Queer Lisboa ’25 | Laurent dans le vent – Análise
“Laurent dans le vent”, também conhecido como “Drifting Laurent”, foi o grande vencedor desta última edição do Queer Lisboa. O trio de cineastas, composto por Anton Balekdjian, Léo Couture e Mattéo Eustachon, arrecadou o prémio para Melhor Filme na competição de longas-metragens, julgada por Catarina Vasconcelos, Francisca Carneiro Fernandes e Gustavo Scofano. O júri destacou a delicadeza e a força da fita na sua deliberação, dizendo tratar-se de um filme sobre humanidade que nos faz crer na possibilidade de um mundo onde todos somos livres. Ainda elogiaram o projeto por tocar na questão da sexualidade sem disso fazer seu tema principal, uma qualidade interessante para levantar no contexto de um festival como este.
Mas de que trata este retrato de Laurent ao sabor do vento? Numa primeira cena, antecedendo mesmo o advento do título, o filme é resposta perfeita à promessa desse nome. Porque começamos à mercê das correntes de ar, com a câmara e um homem a sobrevoar uma paisagem verdejante, tão rápido que a terra lá em baixo se desfaz em rasgos de cor, pinceladas velozes que entram e saem da composição num abrir e fechar de olhos. Só uns pés pendentes se mantêm discerníveis, uma evocação dos sonhos de Fellini em “Oito e Meio” e a nossa introdução a Laurent. Se isto é uma imagem metafórica ou a realidade de um corpo em para-quedas fica incerto.
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Qualquer que seja a resposta, o resultado é o mesmo. Laurent está naquela idade em que a juventude assumida na casa dos vinte se esmorece com a festa dos trinta no horizonte. É uma fase difícil, especialmente para quem, como ele, sinta a sombra da depressão sobre o seu pensamento e mira o futuro com uma incerteza tão grande que se torna dúvida existencial. Mais tarde, em partilha íntima com novo amigo, saberemos da luta com saúde mental, da estadia no hospital psiquiátrico e da experiência com medicação que já não toma. Enfim, Laurent está em crise e, tendo abandonado a guarida na casa da irmã, vagueia sem destino pelos Alpes.
Nessa paisagem idílica, ele depara-se com uma vila de aparência quase fantasmagórica. O silêncio reina lá no sítio, com hotéis e chalés sem ninguém a erguer-se em torno da praça principal, suas janelas escuras como olhos sem vida. Há um parque de campismo, mas também lá poucos moram e será possível passar um dia em deambulações sem cruzar o caminho de outra qualquer alma perdida. Em certa medida, parece um espaço à beira do liminar, um sítio de respiração sustida e expectante. Esse é o fado da região e, na verdade, Laurent só consegue ter sítio onde dormir devido a essa falta de gente durante os meses mais quentes.
Existencialismo nos Alpes franceses.
Espera-se pelo inverno, quando a neve desce do cume das montanhas e abate-se sobre o vale, trazendo consigo turistas de esquis na mão e toda uma economia que floresce por poucos meses e volta a esmorecer com o degelo da primavera. São poucos os que resistem à desertificação, mas Laurent acaba por encontrar um lugar entre eles. Não que Balekdjian, Couture ou Eustachon estejam interessados naqueles sentimentalismos do forasteiro que forma comunidade com estranhos ao estilo de tanto “crowd-pleaser” de Hollywood. De facto, a primeira conexão humana surge em jeito bizarro.
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Acontece quando, num dos seus passeios de mota, Laurent se depara com o olhar de uma câmara. Farés é um marselhês transplantado para a paisagem alpina e, nos tempos livres, gosta de se sentar à beira da estrada e fotografar quem por lá passa. Inicialmente, a conversa com o nosso protagonista parece apontar um esquema, com menção de um site onde se podem comprar as fotografias e tudo o mais. Contudo, o momento estende-se e os tons alteram-se, sendo Laurent levado a despir-se para o prazer malandro do fotógrafo amador. Entre a gracinha salaz e uma sedução às três pancadas, a coisa não se resolve logo ali.
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Horas depois, lá Laurent vai à casa do sujeito com umas cervejas e mente aberta, travando amizade com traços de engate. Infelizmente, as depressões causam-lhe disfunção erétil, por isso a brincadeira não se pode consumar na totalidade. Mesmo assim, nasce ali uma intimidade preciosa e outras dinâmicas proliferam. Também há um agricultor em perpétua busca por uma cabrinha que gosta de se perder nas pastagens. Regressada a casa, a criatura até tem direito a dormir numa almofada rendada disposta no celeiro para o seu conforto. Ela e Laurent são parecidos, sendo que acaba sempre por depender da generosidade de uma irmã que o acolhe como o agricultor faz à sua cabra fugitiva.
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Noutra casa, vive Lola, uma senhora idosa e isolada, numa casa a transbordar de tralhas acumuladas, a quem Laurent ajuda quando mais ninguém se parece preocupar. Sophia é uma femme fatale na meia-idade, generosa e brincalhona e com um interesse marcado na beleza deste recém-chegado. Ela tem um filho, Santiago que é obcecado com vikings e representa mais uma pincelada de cor e comédia num retrato caricato da comunidade. Vale a pena dizer que essa caricatura nunca se manifesta com escárnio nem inspira tais desprezos no espectador. Apesar da mise-en-scène contida e um protagonista enigmático, uma cifra humana, a empatia sente-se forte na fita.
À procura de uma razão para viver.
É empatia e curiosidade e a vontade de conhecer todos estes universos que existem em nosso redor, contidos no mistério das outras pessoas. Se a câmara se deixa inebriar pelas possibilidades da paisagem, tudo o resto em “Laurent dans le vent” está virado para as personagens que, na sua mera presença, ajudam a dar propósito à existência de um jovem quase a cair num abismo dentro de mesmo. Se essa gente que ele encontra é absurda, então o absurdo é o que nos faz levantar da cama e enfrentar o desconhecido de um novo dia. O modo como os cineastas transmitem essa ideia sem manchar o filme com lamechice é deveras extraordinário.
Parte dessa qualidade liga-se a essa performance meio inexpressiva com que Baptiste Perusat dá vida a Laurent. No entanto, diria que a maior causa está na abordagem formal e na estrutura, no gosto pelo corte sugestivo que salta no tempo e nos faz matutar sobre aquilo que se perdeu entre cenas. Pensemos, por exemplo, na metamorfose da vila. Os primeiros indícios da chegada do inverno são súbitos, a mudança de estação perdida na reticência elíptica de um corte. E no inverno, esta cidade fantasma voltará a viver. Noutro abrir e fechar de olhos, já se perdeu a calma e o esplendor estranho da comunidade, posta às margens da multidão turista.
Do vazio à sobrelotação, pontuado pelo facto de que Farés regressou a Marselha sem nós vermos a despedida, deixando mais um vazio na vida de Laurent. Noutro momento será Lola quem abala o moço, e um drama natalício com a irmã ocorre numa fluidez de tempo capaz de nos deixar desamparados enquanto espectadores. A frustração das massas turísticas coincide com uma atmosfera onde o ar se torna pesado com neve, todo aquele mundo esbatido pela brancura da tempestade e da névoa. Certos planos parecem quase convidar ao apagamento de Laurent, puxando-o para os seus confins até que tudo se perca num clarão frígido.
Se a história termina sem um fim conclusivo, será porque esta viagem sentimental do jovem não se pode enquadrar na forma da longa-metragem. E, verdade seja dita, há algo de belo nisso, como se os cineastas encarassem as insuficiências do seu engenho e decidissem celebrá-las, talvez até tomar partido delas. Afinal, é só mais uma reticência no lugar onde esperaríamos um ponto final, mais uma divagação de “Laurent dans le vent” e uma sugestão de que a vida continua e a descoberta também. Não necessariamente a descoberta de felicidade ou respostas às questões profundas da condição humana, mas de razões para viver. O valor de “Laurent dans le vent” está mesmo aí, nessa simplicidade que, de simples, nada tem.
Laurent dans le vent
Conclusão:
- “Laurent dans le vent” é um campeão curioso para um festival de cinema queer, não se tratando de um trabalho fortemente definido pela sexualidade ou identidade de género das suas figuras. Mais do que isso, trata-se de uma deambulação existencialista onde elementos queer existem às margens de reflexões mais expansivas e, ao mesmo tempo, mais pequenas também. Arriscando o solipsismo, Anton Balekdjian, Léo Couture e Mattéo Eustachon exploram a melancolia do seu protagonista.
- Mas Laurent não existe num vácuo e a sua história forma-se em paralelo com a paisagem digna de postal, a comunidade alpina e as cabrinhas fugitivas com quem ele se cruza. Nesta conjugação, o filme produz uma meditação curiosa sobre o sentimento de impermanência manifestado em várias vertentes, quer na economia local ou na psicologia desta alma perdida.
- O elenco é muito bom, especialmente no que se refere às excentricidades dos papéis secundários. Contudo, é na fotografia de Mattéo Eustachon e na montagem de François Quiqueré onde as mais-valias da fita se afirmam. Pelo menos, nesses aspetos, “Laurent dans le vent” parece mais concreto e seguro de si, mais do que o esboço esbatido que aparenta ser nas suas passagens menos felizes.