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Notre-Dame em Chamas, em análise

Do grande ecrã chega-nos “Notre-Dame em Chamas”, uma longa-metragem de Jean-Jacques Annaud sobre o trágico incêndio na histórica catedral francesa.

O INFERNO NA CATEDRAL

Notre Dame em Chamas
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Promovido pelo marketing como um grande acontecimento cinematográfico concebido para o grande ecrã, em especial para o muito grande ecrã do IMAX, NOTRE-DAME BRÛLE (NOTRE-DAME EM CHAMAS), 2022, produção franco-italiana realizada pelo veterano francês Jean-Jacques Annaud, pertence a uma categoria de filmes que, apesar da previsibilidade narrativa que resulta do seguimento mais ou menos cronológico e relativamente fiel dos factos reais, são concebidos por equipas que demonstram saber conjugar, neste caso, as peripécias e percalços do combate a um incêndio de proporções desmedidas com o suspense necessário para manter os espectadores interessados no desenvolvimento e desenlace de uma história que no fim de contas o grande público já conhece e cuja relativa proximidade convoca memórias ainda frescas, mesmo que parcelares, do que realmente aconteceu. Podemos dizer que, no contexto da construção narrativa, este processo não representa nenhuma inovação, sendo aliás um daqueles expedientes antigos que se multiplicou ao longo da mais do que centenária História Mundial do Cinema. Basta recordar um entre muitos outros exemplos que se podiam alinhar deste modelo de produção. Para ficar apenas no domínio das obras sobre grandes desastres que envolveram figuras, monumentos ou empreendimentos de carácter excepcional ou emblemático, basta lembrar as diferentes versões dedicadas ao naufrágio do TITANIC. Sabemos o que vai acontecer, quando se avista o icebergue já sabemos como as coisas vão acabar, mas mesmo assim não deixamos de ver o filme até ao fim, sobretudo se os valores de produção forem geridos com umas generosas pitadas de sal, pimenta e outros ingredientes fílmicos adicionados para nos despertar o apetite por mais um “era uma vez” ao redor dos passageiros, estilo boy meets girl, rapaz encontra rapariga, ou woman finds lover, mulher encontra amante, ou rich meets poor, leia-se, os circunspectos aristocratas e burgueses da luxuosa primeira classe vão, naturalmente por mero acaso, descobrir a ruidosa alegria dos proletários e remediados que viajam no patamar inferior da barreira social, e as divididas classes lá acabam juntas a divertir-se como ninguém; enfim, os mil e um rodriguinhos, com as suas mais ou menos previsíveis variantes, que explodem como pipocas antes do navio empinar e ir ao fundo.

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Mas regressemos a Paris. Para definir as grandes linhas do argumento de NOTRE-DAME EM CHAMAS, os dados iniciais não podiam ser mais claros: uma catedral cuja construção foi iniciada no século XII, há muito considerada património  da França e um exemplo maior do chamado estilo gótico, classificada pela UNESCO como património da Humanidade. Num normalíssimo dia de Primavera, mais precisamente a 15 de Abril de 2019, o monumento em causa sofre as consequências de um violento incêndio que acaba por destruir uma parte considerável da sua cobertura que, aliás, estava a ser restaurada e reparada. Para além do fumo espesso, o fogo alastra rapidamente para uma área onde se concentra uma vastíssima quantidade de madeira, 14 000 barrotes que fazem parte da estrutura justamente apelidada de “la fôret”, a floresta. A intensidade da combustão provocou sérios danos na sustentabilidade do pináculo (que acabou por desabar) e nos vitrais das rosáceas, além de inúmeros prejuízos patrimoniais, difíceis de calcular na altura, em locais interiores sujeitos aos efeitos do que parecia ser um autêntico simulacro do Inferno na Terra. Os produtores sabiam igualmente a cronologia dos acontecimentos e a importância da acção dos bombeiros e da hierarquia dos seus protagonistas que, contra adversidades logísticas e não só, deram início a um combate, sempre desigual e arriscado, onde na linha da frente o perigo de morte esteve quase sempre presente. Estes homens e mulheres iriam demonstrar no exercício das suas funções uma coragem e um espírito profissional que, sem qualquer sombra de dúvida, os consagrou como os heróis do dia, os soldados da paz que salvaram uma imensa catedral, após horas de contrariedades e luta contra medidas de segurança obsoletas, para além de graves obstáculos de diversa ordem. Por fim, foi evitado o mais dramático destino do edifício, que chegou a parecer inevitável, ou seja, a derrocada pura e simples de um dos mais importantes símbolos culturais, materiais e espirituais do mundo, independentemente do lugar que ocupa no quadro existencial de qualquer nacionalidade, ideologia ou confissão religiosa. Por último, Jean-Jacques Annaud e o seu co-argumentista, Thomas Bidegain, dispunham de um fluxo imenso de imagens e sons, muita documentação oriunda do circo mediático e sensacionalista mas igualmente dos meios de informação mais rigorosos que não se costumam submeter ao efeito ululante das Breaking News. Esta componente da pesquisa foi certamente um factor de grande importância para conceber a progressão dos acontecimentos, assim como a exposição de um outro pormenor relacionado com o perfil mais particular de um diversificado número de personagens. Foi seguramente um aspecto decisivo na concepção das linhas de força da montagem final, que soube aproveitar as potencialidades da vasta superfície do ecrã para nos dar não só a inserção e dimensão adequada dos acontecimentos como uma inegável caução de verdade a partir da combinação muito equilibrada entre imagens reais, amadoras ou não, e as sequências reconstituídas dos factos. Neste campo, a presença do Director de Fotografia, Jean-Marie Dreujou, e a qualidade e competência da equipa de efeitos visuais e especiais que usou os estúdios da Cité du Cinéma de Saint-Denis, foram cruciais para se conseguir o referido equilíbrio e harmonização imagética. Mas de igual importância viria a ser a contribuição da Direcção Artística, liderada por Jean Rabasse que, usando fragmentos de monumentos semelhantes aos da catedral original (como a catedral de Saint-Étienne em Bourges, a catedral de Notre-Dame de Amiens e a catedral de Saint-Étienne de Sens), deu corpo e alma aos espaços que podemos considerar a matéria primordial deste filme, os que mais fazem a diferença entre a memória que possuímos da então cobertura audiovisual, a que nos mostrou os acontecimentos vistos de fora, e a descoberta do interior, por assim dizer, dos caminhos cruzados, fechados, labirínticos, medievais, do interior da catedral de Notre-Dame de Paris. Imagens, sons e movimentos de actores que, através da reconstituição cinematográfica, mostram agora diante dos nossos olhos uma parte dos acontecimentos como nunca os vimos naquele dia, os numerosos incidentes com chaves e as portas que se fecham e deviam estar abertas, a incerteza da localização dos cofres com as relíquias sagradas e a dificuldade de acesso a determinados locais, alguns quase impossíveis de alcançar ou superar muito por culpa do estado de conservação da estrutura material da catedral, onde era visível uma óbvia falta de cuidado na manutenção. Episódios que vão ampliando sequência a sequência a angústia do espectador face aos perigos vividos por aqueles que são obrigados a entrar na catedral, metro a metro arriscando a vida. Tudo num crescendo de emoção que atinge o seu pico, sobretudo na derradeira parcela do filme, altura em que será apresentada uma solução, meio desesperada meio radical, ou seja, a proposta de reunir um grupo de bombeiros, que só podia receber o nome de suicida, e cuja missão seria avançar a um ritmo contra-relógio para uma zona muito crítica com o objectivo de estancar a progressão do incêndio. Missão que se mostrou decisiva para alcançar o milagre de se poder ainda hoje ver a catedral de Notre-Dame, não como um monte de escombros mas próximo do que ela era, no sítio onde foi erguida, um monumento que os cidadãos deste nosso mundo, nem sempre muito sensato, podem e devem usufruir, mas igualmente proteger de modo a preservá-la para as futuras gerações.

Notre-Dame em Chamas
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Em suma, há neste filme um lado documental que vive bem com o plano ficcional da reconstituição histórica, convivência que será acentuada nos minutos finais com a montagem sincopada de imagens de actualidades onde, directa ou indirectamente, se privilegia uma mescla de propostas de reflexão. Podemos pensar na discreta e velada ironia latente nas imagens jornalísticas dando conta da presença institucional de Emmanuel Macron, e sentir na visão de outras, menos oficiais, o vigoroso e universal entusiasmo gerado pelos cânticos religiosos que muitos entoam a uma certa distância mas não muito longe da catedral. Momentos de catarse musical que se mostram redutores, quando se concentram no justo mas óbvio canto religioso, e mais amplos no seu impacto universal, quando se ouve um grupo bem mais heterogéneo de homens e mulheres a cantar o clássico “Amazing Grace”, um hino popular que perdura desde a sua criação em 1772 como um aglutinador do mundo secular e do mundo religioso.

Notre-Dame em Chamas, em análise
Notre Dame em Chamas Poster

Movie title: Notre-Dame brûle

Date published: 26 de April de 2022

Director(s): Jean-Jacques Annaud

Actor(s): Samuel Labarthe, Mickaël Chirinian, Jean-Paul Bordes

Genre: Drama, 2022, 110min

  • João Garção Borges - 60
60

CONCLUSÃO:

PRÓS: Excelente combinação das imagens reais com as sequências reconstituídas dos acontecimentos, com especial destaque para o que não vimos nos directos ou diferidos do dia 15 de Abril de 2019, sobretudo as dificuldades, os perigos e os dramas pessoais que se desenrolaram durante o combate ao incêndio nos espaços interiores da catedral de Notre-Dame de Paris. Escusado será dizer que um filme concebido para o IMAX deve ser preferencialmente visto numa sala IMAX. Neste caso, a dimensão justifica-se face ao resultado final do projecto fílmico. Pena o IMAX ser uma miragem para a maioria dos espectadores.

CONTRA: Dos vários episódios que nos fazem manter a atenção até ao desenlace final, há um que me merece o devido respeito, mas pessoalmente me parece excessivo na sua carga simbólica, a roçar a pura demagogia religiosa. Estou a falar da importância desproporcionada que o argumento reservou para descrever o fulgor, e até uma certa dose de ambiguidade emocional, a propósito da salvação das alegadas relíquias de Jesus guardadas na catedral, a saber, a coroa de espinhos, um fragmento da cruz e um prego que servira para a crucificação.

Repito, não ponho em causa o valor da fé, mas sim o uso da mesma para manipulação de sentimentos que não acrescentam nada de relevante a esta obra semi-documental, semi-ficcional, sobretudo face ao que na verdade constitui a matéria principal deste filme, a valorização do esforço colectivo e do sacrifício humanamente responsável de um grupo de homens e mulheres, bombeiros e cidadãos comuns, a maioria dos quais anónimos, que literalmente salvaram um monumento maior da História Universal, um património que pertence a mais do que um credo ou ideologia.

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