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Viver, em análise

“Viver”, do cineasta Oliver Hermanus e protagonizado por Bill Nighy, é um dos filmes em destaque na cerimónia aos Óscars de 2023.

Na origem do actual LIVING (VIVER), 2022, realizado pelo cineasta sul-africano Oliver Hermanus, encontramos uma das obras-primas do chamado gendai-geki (género que no cinema japonês se refere a histórias contemporâneas), IKIRU (VIVER), 1952, realizado por Akira Kurosawa. No argumento desta última ficção participaram, para além do mestre nipónico, dois nomes famosos da cinematografia do seu país, Shinobu Hashimoto e Hideo Oguni. Considerando apenas a sua colaboração na obra de Akira Kurosawa, recordemos filmes que foram e são marcos da História do Cinema mundial como RASHOMON (AS PORTAS DO INFERNO), 1950, SHICHININ NO SAMURAI (OS SETE SAMURAIS), 1954, KUMONOSU-JÔ (O TRONO DE SANGUE), 1957, e KAKUSHI-TORIDE NO SAN-AKUNIN (A FORTALEZA ESCONDIDA), 1958. Para quem os viu não restam dúvidas da altíssima qualidade dos nomes referidos no domínio da escrita para cinema. Importa ainda dizer que a versão mais recente de IKIRU, ou seja, LIVING, beneficia ainda da influência do romance “A Morte de Ivan Ilitch”, de Leon Tolstói, que influenciara o argumento da versão original, cuja acção decorre no Japão. Entretanto, na moderna adaptação voltamos a encontrar um japonês, mas radicado há muito no Reino Unido e detentor da respectiva nacionalidade, o escritor e argumentista Sir Kazuo Ishiguro.

O TRANQUILO BALANCEAR DA VIDA

Viver
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Feita a necessária introdução para situar a nova abordagem no seu devido contexto histórico, literário e sobretudo cinematográfico, precisamos agora de referir que a primeira grande virtude de LIVING foi a de enquadrar os pressupostos dramáticos no ano de 1953, precisamente um ano depois da data de produção de IKIRU. Mas isso acontece porque seguramente os produtores quiseram reforçar as diferenças nas potenciais semelhanças, e não apenas a proximidade factual dos acontecimentos associados ao protagonista, de uma época ainda marcada pelas cicatrizes da Segunda Guerra Mundial. Durante a rodagem de IKIRU, o Japão vivia o pós-guerra de um país que a perdera e que no ano de 1952 iria ver-se livre do peso da ocupação aliada, sobretudo o da ocupação americana. Por contraste, no Reino Unido viviam-se dias de um possível e lento regresso ao rotineiro dia a dia de um país vencedor e detentor na época de uma pulsão vital que persistia por entre numerosas contradições de classe e não só, situação que não era apenas visível no continente europeu mas igualmente nas paragens mais ou menos longínquas onde partilhava os louros da vitória com os seus antigos aliados. Deste modo, as grandes linhas dramáticas presentes no argumento de LIVING vão ser perfiladas, referindo-se no caso específico ao que se passava em Inglaterra, no seio de importantes mudanças na atmosfera social, política, cultural e económica dos anos cinquenta, uma atmosfera particular que nos parece hoje distante mas que outrora formatava a maioria dos comportamentos individuais na conjugação com o colectivo. Palco para o homem comum que diariamente se cruzava com o homem do establishment no seu fato completo, elegante, mas demasiado formal, chapéu a condizer, pastinha na mão e, por vezes, uma bengala ou um chapéu de chuva. Tudo muito conservador. Em LIVING iremos constatar com especial incidência a relação que se estabelece entre um funcionário público, o perfeito burocrata, com os seus mais próximos subordinados e a sociedade que o rodeia. Falamos do circunspecto Mr. Williams, papel defendido e bem por Bill Nighy, justo candidato ao Óscar na categoria de Melhor Actor. Para os devidos efeitos, onde estava Tóquio passou a estar Londres. Onde estava o magistral Takashi Shimura está agora o já referido Bill Nighy. Onde estava a Direcção de Fotografia do magnífico Asakazu Nakai está agora o muito competente Jamie D. Ramsay. Onde estava a densidade e os contrastes do preto e branco está agora uma paleta de cores que procura recuperar a memória das “natural colors” do velho mas saudoso Technicolor. E onde estavam 143 estão agora 102 minutos.

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Mr. Williams possui um rosto que mais parece a face de um manequim cujo olhar se dirige única e exclusivamente para o concreto da sua burocrática função profissional. Entra no comboio pela manhã, no mesmo sítio e a uma mesma hora, e os que com ele partilham os “arranha-céus” de papelada acumulada, despachada ou por despachar, rosnam irónicas críticas sobre a sua personalidade reservada mas acabam quase sempre por levá-lo a sério no meio do fazer que fazem sem fazer, numa estrutura fortemente hierarquizada como a da Câmara Municipal de Londres, onde os assuntos prementes e para alguns mais urgentes são empurrados de piso em piso, de gabinete em gabinete, passando das mãos do responsável que o devia ser para o responsável que o não quer ser. Enfim, nada de muito estranho para quem já experimentou andar pelos corredores dos meandros administrativos procurando obter decisões que competem aos serviços oficiais assegurar. Perto da reforma, Mr. Williams esperava viver os seus dias da mesma forma que sempre vivera, mas uma notícia sobre o seu estado de saúde vai provocar uma significativa reviravolta nas suas prioridades e mudar por completo a sua perspectiva existencial. Desde então procura nos meses que lhe restam abraçar aquilo que de um modo claro lhe surge como um período perdido, não obstante a memória da mulher com quem partilhara o passado indicar que algo de bom ficou para ser recordado. Na verdade, ao contemplar o retrato da pessoa amada, na sombria solidão de uma viuvez e no espaço apertado da casa que partilha com a filha e o genro, lemos de forma bem clara no melancólico olhar de Bill Nighy (que corporizara com muita segurança as nuances psicológicas de um funcionário modelar) o reconhecimento de que afinal Mr. Williams perdera há muito o sentido e o gozo da vida. De certo modo estava morto, não fisicamente mas espiritualmente, para a alegria de sentir e partilhar sentimentos. Por isso, mais uma vez sem mostrar a princípio grandes emoções, decide mudar de rumo e seguir um outro que inicia organizando racionalmente sucessivas etapas. Logo a abrir, Mr. Williams aceita mergulhar de cabeça numa série de ambientes, digamos, diversos e redentores mas de controversa natureza. Fá-lo junto com um rapaz boémio e ambicioso (Tom Burke) que o leva pelos bas-fonds onde circulam em doses generosas música, álcool e sexo, mais o que vem associado. Mas Mr. Williams, prudentemente, rejeita os abismos que se abrem diante de si com a natural distanciação de quem sempre se afastou das aventuras ou desventuras que não consegue nem sabe controlar. No meio deste frenesim descobre afinidades com uma subordinada, Margaret (Aimee Lou Wood), que está prestes a mudar de emprego e que devido a um incidente protocolar chama a atenção de Mr. Williams. Pouco a pouco, apesar de insinuações não fundamentadas sobre a possibilidade de estar ali a nascer um relacionamento mais íntimo, ambos estabelecem um mapa de  pontos de interesse confluentes. E se por aqui circula algum fulgor amoroso, não passa de um inócuo exercício platónico. Mr. Williams vê naquela jovem, sobretudo na sua força de vontade e sede de mudança, algo que ele gostaria de experimentar se pudesse regressar a uma juventude que sabia estar definitivamente enterrada. “To be alive like that for one day!” (“Estar assim vivo por um dia!”), dirá ele, como um desafio a si mesmo. Será, aliás, a pensar no futuro e nos mais jovens, leia-se, as crianças, que Mr. Williams irá liderar uma autêntica cruzada a favor da construção de um parque infantil numa área desfavorecida da capital, ainda com sinais visíveis dos estragos provocados pelos bombardeamentos da guerra, e que fora várias vezes protelado por inércia da burocracia municipal, incluindo a que ele legitimava “arquivando” os requerimentos e as petições de vária ordem num amontoado de papéis, mais ou menos esquecidos, dizendo qualquer coisa como: “Fica aqui. Mal não faz…”.

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Bill Nighy, notável de contenção, necessária para credibilizar o comportamento de alguém que face ao olhar do espectador não pode nem deve ser confundido com outra personagem senão a que ele próprio defende, empresta ao corpo e alma de Mr. Williams uma noção de perseverança que, uma vez adquirida e posta em prática, gera mais e mais simpatias para as motivações que o fazem correr, mesmo da parte dos que o apelidavam de Mr. Zombie. De facto, depois de no início de LIVING sermos introduzidos no complexo jogo das relações pessoais inerentes a um contexto laboral muito codificado (altura em que se realiza a consolidação dos pressupostos ficcionais que vão ser posteriormente alterados), as últimas sequências referem e reforçam as mudanças operadas nesse universo e fora dele, onde se comprova o legado que Mr. Williams numa outra esfera social quis deixar para as gerações futuras: um singelo parque infantil onde o veremos, quase um fantasma, sentado num baloiço como se recuasse a um angélico paraíso perdido, cantando uma velha canção escocesa, um homem finalmente feliz sob a neve que cai sobre as coisas vivas, mas que pode igualmente anunciar a branca mortalha da morte.




Viver, em análise

Movie title: Living

Director(s): Oliver Hermanus

Actor(s): Bill Nighy, Aimee Lou Wood, Alex Sharp, Adrian Rawlins, Oliver Chris, Michael Cochrane

Genre: Drama, 2022, 102min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Belíssima Direcção de Fotografia e notável exercício de luz e sombras onde sobressaem cores quentes que nos recordam outras eras e outras atmosferas. Muito cuidada reconstituição dos anos cinquenta em Inglaterra, sobretudo visível nos pormenores das ruas e áreas emblemáticas da capital britânica onde a maioria das personagens deste filme circula.

Magnífica a matriz, ou melhor, as matrizes literária e cinematográfica, que se revelam aqui e agora numa série de correspondências plasmadas no plano ficcional, que não deixa por isso de constituir um argumento novo e com diferenças que não alteram o essencial, ou seja, a história de um homem que no fundo se apercebe de que nos limites do seu equilíbrio existencial a vida vale muito mais do que a rotina burocrática de uma profissão que esmaga pela inércia face aos resultados práticos e pelo peso da burocracia.

Concorre a dois Óscares da Academia, Melhor Actor Principal (Bill Nighy) e Melhor Argumento Adaptado (Kazuo Ishiguro).

CONTRA: Nada.

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