Alexander Skarsgård como Príncipe Amleth © Cinemundo

O Homem do Norte, em análise

“O Homem do Norte”, a terceira longa-metragem realizada por Robert Eggers, conhecido pelo seu terror ritualístico e mitológico, estreou em Portugal a 21 de abril de 2022. É um raro unicórnio cinematográfico: um filme de grande orçamento, um épico de guerra, onde a marca autoral do seu criador não se vê suprimida.

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Depois de uma temporada de prémios algo insípida, o cinema norte-americano parece estar de boa saúde. Depois do vibrante terror erótico de “X” (A24)  ou da multitude existencial de “Tudo em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo” (A24), eis que o arranque desta nova season continua, a um ritmo imperdível, a apresentar-nos obras valorosas.

A JÓIA DA COROA DO INDIE NORTE-AMERICANO

Desta vez é a Focus Features que nos sugere uma inesperada proposta nas salas de cinema: um grande épico de guerra, num filme de época que toca temáticas alusivas ao reino do mito e fantástico, realizado por um autor independente e com uma visão imagética e tonal muito própria. Robert Eggers, o realizador de “A Bruxa”, carinhosamente conhecido pelos fãs como “The Vitch” (“The Witch”), e do surreal “O Farol” (The Lighthouse”), só conta com duas longas-metragens prévias no seu currículo, mas não é por isso que não se trata de um dos autores contemporâneos com uma mais fiel legião de seguidores.

A par de Ari Aster (“Midsommar”, “Hereditário“), Robert Eggers é o “menino bonito” da A24, realizador-promessa que muito renome trouxe ao estúdio e, acima de tudo,  distribuidor norte-americano. Depois de dois filmes de terror nesta casa nobre do indie norte-americano, Eggers aventura-se com uma produção e distribuição de maior envergadura, nesta parceria com a Focus e a Universal. Mas ao contrário do que acontece frequentemente – autores ligados ao independente, cuja visão se vê engolida por filmes de estúdio – vemos em “The Northman” uma agradável excepção à regra (ou próximo disso). Robert Eggers é capaz de ressalvar a sua visão autoral e assinar uma obra repleta das suas marcas distintivas, mas com um orçamento situado algures entre os 70 e os 90 milhões de dólares.

Não obstante, o festim visual que é “O Homem do Norte” não deixa de se configurar como um filme que se aproxima da lógica dos blockbusters de ação – com ecos da vingança histórica feroz que vemos em obras como “300”. Todavia, a estrutura dos seus atos pouco nos impele para os épicos de guerra mais amados pelas massas. Antes, temos em “The Northman” uma estrutura profundamente teatral e dramatizada, quer falemos do diálogo ou dos muitos rituais que se desenrolam frente à câmara.

MITOS NÓRDICOS FUNDADORES TRADUZIDOS PARA O ECRÃ

The Northman

Erroneamente, houve até quem tomasse este “O Homem do Norte” por uma reimaginação da obra de Shakespeare – “A Tragédia de Hamlet” –  mas o movimento é inverso. Aqui, narra-se a história do Príncipe Amleth (Alexander Skarsgård), cuja missão de vida, assim profetizada, é vingar a morte do seu pai (Ethan Hawke como o Rei Aurvandil) às mãos de um tio bastardo  – Fjölnir (Claes Bang) e salvar a sua mãe (Nicole Kidman como a Rainha Gudrún). 

Robert Eggers inspirou-se em contos nórdicos ancestrais, mitologia viking, para assim desenhar este sangrento conto cautelar acerca da destruidora natureza da vingança. Pois foi Shakespeare quem revisitou a história de Amleth e a adaptou aos meandros da sociedade inglesa. Eggers não copia ipsis verbis o conto escrito pelo historiador dinamarquês Saxo Grammaticus, que viveu entre os séculos XII e XIII. O seu Amleth foi, aliás, apenas uma parte de uma saga fantástica maior  – Gesta Danorum – a mais importante história medieval da Dinamarca.

Por isso, desenganem-se os que esperem que “O Homem do Norte” apresente uma narrativa singular, única, imprevisível. Aqui, o diabo está mesmo nos detalhes e nas escolhas estilísticas. O realizador muda nomes de personagens, situações e pormenores, mas mantém-se bastante fiel ao mito fundador que inspira a sua história. Fá-lo recorrendo a um visual altamente estilizado e a uma linguagem teatral que em tudo encaixam na sua marca autoral. Ainda esta semana, Eggers revelou em entrevista não ter qualquer interesse em situar um dos seus filmes no presente, afirmação pouco surpreendente para quem teve a oportunidade de descobrir a sua tríade de filmes.

A lenda escandinava é honrada pela visão de Eggers com uma obra de beleza singular, filmada em grande parte na Islândia, perante estonteantes cenários naturais que servem de palco para o cumprimento de uma profecia avassaladora que uma poderosa Björk revela ao Príncipe Amleth.

The Northman Bjork
Björk como a vidente |© 2022 Universal Studios. All Rights Reserved.

A REPRESENTAÇÃO FIEL DE UM POVO

A história do Príncipe Amleth é ancestral, simples, premonitória e de fácil compreensão. Foi precisamente por isso que foi selecionada como a história de vingança para este épico. De acordo com Eggers, num breve behind the scenes de “The Northman” disponível no Youtube, adaptar esta elementar história de vingança que já deu origem a “Hamlet”, até ao “Rei Leão”, e a tantas outras histórias, permitiria-lhe despojar a complexidade narrativa e focar-se no que realmente seria importante – a representação fiel de um povo, dos seus costumes e mitologias.

Eggers reveste a sua estrutura separada por capítulos de momentos que elevam o enredo para lá da sua notória auto-evidência. Um elemento importante que separa “The Northman” de outros épicos históricos é a preocupação com a representação fidedigna do passado. O período histórico é alvo de um estudo incessante por parte da equipa responsável pela obra, existindo um cuidado nítido no sentido da exatidão. O autor juntou uma equipa de conselheiros históricos, arqueólogos e artesãos capazes de reproduzir o sentimento de um conto escandinavo do século XIII. Orgulhosamente, em entrevista à Vanity Fair, Robert Eggers defende o seu como o “filme Viking mais fidedigno de sempre” e procede à fundamentação deste seu argumento.

Do guarda-roupa aos adereços, passando pelas localizações e até pelos materiais de construção, Eggers tinha como importante bandeira remover ao máximo o anacronismo. Um esforço louvável, que eleva a obra acima de muitas outras dentro do seu género. Eggers, um entusiasta de História, escreveu o filme a meias com o poeta e novelista islandês Sjón e recusou-se, como avançou em muitas entrevistas, a “tomar liberdades”.

O realizador chega a lamentar não ter dinheiro para auto-financiar um projeto desta dimensão, caso contrário, a longa-metragem seria falada em nórdico antigo e não em inglês. Ainda assim, para além do sotaque por vezes risível utilizado pelos atores, o argumento introduziu alguns apontamentos de nórdico antigo aqui e ali e, sem dúvida, perante a intensidade dramática desses momentos, de canção ou de declaração de frases proéticas, a utilização da língua antiga permite elevar a intencionalidade destes instantes.

A representação dos vikings passa pela interpretação dos seus fervorosos rituais religiosos, que tanto encaixam na estética de Eggers, pela ilustração da força e brutalidade dos seus guerreiros e também pela demonstração dos seus costumes mais cruéis. Dos massacres à economia de pilhagem e esclavagismo, todos estes aspectos são exibidos de forma clara e visceral, tornando “The Northman” um filme empolgante mas difícil de visualizar.

O HOMEM DO NORTE E O SEU ESTUPENDO ELENCO

Robert Eggers assume uma posição vantajosa e invejável nesta marca do seu terceiro trabalho. É um realizador com quem os melhores atores desejam trabalhar, uma e outra vez e, por isso, às eficientes prestações centrais dos protagonistas junta-se um elenco secundário exímio e que muito contribuiu para a incrível intensidade dramática da obra.

O Homem do Norte em análise
Skarsgård transcende a natureza do Homem e assume a Besta |©Cinemundo

Mais besta que homem, o sueco Alexander Skarsgård (“Big Little Lies”, “True Blood”) vive a pele de Amleth como nenhum outro ousaria. Perante a imposição de preparar uma vingança cósmica, o jovem príncipe cresceu entre guerreiros e tornou-se mais besta que homem – o “Urso-Lobo”. Esta animalidade é abraçada por Skarsgård no seu pleno – tanto na fisicalidade como do ponto de vista espiritual. Mas entre a bestialidade, o olhar do nosso protagonista transmite-nos calor, compaixão, amor, para lá de uma frente curvada, bestial, quase grotesca.

Se Skarsgård é transcendente e merecedor de todos os louvores como Amleth, o resto do elenco não lhe fica atrás. Nicole Kidman é implacável como a sua mãe, a Rainha Gudrún. Por muito que este casting possa parecer dúbio, uma vez que este mesmo par de atores já interpretou marido e mulher em “Big Little Lies”, uma vez que apenas 9 anos de idade os separam, e uma vez que Kidman não está particularmente envelhecida através da caracterização, não deixamos de entrar em êxtase nas cenas intensas em que se batem, sozinhos no enquadramento. As suas cenas a dois são das mais íntimas do filme, permitindo imbuir a obra de alguma humanidade ( uma vez que o espectáculo visual é mesmo o elemento preponderante).

Passando ainda por Willem Dafoe e Björk como presenças premonitórias fortes ou por Ethan Hawke como o Rei-Corvo atraiçoado, logo no arranque do filme, poucos são os elos fracos nesta lição em representação. Anya Taylor-Joy, que volta a colaborar com Eggers depois de “A Bruxa”, interpreta Olga, uma personagem que se alimenta da sua habitual eeriness para se valorizar. Todavia, Joy e Skarsgård apresentam uma química bastante mitigada, talvez fruto da diferença de idades significativa que os separa. A sua ardente e destrutiva parceria acaba por sofrer um pouco devido a esta ligeira desadequação. Estando Alexander imperdível como Amleth, restava quiçá ter sido selecionada uma atriz um pouco mais madura para interpretar Olga.

Willem Dafoe em O Homem do Norte (2022)
Willem Dafoe é uma presença mas forte como Heimir, “O Tolo” |© 2022 Universal Studios/ Cinemundo

O GRANDE ORÇAMENTO DEIXOU A SUA MARCA? 

Um realizador com um cunho muito próprio não deixa de ver-se impelido à conformidade quando cria um filme para as massas. Segundo noticiado na última semana, o primeiro teste com audiências revelou que os espectadores selecionados para esta amostra acharam o filme confuso, impalpável e “apenas compreensível por alguém com um Mestrado em Estudos Vikings”. A complexa densidade histórica foi vista como um elemento negativo por estes primeiros olhos a descobrir a obra e, por isso, houve muito corte e costura na sala de edição. Ao ponto de alguns dos diálogos serem regravados e colocados em playback adicional. E se Eggers admite sentir-se orgulhoso deste take final, não deixamos de sentir uma curiosidade fervilhante em relação a esse outro take prévio, esse Director’s Cut que não passou da audiência de teste.

Simplificado ou não, “O Homem do Norte” é um espectáculo visual rico que mantém muitas das marcas de Robert Eggers: os close-ups intensos, quase dilacerantes, a paixão pelo preto e branco repleto de contraste e por uma certa plasticidade da imagem, até o seu fetiche por pássaros como elementos premonitórios está de volta. Todavia, não podemos deixar de assinar que este, dos seus três filmes, será talvez o que apresenta uma composição imagética menos coesa.

As sequências de sonho e premonição que remetem para a árvore genealógica do Príncipe Amleth são coloridas, fantasiosas, mais “mágicas” e verdadeiramente contrastantes com o ambiente mais sombrio e realista que reveste o cenário nas cenas durante o dia. Como se víssemos dois filmes distintos, um deles adornado com auroras boreais brilhantes e coloridas, outro assente em ritual pagão e nos atos quotidianos de um povo.

Nicole Kidman em Northman Robert Eggers
Nicole Kidman, estatuesca em “The Northman” ©| Universal/Cinemundo

Esta dissonância enfraquece um pouco a rica identidade visual de “O Homem do Norte”, um filme que se destaca pela intensa carga dramática e que se recusa a mastigar entretenimento fácil, por muito que o estúdio possa tentar impingi-lo. Ainda assim, é o filme mais digerível de Robert Eggers, situando-se uns (bons) tiros abaixo do seu antecessor, “The Lighthouse”. Mas não deixa de ser (mais que) merecedor de uma incursão às salas de cinema.

Sangrento, enraivecido, fiel, uma viagem no tempo impressionante, um trabalho orientado pelo detalhe e precisão, num grande filme de vingança para as massas que consegue reter (em parte) o seu sentimento arthouse – assim é “The Northman”.

TRAILER | O HOMEM DO NORTE, JÁ NOS CINEMAS

O Homem do Norte, em análise
O Homem do Norte Poster

Movie title: O Homem do Norte

Movie description: “O Homem do Norte” é um thriller épico de vingança que explora quão longe um príncipe Viking é capaz de ir para fazer justiça pelo assassinato do seu pai.

Date published: 25 de April de 2022

Country: EUA

Duration: 136'

Director(s): Robert Eggers

Actor(s): Alexander Skarsgård, Anya Taylor-Joy, Nicole Kidman, Claes Bang

Genre: Guerra, Fantasia, Histórico , Aventura

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  • Maggie Silva - 80
80

CONCLUSÃO

“O Homem do Norte” é visceral e arrojado do ponto de vista visual, recuperando um conto antigo e que reserva poucas surpresas e revitalizando-o ao ponto de o apresentar mediante uma estilização muito própria. Os elementos de terror que antes figuravam nas obras de Robert Eggers mantém-se intactos, criando-se assim um grande épico fantástico histórico de difícil digestão e que promete suscitar amor e ódio em igual medida.

Pros

  • A consciência histórica de um grande filme de estúdio apoiado por uma equipa numerosa de estudiosos do tempo dos Vikings;
  • Alexander Skarsgård como um Homem-Besta com amargura no olhar;
  • A não-romantização de um povo e seus costumes mais barbáricos;
  • O elenco na sua totalidade;
  • A fotografia, sempre exímia, como não podia faltar numa obra assinada por Eggers;
  • A sonante e memorável banda-sonora;

Cons

  • A tensão sexual ausente entre o par Taylor-Joy e Skarsgård (com a agravante de Kidman andar por perto. Esta, por outro lado, está sempre no seu melhor ao lado do ator sueco).
  • As sequências mais fantasiosas da obra, aquela em que vemos Ódin e a árvore mitológica. Aqui, a identidade visual destoa do resto do filme e cria uma dissonância no estilo, a qual poderia ter sido facilmente evitada.
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