"May December: Segredos de um Escândalo" | © NOS Audiovisuais

Natalie Portman é uma revelação em May December

Natalie Portman venceu o Óscar por “Cisne Negro” em 2010, mas o seu melhor trabalho ainda estava para vir. Em “May December: Segredos de Um Escândalo,” ela é uma autêntica revelação, uma rainha da falsidade feita em arma.

Todd Haynes sempre se preocupou com a reconstrução de vidas reais no grande ecrã. Antes de estrear a sua primeira longa-metragem, o realizador já havia sido alvo de grande polémica quando, em 1987, estreou “Superstar”. A curta dedica-se a explorar a tragédia de Karen Carpenter, cantora célebre que sucumbiu a complicações causadas pela anorexia. Só que, nesse filme, longe de ressuscitar o passado dos tabloides através de meios convencionais, Haynes usou Barbies como seus atores. Para a figura principal, ele foi esculpindo o plástico, dando uma vertente de terror ao retrato. Trata-se de uma obra-prima que, só por si, desconstrói os vícios da cinebiografia.

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Esta obsessão continuaria a manifestar-se ao longo da carreira. Em 1998, Haynes autopsiou o glam rock através de uma versão mítica de David Bowie, com Lou Reed, Iggy Pop e outros que tais às margens da história. “Velvet Goldmine” não é uma biografia, mas também o é, contorcida e prismada através de um espelho desfigurante. Em 2008, quando fez a sua homenagem a Bob Dylan, Haynes partiu a figura em várias personas, construindo um filme em forma de mosaico, cheio de fragmentos e abstração. “May December”, estreado em Cannes antes de assegurar distribuição da Netflix, foge ao modelo do ícone musical. Dito isso, é ainda mais explícito no modo como questiona o engenho cinematográfico.

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A obra é inspirada no caso real de Mary Kay Letourneau que, em 1997, foi considerada culpada e condenada pela relação sexual que tinha estabelecido com um menor. Ela tinha 34 anos, ele tinha 12 anos no início do abuso. Mais tarde, viriam a casar-se e ter filhos até que, décadas depois, o marido pediu o divórcio e começou a falar publicamente sobre o processo pelo qual se apercebeu do que lhe tinha acontecido. Nem Letourneau nem Vili Fualaau, sua vítima, são personagens em “May December”. Contudo, Julianne Moore e Charles Melton interpretam ficcionalizações deles, com outros nomes e detalhes ligeiramente alterados.

Câmara e enredo descobrem o par com a chegada de uma intrusa, uma observadora meio vampírica em busca putativa da verdade. Ela é Elizabeth Berry, uma atriz famosa da televisão que vai interpretar a personagem de Moore numa fita independente. No papel da intérprete, Natalie Portman aparece-nos em estado de graça e máxima perversidade, confortável no papel de uma má atriz. Há anos que esta campeã do Óscar demonstra estar sempre no auge quando pode abordar projetos através de vias anti naturalistas, repudiando o realismo comportamental em prol de algo mais estilizado. Em certos casos, a performance é um comentário sobre personagens a meio da sua mesma performance.




Isso está já patente em “Cisne Negro” e em “Jackie” também, resultando numa espécie de cubismo teatral. Estamos sempre cientes do esforço da atriz, da fricção entre ela e a personagem projetada. Contudo, isso não é um erro, mas uma mais-valia. Daí surgem criações poderosas ao nível de intelecto que ainda surtem efeitos fortes no seu impacto visceral. Em certa medida, Portman deve estar ciente disso. Afinal, foi ela que levou o projeto de “May December” a Todd Haynes, agindo como atriz principal e produtora. Entre linhas de camp, comédia negra e melodrama salaz, Portman apresenta-se mais falsa que nunca e aí está o seu génio.

Um espelho em forma de pessoa, Elizabeth aborda o trabalho de atriz como um jogo de mimeses superficiais. Ela imita poses e parece perder-se numa cópia quase infantil de trejeitos e idiossincrasias de discurso. Não há profundidade na sua pesquisa, somente uma réplica de reflexos. Haynes e Portman formam uma crítica afiada à sensacionalização de tais histórias reais, a tragédia feita telenovela dos tabloides, a dor reconstruída enquanto comodidade. Mas não é como se a abusadora de Moore fosse uma vítima. Ela é a personagem de Berry são duas faces da mesma moeda de manipulação – tão diferentes e tão semelhantes, ao mesmo tempo.

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Haynes usa a dinâmica entre as duas atrizes e Charles Melton para criar justaposições tonais que tornam “May December” em algo tão divertido quanto devastador. Portman e Moore parecem estar a trabalhar em função do humor mais negro do mundo, enquanto o seu coprotagonista jamais explora tais tonalidades. Só que Moore rende-se à tridimensionalidade psicológica ao mesmo tempo que é uma cifra sem resolução. Portman é algo muito mais estranho, um poço sem fundo de insinceridade sempre com um pé no grotesco. Ela é a Elisabet Vogler a que Liv Ullmann deu vida na “Persona” de Bergman, um buraco negro de olhos postos na câmara. Ela suga e canibaliza, parte-nos o coração com uma fala cruel e uma piada sem piada.

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Para quem defina bom trabalho de ator pela sua proximidade com realidades perceptíveis fora do cinema, isto poderá saber a fracasso. Só que a arte não se deve gerir por tais limites. Nada disto é um erro da atriz. Muito pelo contrário, Portman está em absoluto controle desta Elizabeth, sua obscenidade e bizarria. Uma cena em escola secundária mostra isso mesmo, enquanto momentos mais sexuais são um exercício em fomentar desconforto entre os espetadores. Por fim, chegado o momento com que todas as cerimónias de prémios a apresentarão, Portman declama um monólogo ensandecido com olhos além da quarta parede.

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Elizabeth apoderou-se de uma carta da abusadora para o menino com quem viria a casar. Perante o espelho, ela atua as palavras antigas e Portman deixa-se levar pelas camadas sobrepostas de performance. O artifício chega a píncaros orgásticos, com a face da mulher uma espécie de mecanismo em curto-circuito. No início, os lábios não parecem saber em que pose ficar, as sobrancelhas irrequietas, e os músculos em constante reajuste. Contrapondo este jogo com o vislumbre que temos do filme dentro do filme no fim de “May December”, o veneno de Elizabeth é evidente. E o génio de Natalie Portman ainda mais evidente é. Se houvesse justiça no mundo, a nomeação para o Óscar estaria garantida.

Em Portugal, “May December: Segredos de Um Escândalo” encontra-se nos cinemas. Noutros países, já está na Netflix, mas por cá teremos de esperar um pouco mais para ver em streaming.

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