Kingsley Ben-Adir em "Uma Noite em Miami..." © Prime Video

Uma Noite em Miami…, em análise

Estamos a caminho dos Óscares 2021 e por isso analisamos “Uma Noite em Miami…”, drama que marca a estreia de Regina King como realizadora.  

As salas de cinema continuam fechadas, mas na MHD não deixámos de assistir aos melhores filmes. Desta vez quisemos analisar “Uma Noite em Miami…“, um filme distribuído internacionalmente pela Amazon Studios e que chegou em exclusivo a Portugal no passado dia 15 de janeiro, através da plataforma de streaming a Prime Video.

Depois de um ano com vários filmes bem aceites pela crítica, como por exemplo, “Borat Subsequent Moviefilm” foi a vez da plataforma dar o salto para o cinema histórico, com a estreia na realização de Regina King. Tudo em resultado do seu sucesso no Festival de Veneza e depois no Festival Internacional de Cinema de Toronto, onde arrecadou o segundo lugar do People’s Choice Award, logo depois de “Nomadland – Sobreviver na América“, de Chloé Zhao.

Uma Noite em Miami… já disponível na Prime Video

Uma Noite em Miami…” surge na mesma linha que outras produções baseadas em adaptações teatrais como “Ma Rainey: A Mãe do Blues” (outro forte candidato às estatuetas douradas cuja crítica podes ler aqui) sobre personagens aparentemente colocadas em segundo plano, nomeadamente no que diz respeito à história dos afro-americanos. Também no drama biográfico de Regina King dá-se um encontro intimista entre figuras reais, onde estão em foco várias questões perfeitamente contemporâneas como o racismo, o impacto do capitalismo na comunidade afro e, por sua vez, o significado do sonho americano, com alguns confrontos e ideologias mais intensas à mistura.

Para tal, somos transportados para a cidade de Miami, ao dia 25 de fevereiro de 1964. Nesta altura, os Estados Unidos da América viviam momentos de forte turbulência, relacionados com os movimentos dos direitos civis dos afro-americanos, a Guerra Fria e obviamente com o assassinato do seu 35º Presidente, John F. Kennedy em novembro do ano anterior. Em geral, esta foi uma época conturbada, em que toda a sociedade estava fragilizada, sendo ainda mais complexa, a rotina para os negros, permanentemente segregados e discriminados pelos brancos.

Mesmo assim, o filme começa com um momento épico, até inesperado: a vitória de Cassius Clay (Eli Goree), que com apenas 22 anos, destrona o poderoso Sonny Liston num duelo de pesos pesados do boxe nunca antes visto. O novo campeão mundial tem sangue jovem, é destemido, e ao vencer o título de campeão mundial sente-se o rei do mundo. Para celebrar a vitória, o miúdo que se tornaria Muhammad Ali, desloca-se até ao Hampton House Motel, nas periferias da cidade solarenga de Miami, onde se deverá encontrar com os seus melhores amigos. O primeiro Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), afro-americano islão e referência crucial para Ali na sua procura pelo espiritualidade, o segundo o ás do futebol americano Jim Brown (Aldis Hodge) e o terceiro é nada mais nada menos que Sam Cooke (Leslie Odom Jr.), uma das vozes inconfundíveis do soul, muitas vezes considerado o seu mobilizador.

Este quarteto fantástico da cultura junta-se para celebrar um prémio, embora acabem também por discutir questões sociais, políticas e culturais pertinentes que terminam em fricção, e respostas desafiantes. A estrutura acaba por ser algo semelhante ao argumento de Aaron Sorkin de “Os 7 de Chicago”, em que cada personagem sobe ao palco para dar a sua opinião.

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One Night in Miami © Prime Video

Há que entender, desde logo, o interesse da narrativa de “Uma Noite em Miami…” em encontrar uma definição para toda a comunidade afro-americana através destes homens. Mesmo rodada quase na sua totalidade dentro de quatro paredes, a trama consegue alcançar perfeitamente um sentido universal. Cada homem – através de gestos e olhares muito simbólicas – pode ser a sua visão, o seu ponto de vista, reivindicado-os ao longo do enredo, mas no final das contas pertencem todos àquela comunidade colocada em segundo ou terceiro plano. A carreira de Cassius aliada à sua conversão ao Islamismo, o discurso mais radical e explosivo de Malcom X, a mudança irónica na carreira de Jim Brown de jogador célebre para ator de Hollywood e as opções musicais de Sam Cooke (focadas no entretenimento e não tanto na consciencialização social) são o foco para os vários monólogos com que esta longa-metragem nos vai presenteado. Rapidamente, o quarto do motel torna-se o palco da emancipação, o local onde aqueles seres humanos buscam alguma liberdade.

Um dos momentos chave desta trama acontece precisamente quando Malcom X e Sam Cooke entram conflito. Malcolm X acaba por ser consumido pela sua própria arrogância e ousadia e não entende porque Cooke não canta em prol dos movimentos civis, sentindo-o mais focado na sua estabilidade na indústria musical e em ‘agradar os brancos’. Sam Cooke é, de facto, um homem que fala pouco e prefere evidenciar o seu prestígio de forma singela, fazendo respeitar onde quer que cante. Não será por isso coincidência a forma como a música é essencial para evidenciar o seu poder.

Estão portanto em jogo uma série de questões. Qual a liberdade mais importante para um afro-americano? Será a liberdade social e política? Ou será apenas a liberdade económica face ao brancos? Aqui dá-se por fim uma desmistificação do sonho americano, entendido como privilégio de poucos e um autêntico ato de negação perante as responsabilidades comunitárias. Poderão o materialismo e o egoísmo vencer o bem e a partilha para com os nossos? Tanto Malcom X como Sam Cooke são irmãos afastados, de uma batalha sem fim, onde é fulcral colocar-se no papel do outro. Da mãe, do pai que perdem os seus filhos para um racismo sem precedentes.

Uma Noite em Miami
Aldis Hodge e Leslie Odom Jr. em “Uma Noite em Miami…” © Prime Video

Quanto à construção narrativa, “Uma Noite em Miami…” não tem medos de ir além do rótulo de filme teatral, como nos vários movimentos de câmara da diretora de fotografia de Tami Reiker (forte candidata ao Óscar da Academia).  Não deixa de haver um respeito para o material original e portanto, o filme exige do espectador alguma paciência em termos de diálogo. O argumento de Kemp Powers, o próprio escritor da peça e um dos argumentistas de “Soul – Uma Aventura com Alma” é essencial para entender a dialética entre as personagens, sendo capaz de mudar de um tom mais energético e cómico, proporcionado por Cassius Clay, para um tom mais profundo, com a ideologia de Malcom X. Fica a faltar em “Uma Noite em Miami…” um aprofundar maior da sua narrativa, com algumas ideias interessantes que se acabam por perder. A contextualização inicial de cada personagem, por exemplo, é vista apenas como maneira da trama cinematográfica ser distinta do modelo teatral.

De qualquer forma, para uma estreia em realização, Regina King mostra-se uma cineasta inteligente e consegue criar a dinâmica necessária, sem dar a impressão de uma simples transposição teatral. É mais pertinente o filme ser realizado por uma mulher afro-americana, algo que confere uma perspectiva mais transparente e uma homenagem sincera aqueles quatro homens que King sempre admirou.

Uma Noite em Miami
Os quatro protagonistas de “Uma Noite em Miami” © Prime Video

“Uma Noite em Miami…” não deixa de dialogar com os nossos dias. A morte de George Floyd ocorrida em maio de 2020 às mãos de polícias brancos colocou em evidência uma cicatriz antiga do país. Em resultado disso, verificou-se o ressurgimento do movimento “Black Lives Matter”, onde os afro-americanos sairam à rua para gritar por justiça.

Com tudo isto, razões não faltam para que “Uma Noite em Miami…” seja um dos grandes protagonistas da noite dos Globos de Ouro, que acontece no próximo domingo, ou até mesmo na noite dos Óscares. A discussão de temas tão atuais e a forma subtil como cada personagem expressa as suas crenças, tornam-no num trabalho poderoso e bastante envolvente.

Uma Noite em Miami…” é baseado numa história verídica? 

Terminemos com a pergunta que muitos espectadores já fizeram quando viram “Uma Noite em Miami…”. Será a trama contada real? Em parte, sim, mas obviamente as conversas são algumas completamente ficcionais. Cassius Clay, Malcolm X, Cooke e Brown eram realmente amigos e estiveram juntos naquela noite de fevereiro em Miami.

Apesar de existirem fragmentos da história e vários relatos, Kemp Powers revelou ter tido problemas em ir além das informações superficiais. Cooke, Ali, Brown e Malcolm X juntos representavam um novo mundo de possibilidades para toda uma sociedade e permitiram dar o novo rumo à história da comunidade. Enquanto Sam Cooke e Malcom X morreriam precocemente – o primeiro assassinato a 11 de dezembro de 1964, o segundo também assassinato a 21 de fevereiro de 1965 -, Ali teve uma vida longa e faleceu aos 73 anos de idade em 2016. Jim Brown continua vivo e aos 85 anos continua a ser um dos mais importantes ativistas raciais dos EUA.

Abaixo poderás conhecer toda a vericidade dos factos narrados em “Uma Noite em Miami…” num vídeo criado pela própria Prime Video.

A música de Sam Cooke em “Uma Noite em Miami…”

One Night in Miami“, no título original, culmina com uma interpretação surpreendente de James Cooke, intercalada com momentos de violência sentidos por Muhammad Ali e pela sua família, pela conversão ao Islamismo do recém surgido Muhammad Ali e a nova vida de Jim Brown. Ao longo do filme ouvimos algumas das canções mais pertinentes da carreira de Sam Cooke, que se inspirou em Bob Dylan, e cujo impacto na cultura afro-americana continua a ser bastante visível.

Num filme onde a música assume um papel importante, vale a pena salientar a canção original “Speak Now”, escrita pelo próprio Leslie Odom Jr., o intérprete de Cooke no filme em parceria com Sam Ashworth. Bastante comovente, é uma canção sobre o apelo à ação, embora de forma contida, numa melodia que revela o sofrimento daqueles menosprezados no seu próprio país. Há que dar as mãos e unir-se perante a mudança e perante um futuro melhor.

  • Virgílio Jesus - 80
  • José Vieira Mendes - 60
  • Maggie Silva - 75
72

Summary

Em “Uma Noite em Miami…” Regina King deixa-nos a par da glória e do impacto de quatro importantes homens na cultura afro-americana, ao mesmo tempo que nos coloca diante da sua busca pela dignidade e pela afirmação pessoal.

Pros

As interpretações dos quatro protagonistas, que poderiam ser muito bem o quarteto fantástico desta temporada de prémios.

Cons

“Uma Noite em Miami…” é uma adaptação inteligente, mas as longas conversas teatrais poderão ser cansativas para alguns espectadores.

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