Regresso ao Pó, em análise
“Regresso ao Pó” é a mais recente obra do cineasta chinês Ruijun Li, e conta com um elenco composto por Renlin Wu e Hai-Qing!
POEMA AOS QUE SE AMAM E TRABALHAM A TERRA…!
Produção da República Popular da China, com diversas e múltiplas participações financeiras, YIN RU CHEN YAN (REGRESSO AO PÓ), escrito e realizado por um ainda jovem cineasta, Li Ruijun, perfila-se como um pungente poema sobre um casal vítima de um casamento orquestrado por familiares que nitidamente se querem ver livres de um camponês agricultor já com alguma idade, Ma Youtie (interpretado de forma sublime pelo não actor Wu Renlin), e de uma rapariga doente, deficiente e estéril, Cao Guiying (composição igualmente superlativa da conhecida actriz Hai Qing). Na realidade, ambos viviam num contexto social e económico que de forma alguma se podia apelidar de favorável, passando muitas dificuldades, acrescidas ainda pelo facto de serem vítimas de constantes actos de segregação, mas também de pura e simples humilhação, que reduziam ambos ao estatuto de seres infelizes e relativamente isolados da realidade circundante de uma região rural já de si afastada dos grandes centros urbanos. Não obstante a sua peculiar condição e, mais uma vez num contexto de isolamento, os dois irão viver numa modesta habitação (aliás, sucessivas habitações precárias). Será então que vão erguer, pouco a pouco, uma muito sincera e comovente história de amor, relação consolidada através de exemplos maiores do que pode e deve ser considerada a verdadeira solidariedade humana. Para situar a acção de REGRESSO AO PÓ, a produção escolheu a Província de Gansu (454 000 km2, qualquer coisa como cinco vezes a superfície de Portugal). Dia após dia, colheita após colheita, Ma Youtie e Cao Guiying irão erguer um futuro cujos pilares assentam na Terra com T grande, a Mãe Terra, conceito que existe disseminado por muitas e diversas culturas, o culto ancestral da fonte da vida que nos retribui e multiplica o que semeamos e que, no caso dos membros deste casal aparentemente improvável, os leva a superar o lado mais adverso do passado na perspectiva de um equilíbrio que lhes permita numa união de corpos e almas encarar um horizonte existencial com a necessária esperança, assim como a saudável alegria de verem construir, dentro do possível, um radioso destino comum. E essa construção pode muito bem passar, como iremos ver em REGRESSO AO PÓ, pela construção de raiz de uma nova casa, depois das anteriores por onde andaram serem derrubadas num esforço de modernização empreendido pelo governo no sentido de melhorar as condições de vida e de habitabilidade numa região ainda marcada pelos sinais materiais do subdesenvolvimento. Tratava-se de um plano de remodelação com implicações estéticas e éticas, que previa indemnizações com alguma expressão face ao nível económico prevalecente naquelas autênticas bacias de pó e lama. Neste capítulo, o filme adquire dimensão política, e não apenas poética, ao falar abertamente das estratégias que do ponto de vista social foram ali aplicadas para modificar de uma vez para sempre o modelo de sociedade herdada por séculos de privações, facto que a nova China quer fazer desaparecer do seu plano de desenvolvimento e crescimento no quadro de uma economia global de que faz parte como um dos protagonistas mais importantes, senão mesmo o mais importante num futuro próximo. Para os familiares de Ma Youtie e Cao Guiying, e sobretudo para um comerciante local que se desloca num BMW, aquele casal não passa de um anacronismo, duas aves raras que ignoram ou parecem ignorar o progresso. De certo modo, assim pode parecer porque o casal que o filme destaca, por contraste com os outros que com eles se cruzam, não se quer desfazer da sua carroça, dos seus métodos ancestrais de semear, das suas galinhas e, muito importante, do seu burro (uma personagem por direito próprio no contexto particular deste filme). Numa palavra, não desejam abandonar a vida simples que sempre foi a deles. Mesmo assim, o motorizado rapaz do carro alemão usa e abusa do velho agricultor a quem pede para dar sangue com sistemática frequência. Para isso já ele serve. De novo, o realizador e argumentista introduz na narrativa depoimentos incisivos e nada subliminares sobre a realidade circundante, situações que na verdade são aqui expostas sem papas na língua e que levantam o véu sobre as desigualdades que, mesmo num contexto que as diz combater, continuam a existir. E este propósito resulta muito mais eficaz porque Li Ruijun recusa o discurso propagandístico e manipulador. Pelo contrário, procura dar a ver, sem demagogia e com pormenor, as vicissitudes e alegrias de dois seres cada vez mais unidos num quadro social específico e multifacetado. Deixa assim aos espectadores a margem de manobra suficiente para que eles façam o seu próprio juízo. Face a esta dialéctica permanente com que encena e enquadra a relação de Ma Youtie e Cao Guiying, associada a uma análise concreta de uma situação geográfica e demográfica concreta com base no materialismo histórico, percebemos que a produção não só conhece de perto as forças vitais que moldam no plano sociocultural as linhas gerais desta ficção como sabe apontar as soluções que no quadro actual da ruralidade chinesa, da TERRA chinesa, não são muito diferentes das que se anunciavam na época em que decorre a acção, o início da segunda década do século XXI.
No final, a demolição que iremos ver, precedida de um acontecimento dramático que irá amputar umas das partes da equação que fez mover uma belíssima e singular história de amor, será motivo maior de reflexão sobre o modo como aquilo que parecia estar certo e por isso podia prolongar-se, podia afinal estar circundada por imponderáveis que nos forneciam uma falsa percepção, geralmente a que sobressai a quem apenas foi cúmplice de um breve momento de fulgor.
Um filme de grande sensibilidade programática e artística, sim, que exige grande disponibilidade do espectador, mas que seria pena ver esmagado de forma pouco generosa nas bilheteiras, numa época em que a maioria das estreias aponta para outras direcções, mais plutocráticas e escapistas, onde a poesia ou não existe ou então passa ao de leve, como se fosse uma mera aragem de Primavera em pleno Inverno.
Regresso ao Pó, em análise
Movie title: Yin ru chen yan
Director(s): Ruijun Li
Actor(s): Renlin Wu, Hai-Qing, Guangrui Yang, Dengping Zhao
Genre: Drama, 2022, 131min
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João Garção Borges - 80
Conclusão:
PRÓS: Magnífica planificação a partir de um guião onde as coisas simples são valorizadas como pérolas da vida quotidiana, servida por uma assombrosa Direcção de Fotografia (responsabilidade de Wang Weihua), que usa com mestria um equilíbrio permanente e muitíssimo seguro entre luz natural e artificial. Paleta de cores que nos faz lembrar a aridez que se pode encontrar em grandes parcelas da região onde foi rodado o filme REGRESSO AO PÓ.
Magnífica Direcção de Actores que combinou a composição de uma personagem nada fácil de manter credível ao longo do percurso narrativo, assumida por uma actriz profissional, que foi propositadamente passar uns meses na Província de Gansu, junto do actor não profissional que viria a desempenhar o papel do seu marido nesta longa-metragem de Li Ruijun. Num plano muito prático, ambos aprenderam um com o outro os fundamentos da sua futura representação. Hai Qing a executar as rotinas próprias da mulher de um agricultor, Wu Renlin as aptidões que lhe permitissem desempenhar a sua personagem com credibilidade, assumindo rotinas que já eram as suas mas nunca haviam sido objecto da atenção de uma equipa cinematográfica. E a mútua lição de arte e de vida está lá presente de forma bem clara, no seu mais luminoso esplendor.
Em 2022 recebeu o Prémio João Bénard da Costa, atribuído pelo Júri do LEFFEST – LISBON & SINTRA FILM FESTIVAL, presidido pelo cineasta Olivier Assayas e composto pelos realizadores Julie Dash e Lorenzo Vigas, pela actriz Joana Ribeiro
e pelo escritor Dana Vachon.
CONTRA: Nada.