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O Miúdo, em análise

O ciclo Um Verão com Maurice Pialat volta a celebrar a carreira do cineasta, desta vez com a exibição de “O Miúdo”.

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Termina e começa com duas canções escritas para a inconfundível voz de Bjork, a saber “You’ve Been Flirting Again” e “Human Behaviour”. Desde cedo que Maurice Pialat quis marcar de forma clara o modelo ficcional daquele que foi o seu último filme, LE GARÇU (O MIÚDO), 1995. Entretanto, através dos meandros delineados pelas circunvoluções narrativas do argumento, inseriu outras sonoridades como as de Bob Marley, Freak Power, Kali, Jimmy Cliff, Corona, numa incursão pelos mais diversos ritmos do mundo mas sem esquecer a importância que sempre deu ao universo da música erudita. Por isso, o realizador não dispensou a contribuição de compositores como Jacques Offenbach e o seu “Orphée Aux Enfers”ou Johannes Brahms e a sua Berceuse opus 49 nº4  “La Boite à Musique”. E para completar a componente musical associando-a ao proto-protagonista, o miúdo de quem se fala, não faltará sequer uma musiquinha infantil composta pela dupla J. F. Porry e Salesses, “Tchou Tchou le Petit Train”. Na verdade, O MIÚDO até podia ser um melodrama, simbiose de música e drama, se por ventura não fosse uma comédia amarga, muito amarga, sobre a impossibilidade de se encontrar um eixo gravitacional para o casal constituído por Gérard (Gérard Depardieu) e Sophie (Géraldine Pailhas), pai e mãe de uma criança cheia de vida e um pouco mimada, Antoine (Antoine Pialat). Dirão, nem mais, aqui está o garçu…! Pois, mas as coisas não são sempre lineares e podem surgir outros significados associados a uma mesma palavra. De facto, garçu significa garçon (rapaz, em francês) no patois, ou seja, no dialecto da região do Auvergne onde nasceu Maurice Pialat.

MAURICE PIALAT ENTRE O PRINCÍPIO E O FIM, MAS A VIDA CONTINUA…!

O miúdo
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No filme e na atmosfera particular da chamada França profunda iremos conhecer o pai de Gérard, outrora conhecido pela alcunha le garçu, que se encontra às portas da morte. De algum modo ele representa aquele cuja herança prevaleceu no filho que, por sua vez, nunca a assumiu por completo nem pensou regressar ao encontro das suas raízes nem abandonar as suas aventuras parisienses, e não só. Mesmo depois do funeral, Gérard continuou a não vislumbrar a hipótese de voltar ao local onde iniciara a sua existência como cidadão maior e vacinado. E aqui reside um dos pontos fortes de O MIÚDO. Nessa sequência quase derradeira descobrimos a chave que explica o lado mais ou menos superficial da personalidade de Gérard, alguma falta de maturidade, sobretudo a incapacidade de se relacionar com a sua mulher a não ser através dos momentos em que estão com o filho, projecto comum e desejado de ambos que de algum modo os mantém unidos ou, pelo menos, próximos. Um ser necessariamente frágil, apesar das aparências, capaz de lhes incutir uma certa responsabilidade.




O miúdo
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Nota vital que se repete no cinema de Maurice Pialat, a relação do casal passa por altos e baixos, momentos em que pensamos que o amor ainda existe para além do sexo ocasional que vai acontecendo aqui e além, mas logo a seguir percebemos que esses fogachos de aproximação serão sol de pouca dura. Por falar em sol, saliento logo ao início desta ficção realista a luminosa sequência das férias que Gérard, Sophie e Antoine passam nas paradisíacas Ilhas Maurícias, pelo menos para os europeus que vivem neste caso literalmente à grande e à francesa. Naquele espaço, banhado pelo mar azul e cristalino, o que julgamos ser a normal relação pai, mãe, filho degenera numa ausência de comunicação por questões algo fúteis, onde não falta uma cena de ciúmes, acentuando uma separação que vai prosseguir em Paris no seio de um vendaval de arrufos que atira Gérard para fora de casa. E para onde vai ele passar as noites? Nem mais nem menos para o apartamento da sua primeira e ex-mulher, onde não se coíbe de receber alegremente uma rapariguinha simpática mas com um currículo de sexo passageiro cuja pose, quer esteja na cama ou na mesa com amigos, não engana ninguém. Mais uma machadada na versão que se queria adulta de Gérard, comportamento que este contraria hora a hora, minuto a minuto. Para a equação desta geometria de corpos e almas ser mais complexa do que já era, a certa altura entra em acção um amigo de Gérard que acaba por ir viver com Sophie. Nessa relação ainda mais improvável lá vai ocupando, sem grande vontade ou convicção, o papel de substituto do pai mais ou menos ausente do pequeno Antoine.

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O miúdo
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Em suma, para onde quer que vão ou para onde quer que se voltem, a criança, o garçon, ou o garçu (como quiserem), está lá sempre para demarcar a linha vermelha que não pode nem deve ser ultrapassada por nenhum dos outros protagonistas. E Maurice Pialat consegue a proeza de fazer do miúdo, não um empecilho seja para quem for, mas sim um factor mobilizador das forças gravitacionais que movimentam o devir das diferentes personagens. Esse era um dos segredos do cinema do autor, que aqui não o usou cabalmente por razões de saúde que já o atormentavam, ou seja, a genial percepção de separar as águas na montagem entre o que se pode considerar essencial ou supérfluo. Durante o visionamento senti que o corte dos planos em certas alturas deveria ser mais decidido e económico. Muitas interacções entre os actores podiam ser mais curtas, outras menos improvisadas (não obstante o serem a partir de um guião) e, sobretudo, mais encenadas. Precisamente para que elas, aos nossos olhos, surgissem mais eficazes e acutilantes. Será, confesso, uma grande exigência da minha parte. Mas seria hipócrita se dissesse que este filme no domínio da estrutura final se equipara aos melhores exemplos da filmografia de Maurice Pialat, os que na MHD valorizei com 100, o equivalente a cinco estrelas, obras-primas a que atribuí de forma necessariamente subjectiva a nota máxima sem qualquer ponta de favor. Mas abençoados os filmes que, mesmo demonstrando não estar ao nível dos melhores, se desfrutam com o mesmo agrado e com o sentimento de que o realizador, mesmo quando faz o que muito bem lhe apetece, não esquece que do outro lado da objectiva estão actores que ele amava e o amavam e que do lado de cá do ecrã estão espectadores que encaram o cinema com o mesmo amor e entusiasmo com que Pialat abraçou o início da sua carreira nos idos de 1957: para que saibam, com uma curta-metragem realizada com o apoio cúmplice de amigos, intitulada DRÔLES DE BOBINES, um exercício ao redor do género burlesco nos antípodas do que seria a sua futura carreira cinematográfica.

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Movie title: Le garçu

Director(s): Maurice Pialat

Actor(s): Gérard Depardieu, Géraldine Pailhas, Antoine Pialat, Dominique Rocheteau

Genre: Drama, 1995, 102min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: O sentimento prevalecente de que, no seu derradeiro filme, Maurice Pialat mantinha intacta a sua capacidade de inserir na narrativa mais uma variação plena de humor e lucidez sobre assuntos muito sérios, sem concessões ao redutor pensamento dominante, que diziam e dizem respeito aos meandros da vida quotidiana de muitos homens e mulheres, pessoas de carne e osso, numa sociedade recheada de códigos que eles pensam dominar mas que na maior parte das vezes os domina.

Parte integrante do ciclo UM VERÃO COM MAURICE PIALAT, um dos grandes acontecimentos deste período estival que se quer bafejado pelos melhores ventos da cinefilia.

CONTRA: Nada.

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