"A Savana e a Montanha" | © No Comboio

A Savana e a Montanha, a Crítica | Paulo Carneiro traz a luta de Covas do Barroso ao grande ecrã

A população de Covas do Barroso luta contra a exploração do lítio que lhes destrói a paisagem, a casa, o modo de viver. “A Savana e a Montanha” mistura facto e ficção num cinema híbrido, quase brincalhão na sua natureza panfletária.

No panorama mundial, há poucos cinemas nacionais onde a barreira entre o documentário e a ficção esteja mais esbatida que no português. Em comparação, o Neorrealismo Italiano é uma aberração na sua História e só mesmo o trabalho dos vanguardistas iranianos consegue ser tanto ou mais ousado. Estas dinâmicas já se registavam nos primórdios do nosso cinema lusitano, ainda antes do som sincronizado, quando as primeiras narrativas surgiam de uma abordagem quase etnográfica. Pensemos nos trabalhos de Rino Lupo e, mais tarde, no modernismo afigurado por Oliveira e a “Maria do Mar” que Leitão de Barros assinou em 1930.

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Dito isso, foi com a revolução dos cravos que este tipo de expressão cinematográfica explodiu, sendo plenamente exemplificado pela filmografia de António Reis e Margarida Cordeiro. Desde esses anos, a tradição tem crescido, tem-se transformado e vindo a transformar as possibilidades do cinema feito em Portugal, desde os fantasmas das Fontainhas com que Pedro Costa assombrou as salas até às brincadeiras mais provocadoras de Miguel Gomes e Leonor Teles, João Nicolau e Pedro Pinho e tantos outros. A esses nomes, junta-se Paulo Carneiro que, na sua terceira longa-metragem, conjuga estas tradições lusitanas com a iconografia western para uma experiência bizarra que dá pelo nome de “A Savana e a Montanha.”

Um Western à Portuguesa.

a savana e a montanha critica
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A ação, se é que lhe podemos chamar isso, decorre no Norte do país, lá para Covas do Barroso, onde a exploração de lítio por empresas estrangeiras tem vindo a escoriar a paisagem e o modo de vida da população local. Neste caso específico, trata-se da britânica Savannah Resources, que planeia construir a maior mina a céu aberto do continente europeu. Além das questões ambientais, o risco sobe para os residentes pois essas brocas e pedra quebrada estarão somente a uns metros das suas casas, dos campos gradualmente envenenado pelos subprodutos do trabalho mineiro. A uma escala em miniatura, Covas do Barroso confronta o apocalipse.

Unidos pelo ultraje, os cidadãos revoltam-se contra a Savannah e seus trabalhadores, organizando demonstrações. Dentro da narrativa da fita, até se viram para a sabotagem e ataque direto, encenando-se em jeito de coboiada americana feita em Portugal. Faz-se o apelo à imagética mais caricata desse género cinematográfico como veículo para a paródia, mas também para a fúria. Do engenho apalhaçado, aparece a chance para exigir a justiça que se mostra impossível de conquistar na vida fora da tela. Do artifício descarado, surgem verdades demasiado lacerantes para se dramatizar em forma realista. Pelo menos, dentro dos limites que a estratégia cénica levanta.


Nessa mistura muito Portuguesa de documentário e ficção, Carneiro propõe uma loucura entre o teatro amador e aqueles festejos da Paixão de Cristo que Manoel de Oliveira tão bem imortalizou no “Ato da Primavera.” Por outras palavras, os habitantes de Covas do Barroso interpretam uma exageração dramática de si mesmos, deixando-se observar no dia-a-dia em jeito documental antes de se caricaturarem em prol da história de revolução rural aqui proposta. Não que as ideias do cineasta se esgotem aí. Mais do que uma simples pastiche um polvilhar de Neorrealismo português por cima, “A Savana e a Montanha” explora as permutações formais destas ideias.

Pensemos na imagem em si. Carneiro é um realizador atento às propriedades cinemáticas da paisagem, tal como os rios de alcatrão e vastidão noturna da “Via Norte” bem demonstraram. Neste projeto mais recente, a sua câmara deixa-se apaixonar pelos ritmos naturais e humanos, quiçá humanistas, da localidade. O diretor de fotografia Duarte Domingos dá grande preceito à textura da luz na alvorada, essas neblinas matinais que tornam a montanha numa abstração e fazem fantasmas de animais que entram e saem do nosso campo de visão. O uso de zoom também se destaca, principalmente pelo modo como parece conter toda uma ideologia manifesta em técnica de cinema.

Entre o pastiche, o Neorrealismo e a revolução.

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Várias vezes, Carneiro enquadra a montanha na sua monumentalidade, celebrando a beleza local nos seus planos granulosos, cheios de movimentos suaves e matizes que saltam à vista sem tornar a fita numa coleção de postais. Do geral, da paisagem, o olhar da câmara prende-se a um qualquer sujeito e o zoom torna-o no centro do espetáculo. O uso de transições em iris só reforça essas dinâmicas. Estamos sempre cientes da comunhão entre as pessoas e a terra, entre o colético e o indivíduo – quer seja em termos concetuais como audiovisuais. Também há o engenho da música a considerar, um uso do canto e da expressão folclórica para complicar o cocktail de géneros ainda mais.

Aos 77 minutos de duração, “A Savana e a Montanha” tem pouco tempo para levar todas estas ideias à plenitude. No entanto, esticar o projeto em demasia podia acabar por colocar o elenco numa posição infeliz. Carneiro fez questão de mostrar só os locais, apagando a gente da Savannah como gesto deliberado, o que limita aquilo que pode encenar. Para muitos, os limites narrativos serão insuportáveis, a secura interpretativa com trejeitos Pasolini e ausência de personagens no conceito tradicional uma via direta para o tédio. Será arte povera com coerência política ou algum naïf indevido, uma exploração indevida da gente rural ou uma celebração delas? Pode ser tudo, ou nada. Dito isso, há muito valor no que esta equipa tentou fazer e, chegado o final, é difícil não sentir euforia.

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Muito antes de chegar às salas nacionais, “A Savana e a Montanha” teve a sua estreia no Festival de Cannes, fazendo parte de uma coleção de curtas e longas portuguesas que marcaram presença em várias secções. Várias obras exploraram os abusos capitalistas dos nossos tempos, com muito foco na relação entre o cidadão e uma paisagem em perigo. Sem intenção, “A Savana e a Montanha” está em diálogo com esses outros filmes e tanto ganha como perde na comparação. Uma coisa é certa – juntamente com “O Jardim em Movimento,” “Quando a Terra Foge” e outros que tais, esta façanha de Paulo Carneiro reflete uma preocupação crescente do cinema português, afigurando uma onda de revolta em busca de expressão, um grito à procura da voz para se fazer ouvir.

A Savana e a Montanha, a Crítica

Movie title: A Savana e a Montanha

Date published: 30 de April de 2025

Country: Portugal

Duration: 77 min.

Director(s): Paulo Carneiro

Genre: Drama, Western, 2024

  • Cláudio Alves - 80

CONCLUSÃO:

Covas do Barroso torna-se no cenário para um western do século XXI, onde os desertos dos EUA são substituídos pelas montanhas portuguesas. A paisagem está em perigo, escorraçada por potências de fora para os quais a população local não é mais que uma irritação passageira. Dando voz a essa gente por meio de uma encenação caricata, Paulo Carneiro tenta alcançar algo mais real que a realidade, uma mistura de géneros afigurando-se em forma de cinema ativista. “A Savana e a Montanha” é um projeto tão modesto quanto ambicioso, um poço de contradições, pronto a fascinar e revoltar.

O MELHOR: A fotografia de Duarte Domingos e a música de Diego Placeres são os principais destaques deste exercício.

O PIOR: A distanciação criada por Carneiro, seu gosto pela incerteza que surge entre o artifício amador dos não-atores e as verdades urgentes em jogo.

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