil, com a melodia do violino, a explosão de puro canto no refrão e a linha de baixo na ponte, que alivia e adoça o mistério verbalizado. O calor de ter superado a prova, de poder olhar para trás e ver atrás e para trás aquilo em contraste com o qual a vida emerge vividamente, revelando todo o seu valor: “You never felt so alive/ When you left behind/ All your wasted time”.

JW RIDLEY | “GLASS EYES”




Playlist de Fevereiro | Os álbuns

Dos lançamentos deste mês que recomendamos, vale a pena salientar This Is Not The End, dos Spielbergs: “This Is Not The End é melódico, cantável, com linhas de guitarra em perene ascensão ou queda insistente, num diálogo efervescente em que a banda desabafa, sem jamais desabar, as impaciências e agruras do quotidiano agónico, num idioma que flui organicamente entre o pop-punk e o pós-punk. Não significa que não haja momentos mais meditativos, introduzidos por canções pós-rock como “Familiar” e “McDonald’s”, dois pontos altos do álbum, onde os Spielbergs revelam pendor e talento para experimentar e matizar sentimentos, abrindo caminhos futuros interessantes. […] Se por originalidade se entender, não a inovação de uma prática ou género, mas a capacidade de adquirir um certo idioleto até este se tornar uma segunda natureza e a habilidade de o vergar à expressão de uma vida autêntica, uma vida de aspirações elevadas, mesmo quando mescladas de terra e pó, então os Spielbergs são uma das bandas mais originais que despontaram recentemente. As canções, única coisa que lhes interessa, são atractivas logo de imediato mas estão também cheias de momentos que pedem uma audição repetida.”

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Crushing é o segundo esforço de Julia Jacklin, e segue-se a Don’t Let the Kids Win, o seu álbum de estreia, lançado em 2016. Este era outro dos candidatos a álbum do mês, que por pouco não ocupava o pódio. Uma meditação sobre as pressões exercidas pela vida em comum, a incomunicabilidade e o sufoco, o paradoxo entre amar alguém e querer ser alguém, o título exprime bem o sentimento em torno do qual o álbum se vai modulando e desenvolvendo. De facto, Jacklin dissera dele que:

Este álbum veio de passar dois anos em digressão e numa relação, sentindo que nunca tinha um espaço próprio. Por muito tempo senti como se a minha cabeça estivesse cheia de medo e o meu corpo apenas uma coisa funcional que me levava do ponto A ao B, e escrever estas canções foi como voltar a reunir os dois.

Seja em momentos eufóricos como “Pressure to Party”, seja na introspecção morosa de canções como “Don’t Know How to Keep Loving You” ou “Turn Me Down”, é a voz exasperada e frágil de Jacklin que sobressai, dividida entre o desejo e a angústia, a mendicância e o grito de autonomia, repetindo as ideias tanto para as desabar quanto penetrar-lhes o sentido. Mais do que as canções ou os versos, mais do que as melodias de piano ou guitarra, é a performance vocal e a personalidade que nela se exprime o centro da atenção e interesse de Crushing. Em atmosferas variadas, como em circunstâncias distintas, o mesmo sentimento de fundo vai emergindo na sempre flexível voz de Jacklin, tão cheia de tonalidades subtis como de uma dramática insistência na mesma nota: “[‘Head Alone’] surgiu de dois anos a sentir o espaço à minha volta a encolher até ao ponto de já não conseguir erguer sequer os braços. Esta canção sou eu a erguer os braços e a correr num campo aberto.”

JULIA JACKLIN | CRUSHING

Playlist de Fevereiro | O álbum do mês

O terceiro registo de Jessica Pratt, Quiet Signs, é um pequeno prodígio de minimalismo pop que acabou por se impor discreta e lentamente como a nossa escolha de álbum do mês. Este foi o primeiro longa-duração que Pratt gravou num estúdio profissional. O medo da cantautora de que se perdesse o halo de intimidade e mistério provou-se infundado, já que a sensação de estarmos a visitar a casa e os quartos da alma e mente da artista permanece, agora no contexto de uma delicada sofisticação musical.

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As melodias vão vagueando e estirando-se, várias vezes sugerindo a bossa nova brasileira, levando o seu tempo e pedindo do nosso até conquistarem a sua identidade. Piano, guitarra acústica, flauta, órgão de tubos vão tecendo e pontuando as canções, orquestrando um álbum de discreta música pop de câmara, onde num canto suave Pratt rumina e murmura a sua poesia interior: “He’s sincerely worn this heart of mine/ He’s not really gone, he’s in my mind”.

Em diálogo com este coração, e por isso com aquele que o ocupa e domina, a voz de Pratt vai-se questionando e confirmando: “Please know that there’s no other boy like him you’d hope to find/ So, young girl, be kind/ On your morning wings, you’ll fly”. Contemplando sucessivamente cada sentimento contraditório, Pratt deixa que emerjam no interior de si (dando-nos a ouvir) todas as hesitações, só para terminar o álbum nas alturas, olhando as luzes da cidade do avião onde viaja: “Oh yes, and I don’t wanna touch down/ Treasures luminous and divine/ Savior’s light, oh”.

JESSICA PRATT | QUIET SIGNS

PLAYLIST DE FEVEREIRO | DESTAQUES DO MÊS

PLAYLIST DE FEVEREIRO | SPOTIFY

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