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Viagens | Malta: Onde pára o Corto Maltese?

O 1.º Mediterrane Film Festival, realizado em Valletta, Malta, entre 25 de Junho e 1 de Julho passados, foi uma espécie de ‘ensaio geral’ de um novo festival internacional, com filmes do sul da Europa e do Mediterrâneo: o português ‘Alma Viva’ foi um dos vencedores. Porém, a forte aposta foi na promoção de Malta como destino de eleição para filmagens internacionais. Mas onde pára Corto Maltese, essa figura lendária da banda desenhada, nascida em Malta?

Corto Maltese
Onde Pára O Corto Maltese em Malta? ©Corto Maltese – https://cortomaltese.com/en/

Corto Maltese, a personagem da banda desenhada criada por Hugo Pratt, é para mim um símbolo da liberdade, do cosmopolitismo, da cultura mediterrânea e da literatura de viagens. Tudo aquilo que mais aprecio além do cinema. Fui convidado para ser jurado e representante português do 1.º Mediterranean Film Festival — um novo evento cinematográfico onde se apresentou, premiou e discutiu o cinema do sul da Europa e do Mediterrâneo. Fui três dias antes para explorar a ilha de Malta com uma scooter alugada e ir em busca de algo relacionado também com o mito do Corto Maltese. Já tinha estado em Malta, um fim de semana em 2012, para a cerimónia dos 25º European Film Awards, os Prémios do Cinema Europeu 2012. Pouco mais deu do que para passear um final de tarde e uma manhã em Valletta, a magnífica capital. Desta vez foram cerca de 10 dias que incluía a premiação de uma mostra competitiva de ‘filmes mediterrâneos’, mas que se revelou mais uma poderosa acção de promoção para Malta — arquipélago localizado ao sul da Sicília e virado para a Tunísia, no norte de África — como destino de filmagens (estavam a começar lá as rodagens de ‘Gladiador 2’, de Ridley Scott); e, sobretudo uma tentativa de criar uma certa unidade ou uma network de produção de filmes do Sul da Europa e Mediterrâneo. Malta tem sido, desde há décadas, o ‘cenário natural’ de grandes produções internacionais, que vão desde, ‘Popeye’, ‘Gladiador’, ‘Tróia’, ‘Munique’, ‘Assassins Creed’, ‘Alexandre, o Grande’, até à famosa série televisiva ‘Guerra dos Tronos’. A Malta Film Commission pretendeu criar, em pouco mais de 3 meses, um mega-evento ao nível dos grandes festivais, com a presença de muitas estrelas e talentos do cinema europeu e internacional, como Eric Bana, Natasha Mclehone, Jared Harris, além dos portugueses Joaquim de Almeida, Daniela Melchior ou o realizador Marco Martins. Na categoria de Melhor Filme, o vencedor dos Golden Bee Award foi, sem surpresa, o excelente ‘Alcarràs’, de Carla Simón (Espanha), numa selecção de 9 filmes —Safe Place (Croácia), ‘.dog’ (Chipre), Saint Omer (França), ‘Magnetic Fields’ (Grécia), Nostalgia (Itália), ‘Carmen’ (Malta), ‘Alma Viva’ (Portugal) e ‘Orchestra’ (Eslovénia) — que, aliás, tinham sido os candidatos dos referidos países à pré-selecção de Melhor Filme Internacional dos Oscar 2023.  O filme português ‘Alma Viva’, da realizadora luso-francesa Cristèla Alves Meira, arrecadou os prémios de Melhor Actriz (para a pequena Lua Michel), Melhor Fotografia — esteve lá o prestigiado director de fotografia Rui Poças para os receber a todos — e Melhor Banda Sonora Original (Amine Bouhafa). A cerimónia de entrega dos prémios realizou-se no Forte Manoel na última e quente noite de junho e foi um extraordinário espectáculo de luz, cor e muito glamour. Foi apresentada pelo actor e comediante britânico David Walliams (da série de televisão ‘Little Britain’), e contou com a participação da estrela dos X Factor, Rebecca Ferguson, da saxofonista Alexandra Illieva e do tenor maltês Joseph Calleja. Apesar de alguma inexperiência por parte da organização, a experiência foi positiva e sobretudo muito divertida. Esperemos que continue nos próximos anos.

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VÊ EXCERTO DA SÉRIE  ‘ALENTEJO SEM LEI’ (1991)




OS MALTESES DE MALTA

Comecei as minhas buscas turístico-culturais pelas enigmáticas e polissémicas palavras maltês e Malta: um adjectivo e um substantivo que definem, respectivamente, os habitantes da ilha e a nação, um dos 27 países da UE. Porém, Malta significa, nos dicionários de português, um grupo heterogéneo (de pessoas, lugares ou coisas) que na verdade não tem qualquer conexão com esta(s) ilha(s), do Mediterrâneo. Em português, usamos a palavra ‘malta’ quando nos queremos referir a um grupo indeterminado de pessoas: por exemplo, ‘a malta lá do bairro’ e por vezes até usamos esta expressão num tom um tanto depreciativo. E faz sentido porque, na tradição popular, sobretudo no Alentejo do século XIX, a palavra ‘malteses’, referia-se a grupos de trabalhadores manuais que andavam sem eira nem beira, de terra em terra, à procura de trabalho sazonal; ou então a indivíduos que viviam em bandos, quase no limiar da criminalidade. Por exemplo, na série ‘Alentejo Sem Lei’ (1991), do realizador João Canijo, um clássico da televisão portuguesa, ao estilo western, passada no Alentejo durante a Guerra Civil de 1828-1834 — que opunha liberais a miguelistas — nessa região onde a força era a lei, a palavra surge várias vezes como referência aos grupos de marginais que assaltavam e saqueavam as herdades e montes alentejanos. Ou, melhor ser maltês, no Alentejo, por volta do segundo quartel do século XX, era ser um homem ou um trabalhador sem rumo, com uma existência deserdada devido à crónica falta de trabalho manual, e que vagueava de terra em terra, de monte em monte, lutando pela sobrevivência, pedindo esmola, feito indigente. Para separar ficção da realidade, vasculhei na internet esta questão, para ver se a palavra teria alguma herança maltesa ou genealogia na ilha. Nada! A explicação não é muito clara em relação ao aparecimento da palavra em português, já que no inglês da ilha — a língua oficial, apesar do maltês, que é uma mistura de árabe, italiano, espanhol, francês — é ‘maltese’. A influência entre Portugal e Malta parecia improvável — mas existe, através da Igreja e lá chegaremos — já que os navegadores, comerciantes e colonialistas portugueses, andaram mais pelo Atlântico, África e Oriente. 

Corto Maltese
Os ‘Maltesers’ não têm nada a ver com Malta. ©british food depot

MALTESES E MALTESERS

A propósito destas relações e das palavras relacionadas com Malta, lembrei-me também dos famosos e docinhos ‘Maltesers’, um produto de chocolataria fabricado pela multinacional Mars, Inc., que são quase redondinhos e têm no meio um favo de malte, coberto com chocolate de leite. Fui verificar também se tinham alguma relação com Malta. Os ‘maltesers’, são efectivamente, muito populares no Reino Unido, Austrália, Irlanda, Canadá e em Portugal — acho que os vi em algumas lojas em Malta. O nome deste produto de chocolataria é tecnicamente chamado de um ‘portmanteau’ com origem nas palavras ‘malt’, um dos seus principais ingredientes, e ‘teasers’, por serem não exactamente esféricos. Apesar da semelhança no nome, os ‘maltesers’ não têm nada a ver com este país europeu, o seu povo ou qualquer dos seus produtos ou doces tradicionais. Porém, quando falava com um natural de Malta, naquela do ‘Where are you from?’, perguntava-lhe: ‘É de Malta?’ em vez de: ‘É maltês?’, para não não correr o risco de me enganar e lhe perguntar: ‘É um ‘malteser’?’ Correu bem!

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VÊ EXCERTO DE ‘RELÍQUIA MACABRA’ (1941)

O FALCÃO DE MALTA

‘O Falcão de Malta’, é o titulo de um famoso romance e de um fabuloso clássico do cinema. Aliás existem várias adaptações do livro ao cinema e à televisão. ’The Maltese Falcon’, em inglês, é um romance policial lançado em 1930, da autoria do escritor Dashiell Hammett, imortalizado para o cinema em ‘Relíquia Macabra’ (1941) — teve este título em Portugal —, um clássico do ‘cinema noir’,  realizado pelo grande mestre John Huston e protagonizado por Humphrey Bogart. O ‘falcão maltês’ do romance é, na verdade — daí a relação com o título português —, uma relíquia, uma estatueta de um pássaro preto, incrustado de pedras preciosas, que se acredita ter sido um presente de Malta ao Imperador da Espanha, algumas centenas de anos antes da acção do romance; ou seja, no tempo de Carlos V, que dominou a ilha — como aliás uma boa parte da Europa dessa altura. Na verdade, o pássaro de jóias tem um papel periférico na história do romance e do filme, e o filme tem lugar exclusivamente nos EUA. A estatueta rara e valiosa poderia facilmente ter sido outra coisa, de outro lugar qualquer, se o autor assim o desejasse. A sua relação com Malta é assim bastante clara, remetendo  essa ave quase extinta na ilha, mas também existem outras relações com uma certa raça de cães e outra de gatos e até com um belo iate à vela, de cerca de 289 pés, ancorado numa das muitas marinas ou portos de Malta. A ilha de Malta tem uma associação real com esse falcão e aqui vai a História em pormenor: quando o Sacro Imperador Romano Carlos V, concedeu as Ilhas Maltesas aos Cavaleiros de São João em 1530, depois de estes terem sido expulsos de Rodes pelos sarracenos, solicitou aos monges-guerreiros dois falcões malteses, como pagamento de uma espécie de aluguel anual da ilha: um para si próprio e outro para o vice-rei da Sicília. Malta era então conhecida pelos melhores falcões-peregrinos e, até meados do século XX, era ainda um lugar onde estes nidificavam, embora em números escassos, nas falésias de Ta ‘Cenc, na ilha de Gozo — a segunda maior do arquipélago e onde se rodaram algumas cenas de ‘Guerra dos Tronos’. Em vez de serem apreciados como pássaros caçadores, acabaram sendo caçados até quase à sua extinção. O último par residente foi abatido em 1980. É por isso que é mais apropriado que o falcão maltês do romance de Hammett ou no filme de John Huston, seja representado por uma estatueta, um tanto macabra. 




Os cães malteses uma raça que está ligada à História de Malta. ©SheltieBoy, via Wikimedia Commons (CC-BY-2.0)

OS CÃES FAZEM A HISTÓRIA

Há também uma conhecida raça de gatos, popularmente conhecida pelo nome de ‘maltês’. Esta é a designação normalmente usada para descrever as raças de gatos com o pelo cinzento, incluindo os gatos angorá de pelo comprido, os British Shorthair ou os gatos cartuxo. E não sei muito mais destes gatos a não ser que são lindos e misteriosos como a estatueta. O mesmo não se pode dizer — dependendo obviamente dos gostos — do pequenote cão maltês, que está muito ligado à história de Malta. Esta raça de pequenos cães tem uma conexão directa com a(s) ilha(s) ou, pelo menos, com o Mediterrâneo central, mesmo que não possamos identificar de imediato Malta, no seu pedigree. DE qualquer modo é uma raça de cães miniatura muito popular na Europa do Sul. Originalmente chamado de ‘Canis Melitaeus’ em latim, é conhecido em inglês como o ‘cão antigo de Malta’, o ‘Cão das Senhoras Romanas’, o ‘Cão Leão Maltês’ e o ‘Bichon’, entre outros nomes. De acordo com a Wikipédia, ‘este cães chegaram provavelmente à Europa através do Médio Oriente, com a migração de tribos nómadas. Alguns estudiosos acreditam que esses proto-malteses foram usados para controlo dos roedores.’ Mas isto faz mais sentido em relação aos gatos! Contudo, o registo mais antigo desta raça de animais domésticos foi encontrado numa ânfora grega na cidade etrusca de Vulci, na qual um cão parecido com o maltês é retratado junto com a palavra Μελιταιε (Melitaie). Os arqueólogos datam este antigo produto ateniense nas décadas de cerca de 500 a.C. As referências ao cão também podem ser encontradas na literatura grega e romana antigas. Na verdade, não vi ninguém a passear um cãozinho destes. Vi muitos gatos de todas as cores pelas ruas e nas janelas, como na maioria dos países mediterrâneos, mas nada de gatos malteses.

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Corto Maltese
A Ordem dos Cavaleiros de São João, fundamental na História de Malta. ©Os Hospitalários

OS CAVALEIROS DE MALTA

Em 1530, chegaram à ilha de Malta, a Ordem dos Cavaleiros de São João, uma das várias ordens de cavalaria que desde a época das Cruzadas (1095-1300) combatiam os ‘infiéis’ muçulmanos e que haviam entretanto conquistado Jerusalém. Por volta de 1500, já não eram os árabes a ser combatidos, mas os turcos. Em 1453, o sultão otomano Mehmet II, então com 22 anos de idade, tomou Constantinopla e os turcos foram-se expandindo graças à sua força naval e aos seus exércitos, conquistaram o sudeste europeu e chegaram à Áustria e Itália. Eram como uma onda islâmica, que chegava ao centro da Europa. Em 1522, os turcos expulsaram da ilha de Rodes, na actual Grécia, a Ordem dos Cavaleiros de São João, que procuraram refúgio em Malta. A ilha fazia parte do Reino de Nápoles e da Sicília, então pertencente à Coroa Espanhola (Carlos V, em 1530, era tanto rei da Espanha recém-unificada e era o Sacro-Imperador Romano-Germânico), que ‘alugou’ a ilha aos Cavaleiros de São João para que o ajudassem a prevenir uma eventual invasão turca da Itália, pelo sul. Em 1566, os turcos atacaram Malta. O sultão Suleiman, o Magnífico, enviou 40 mil homens na esquadra otomana para tomarem a ilha. No entanto, os bravos malteses, juntando-se aos cavaleiros e camponeses recrutados — eram cerca de 9 mil homens ao todo — conseguiram resistir a um cerco de vários meses. Com a aproximação das tempestades de Inverno, os turcos decidiram bater retirada depois de falharem várias vezes a possibilidade de invadirem a ilha, embora tenham causado um grande destruição e desgaste nos sitiados. O Grão-mestre da Ordem, o cavaleiro francês Jean de Vallette, decidiu então fundar uma nova capital na ilha: Valletta (ou La Valletta, do francês) capital essa que, anteriormente, se localizava no interior, na bela cidade de Rabat/Mdina. Mdina — a cidadela fica no coração da ilha, a 14 km de Valletta — é actualmente conhecida como a cidade do silêncio e é uma pequena maravilha de arquitectura medieval. Está muito bem preservada e merece uma visita, até para comer um pastizz (singular de pastizzi), que lembra um pastel ou uma empanada, feito de massa folhada, com um variado tipo de recheio (carne, queijo e, mais tradicionalmente, ricota) no Crystal Palace, mesmo no centro de Rabat e em frente à grande porta da cidadela-fortaleza. A cidadela medieval, dentro da fortaleza, é linda, tem uma vista deslumbrante do alto para toda a ilha e já foi cenário de vários filmes e séries de televisão históricas e de época.




Corto Maltese
‘A Decapitação de São João Batista’ que assinou como F. Michelangelo (Caravaggio). ©José Vieira Mendes

AS PINTURAS DE CARAVAGGIO 

O controverso pintor italiano conhecido por Caravaggio (1571-1610) chamava-se na verdade Michelangelo Merisi e Caravaggio era o vilarejo onde cresceu perto de Milão. Daí que o chamassem primeiro por ‘Michelangelo de Caravaggio’. Por fim ficou apenas ‘Caravaggio’. Fugido de Itália à custa da muitas complicações onde se metia, estabeleceu-se na ilha de Malta, durante uns anos. Conta a tradição que Caravaggio, em 1606, meteu-se numa ‘embrulhada’ em Roma, com Ranuccio Tomassoni, por causa de uma dívida; outros dizem que Caravaggio — vale a pena ver o grande filme, que já é um clássico que se chama precisamente ‘Caravaggio’, de Derek Jarman de 1986, com Nigel Terry, Sean Bean e Tilda Swinton, disponível em DVD, distribuído pela  Atalanta Filmes —, que não se fazia rogado em matéria de amores e envolveu-se com Lavínia, a mulher do outro acabando num rixa por o matar à facada. Era fresco o rapaz, por isso, teve de fugir, primeiro para Nápoles e depois para Malta. Segundo dizem, Caravaggio, que era também um aventureiro romântico como Corto Maltese, pintava em duas semanas grandes obras para ganhar dinheiro e passava um mês à toa, vagueando nas suas aventuras libertinas. Já em 1597, teve de abandonar a região de Milão ‘por causa de umas brigas’ e ir para Roma. Em 1603, chegou mesmo a ser preso por um curto período. Desde jogar pedras a um guarda romano — em 1605, já após ter saído da cadeia — até atirar uma bandeja de alcachofras a um taberneiro, meteu-se em muitas complicações. Porém, Caravaggio conseguia chocar a sociedade da época porque, ao contrário da arte sacra medieval, com os seus halos santos e visões de esplendor, pintava as suas figuras de uma forma extremamente realista, começando por representar mendigos, ladrões e prostitutas, como figurantes nas cenas bíblicas dos seus quadros. Quando Caravaggio chegou a Malta, foi recebido como convidado de honra, integrado na Ordem de São João e condecorado como ‘Cavaleiro da Justiça’ — até descobrirem o que tinha feito em Itália e com isso criar mais uma das suas muitas confusões. Enquanto isso, pintou. A Co-Catedral da Ordem de São João é uma igreja magnífica com os seus ornamentos dourados barrocos por toda a parte. É aí que vamos encontrar os dois dois mais impressionantes quadros originais de Caravaggio, inclusive, o único que o pintor assinou com o seu nome próprio: ‘A Decapitação de São João Batista’ — a sua maior obra, em tamanho — que assinou como F. Michelangelo, ou seja, F de Frater, irmão Michelangelo. Em 1608, dois anos após chegar, pegou-se com um dos ‘irmãos cavaleiros’ e foi preso, na própria ilha. Um mês depois, escapou da prisão e conseguiu fugir para a Sicília. Foi expulso da Ordem e, a partir de então foi perseguido pela justiça. Queria chegar ao papa, o único que poderia perdoar-lhes os crimes, mas não conseguiu. Morreu na viagem, após envolver-se em mais brigas. Diz-se que morreu envenenado, pois estudos recentes indicam a presença de chumbo, nos seus restos mortais. Entrou para a História, tanto do Renascimento quanto da arte em geral, e também para a história de Malta. Malta preserva ainda hoje um certo fervor católico da época desses cavaleiros e valorosos guerreiros da cristandade da Ordem de São João. Em Valletta, as estátuas religiosas não se limitam às várias igrejas, encontram-se mesmo nas esquinas das ruas estreitas. Todos os dias há festas dedicadas a este ou aquele santo, muito fogo-de-artifício e muito foguetes, seja de dia ou de noite. Todos os dias, às 12h e 16h, é disparado um dos canhões da fortaleza onde estão os Jardins Upper Barraka; e na torre sineira, o Sino de Santa Maria, toca também diariamente ao meio-dia, prestando homenagem aos que morreram durante o cerco de Malta, durante a II Guerra Mundial.




Corto Maltese
A Balada do Mar Salgado, a primeira aventura de Corto Maltese. ©Meribérica/Liber.

A BALADA DE HUGO PRATT

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O que acontece quando um homem não tem uma linha do destino ou da ‘fortuna’ na palma da mão? É simples: e se for ele a criá-la? Corto Maltese é a história de um marinheiro maltês, que desafiou o destino e venceu-o. A figura nasceu da pena de Hugo Pratt, um escritor-desenhador veneziano, por adopção, mas que foi, tal como o seu personagem, um cidadão do mundo. Hugo Pratt nasceu em Rimini em 15 de Junho de 1927, mas viveu a sua infância e juventude em Veneza. Filho de uma família cosmopolita, o seu avô era de origem anglo-francesa, a sua avó de origem turca e o outro avô de origem judaica sefardita. Em 1937, Hugo e sua mãe mudaram-se para a Etiópia para se juntarem ao seu pai, que era militar. Em 1942, as tropas britânicas capturaram e mataram o seu pai — que era militar do Eixo — e, no mesmo ano, Pratt e a sua mãe foram internados num campo de prisioneiros em Dire Dawa. Aqui, Pratt passa o seu tempo a ler livros aos quadrinhos, antes de ser levado para casa, pela Cruz Vermelha Internacional. Já adulto em Veneza, juntamente com outros dois cartunistas italianos, decidiu escrever e desenhar o seu primeiro quadrinho, intitulado ‘Asso di spache’, que não fez muito sucesso na Itália, mas que se tornou muito popular na Argentina, para onde Hugo decidiu mudar-se por uns tempos. De volta a Veneza, em 1967, após uma curta passagem por Londres, Pratt inventa a sua primeira e mais importante história aos quadrinhos: ‘A Balada do Mar Salgado’, cujo protagonista é um marinheiro chamado Corto, nascido em Valletta e, portanto, chamado Corto Maltese. A história foi um sucesso mundial e, assim, nasceu uma série, focada e passada principalmente nos instáveis momentos históricos, entre a I e II Guerra Mundial, durante os quais Corto conheceu e ajudou figuras reais e escritores viajantes-aventureiros como, Gabriele D’Annunzio, Jack London, Ernest Hemingway, James Joyce, entre outros. Corto nasceu em Valletta a 10 de Julho de 1887. Era filho de um pirata da Cornualha e de uma prostituta cigana espanhola, tão bonita que, diz-se, o pintor Ingres (Jean-Auguste Dominique, 1780-1867) se apaixonou por ela. Entretanto, Corto e sua mãe mudaram-se para Córdoba, em Espanha onde viveram numa casa de um velho rico, protector da mãe, que ficava muito perto da famosa mesquita da cidade. Um dia, um mago, amigo da sua mãe, olhou horrorizado para a mão de Corto e percebeu que ao rapaz não tinha linha da sorte ou do destino na palma da mão; assim e sem problemas, Corto pegou numa navalha e a única memória do seu pai ausente e fez ele próprio um corte longo e profundo na palma da sua mão. Corto continuou os seus estudos com o rabino Ezra Toledano e será este quem lhe contará as histórias secretas da Torá, que o fascinam e inspiram a ser um aventureiro e a correr mundo. De regresso a Malta, Corto decide embarcar no Vanità Dorata, um majestoso barco de três mastros e assim viver mil aventuras que o levarão a conhecer, salvar e amar pessoas nos cantos mais remotos do mundo. Corto Maltese chegou a Portugal pela mão de Dinis Machado e Vasco Granja – que, contra ventos e marés, decidiram apostar nele e nas suas estranhas aventuras, publicando-as nas páginas da Revista Tintin, em plenos anos 70.




VÊ TRAILER DE ‘POPEYE’ (1980)

ONDE ESTÁ O CORTO MALTESE? 

Em Malta ou Valletta pouco ou nada se fala na cultura ou na literatura de Corto Maltese. Na verdade, esse famoso personagem ‘italiano’ conhecido em todo o mundo e principalmente na Europa Ocidental está mais ligado a Veneza e à sua famosa aventura iniciático-mística intitulada, ’Fábula de Veneza’. Na verdade, nem uma t-shirt de recordação consegui encontrar nas lojas de turistas. Marinheiro, mesmo, só a figura do Popeye’ e tudo por causa da Popeye Village. Toda a gente conhece o desenho animado, mas poucos se lembram do musical em imagem real, realizado por Robert Altman, no início dos anos 1980, com Robin Williams no papel principal. O cenário foi construído numa das praias rochosas de Malta e é uma verdadeira Vila do Popeye, que se transformou numa grande atracção turística, um tanto ou quanto kitsch. Mas voltando ao Corto, nas entrelinhas dos seus quadrinhos, nas introduções e nas histórias, podemos perceber pequenos detalhes — muitas vezes matizados — sobre a infância deste marinheiro, do aventureiro de brinco de camisa branca e casaco de almirante, criado originalmente a preto e branco. Corto Maltese nasceu na ilha de Malta em 1887, na capital Valletta, e passou parte da sua infância em Malta, ver por exemplo referências no álbum ‘A Juventude’. Corto era um cosmopolita desde o seu nascimento, devido ao pai e à mãe. Corto Maltese dir-se-ia que nasceu com o mundo já no sangue. Na pequena Malta — depois de ter vivido em Córdoba e Gibraltar — começou a ganhar confiança no seu futuro, ouvindo histórias de longe contadas por marinheiros, grumetes e capitães. Histórias distantes, contadas por homens que atracaram em todos os cantos do mundo. Em Malta — uma ilha de passagem localizada mesmo no meio do Mar Mediterrâneo — estas histórias cruzavam-se, passando de boca em boca, confundindo-se com a realidade. Histórias incríveis que provavelmente faziam cócegas na imaginação do pequeno Corto, como a qualquer criança, que então ainda não conseguia distinguir o que era verdade e o que provinha da vaidade daqueles marinheiros, que talvez só quisessem impressionar alguma bela mulher, como a sua mãe. Mesmo assim, tive a sensação de imaginar, os pensamentos e as imagens criadas na cabeça de pequeno Corto, agachado no Forte de Sant’Elmo, localizado num das extremidades de Valletta, tentando olhar o mar além da linha do horizonte, tocando novas terras, sonhando em viver as aventuras, que ouvia lá em baixo no porto. Para quem era filho de uma andaluza e de um britânico, para quem se embalou, nos primeiros anos de vida, entre as histórias de marinheiros de Valletta e Gibraltar, mais cedo ou mais tarde a pequena Malta tornar-se-ia certamente acanhada. 




Corto Maltese
‘As Memórias Secretas’, de Mário Cláudio. ©D. Quixote/Wook.

THE PORTUGUESE CONNECTIONS

Se directamente a Corto Maltese não encontrei nada, há em Malta muitos vestígios de algumas dessas terras por onde o marinheiro viajou durante a sua vida. Foram muitos os conquistadores que desembarcaram na ilha, civilizações foram exportadas, guerras foram travadas, fortificações foram instaladas em Malta. Da inteligência dos fenícios, na construção de navios mercantes, ao cristianismo que começou com o naufrágio de São Paulo na pequena ilha do Mediterrâneo; dos traços linguísticos deixados pelos árabes, às influências dos normandos, aragoneses e castelhanos; ao ataque realizado por Napoleão, que acabou expulso pela coroa inglesa. Recorde-se a duradoura e fundamental presença dos cavaleiros cruzados da Ordem de São João (ou St. John, mais tarde Ordem de Malta). A ilha de Malta, foi a sede da Soberana Ordem de São João. Na atribulada história desta ordem religiosa, também está, quase como sempre nas histórias do mundo, um português um tanto controverso, mas que se tornou célebre: o Grão-Mestre Frei Manuel Pinto da Fonseca (1681-1773) que, em sua própria honra, designou Malta, ou melhor, Valletta, como a Cittá Pinto. Lembremos também outros três influentes Grão-Mestres portugueses da Ordem: Frei Afonso de Portugal (falecido em 1207), Frei Luís Mendes de Vasconcelos (falecido em 1623) e Frei António Manoel de Vilhena (1663-1736). Numa ficção, quem sabe inspirada na realidade, Frei Pinto da Fonseca foi miraculosamente salvo, depois de um grave acidente de saúde, pela sedutora Severiana, a suposta mãe da avó de Corto, Maria de los Milagros — ‘não fadada para as glórias que seu pai gostaria de lhe ter reservado, em virtude do sucessor de Pinto da Fonseca ter posto fim a um tal sonho, arredando-a de quaisquer honras’. E, assim, consegui descobrir alguma ligação portuguesa a Corto, que ganhou esse nome à nascença, dada a exiguidade do seu corpo — por ser curto, ou corto em italiano. Na verdade, foi todo esse mundo — inclusive o português — que chegou a Malta ao longo de dois milénios, e Corto Maltese, o navegador aventureiro, foi procurá-lo durante toda a sua vida, por esse mundo fora, desaparecendo sem deixar rasto durante a Guerra Civil Espanhola e o início da II Guerra Mundial. Contudo, poderemos ter novas luzes dessa relação de Corto Maltese com Malta, através da leitura de ‘Memórias Secretas’, um curioso livro do escritor português Mário Cláudio (ed. D. Quixote), obra que me acompanhou nesta viagem cultural e cinéfila ao coração do Mediterrâneo. Através deste livro, que vagueia entre a ficção e a História, talvez compreendamos melhor o fundo desse aventureiro, apaixonado pela ‘Utopia’, a obra-prima de Thomas More — assim como o português Rafael Hitlodeu, que assina o epílogo do livro de Mário Claudio e em parte descreve Corto Maltese. Mário Cláudio fez uma legitima escolha das suas memórias de jovem e completa-as com a sua extraordinária imaginação literária: Hugo Pratt faz desaparecer Corto Maltese durante a Guerra de Espanha mas, para Mário Cláudio, não desapareceu. A 3 de Novembro de 1941, apesar da guerra sangrenta, Corto Malteses arrendou uma casinha na Ilha de Burano, em Veneza, mesmo defronte do Adriático, onde também moram com ele Tarao, Pandora, Abel e Sephora e aí provavelmente viveu até ao fim dos seus dias. Mas aí temos matéria para mais mistério, porque o testemunho do nosso herói   termina abruptamente em ‘Mú’, a sua última aventura.




Corto Maltese
A cidade de Valletta é Património Mundial da UNESCO, desde 1980. ©José Vieira Mendes

CORAÇÃO DO MEDITERRÂNEO

A Valletta antiga foi construída com ruelas perpendiculares e paralelas onde só passa um carro ou se circula a pé, por estreitos passeios. A cidade é considerada Património Mundial pela UNESCO, desde 1980. Tem muitas igrejas, museus, fortificações antigas, além de um casario e prédios, com as belas varandas salientes, feitas de madeira. Malta participou activamente no Renascimento italiano e foi dos bastiões do estilo barroco. Em comparação com o final do século XIX, a Valletta que deu origem ao Corto Maltese de Hugo Pratt mudou certamente bastante, mas continua a ser uma espécie de coração do Mediterrâneo, quanto mais não seja pela sua localização geográfica. A capital de Malta, funciona actualmente como uma espécie de bairro histórico e administrativo do arquipélago, a que se junta o ilhéu de Comino e a ilha de Gozo, esta última com as melhores praias de areia fina e aguas cristalinas azuis e verdes. As buzinas dos carros e o tráfico por vezes intenso nas ruas estreitas de Valletta prevalecem agora, sobre o barulho dos marinheiros e das embarcações no porto; barcos de pesca, veleiros e galeras mercantes foram substituídos por enormes navios de cruzeiro e luxuosos iates que nada têm a ver com Valletta do final do século XIX. As histórias de monstros marinhos e de terras desconhecidas que surgiram do nevoeiro, vivem apenas nas lendas dos livros antigos e nas memórias, entre outros, do escritor Joseph Attard (1924-2011), por exemplo em ‘The Ghosts of Malta’, um dos livros mais conhecidos e publicados em Malta. O que não mudou mesmo deve ser o vento quente que sopra sobre o porto de Valletta, vindo do Norte de África. O calor de Junho é infernal e encrava-se entre as ruas, os prédios antigos e das ruas empedradas, tornando o ambiente insuportável. A cor clara das pedras centenárias da fortificação que rodeia a cidade — agora ligada a Floriana por uma ponte desenhada pelo arquitecto italiano Renzo Piano, autor também do novo Parlamento, logo à entrada da muralha — que os Cavaleiros da Ordem de São João ergueram para se defenderem dos turcos não mudaram quase nada e reflectem uma luz ocre clara, que obriga a andar de óculos escuros. As nuvens, que correm talvez na velocidade de um pensamento de Corto Maltese, são as mesmas. A cúpula da Igreja de São Paulo continua a brilhar muito à noite; a vista para o porto da cidade de Birgu (uma das 3 Cidades, além de Senglea e Cospicua, que vemos da Waterfront de Valletta ou dos Jardins Upper Barraka) permanece intacta, bem como os faróis que abrem o porto, recordando algumas cenas de ‘Ágora’, (2009), o filme de Alejandro Amenábar. O azul do mar quase empalidece o céu, enquanto o calor já suave do pôr-do-sol, parece apaziguar uma cidade movimentada, acalmando também o mar, cujas ondas da manhã parecem quebrar as paredes robustas, com quatro séculos e meio de história. As estreitas ruas de paralelepípedos, que sobem e descem em direcção à Co-Catedral de São João, parecem ter parado num tempo remoto. Nas vielas mais estreitas e nas escadarias vemos os olhares de mulheres idosas, espreitando através do vidro das janelas das belas varandas de madeira; os gatos — como disse, maltês não vi nenhum — reclinam-se nas pedras expostas ao sol, que se erguem aos olhos do passo incerto de quem caminha à procura de um outro vislumbre romântico ou mesmo de um rosto de uma das belas mulheres das histórias de Corto Maltese. Tudo isso, de facto, parece não ter mudado muito na capital de Malta e permanece quase intacto, não vão o amontoado de turistas aos poucos dar cabo de tudo. Se Corto Maltese voltasse a Valletta, nem que fosse por um instante, reconheceria certamente que, no fundo, para além da sua frenética normalidade, a sua cidade natal continua quase como antes e com o mesmo espírito mediterrâneo. Na verdade, Valletta continua a ser uma cidade fascinante e romântica, como o próprio Corto. Talvez porque todos, até certo ponto, somos também filhos da terra onde crescemos. E eu que o diga…

José Vieira Mendes, em Malta (o autor viajou a convite da Malta Film Commission)

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