SuperNatural de Jorge Jácome | via Portugal Film

72ª Berlinale | Filmes portugueses supernaturais

Os filmes portugueses apresentados na 72ª Berlinale, superaram as expectativas, além do Prémio da  Crítica para ‘Super Natural’ de Jorge Jácome. Com a intensa programação desta Berlinal, abrimos ainda espaço  para um balanço da notável participação portuguesa, com ‘Águas de Pastaza’, de Inês T. Alves e ‘O Trio em Mi Bemol’, de Rita Azevedo Gomes.

‘Super Natural’, a primeira longa-metragem de Jorge Jácome (‘Past Perfect’) é uma experiência visual incrível e uma viagem única e alucinatória pelos mais diversos territórios das imagens em movimento. O filme partiu de uma colaboração entre o realizador, a companhia de dança ‘Dançando com a Diferença’ (Funchal) — constituída principalmente por pessoas com síndrome de Down — e os Teatro Praga, de Lisboa. Trata-se de um filme experimental que não servirá certamente para os espectadores que procurem algo para passar o tempo ou que procurem algo de linear do ponto de vista narrativo. É um filme que tem der ser visto quase como uma instalação artística ou um obra de arte, tal como pressupôs aliás até, a sua selecção para o Forum da 72ª Berlinale: destinada a obras que desafiam o óbvio e convencional da linguagem cinematográfica. ‘Super Natural’, vencedor do Prémio FIPRESCI é um convite para um envolvimento pleno dos espectadores, que vai até ao nível das sensações e emoções. É quase uma experiência de meditação: começa com uma sequência cerca de 2 minutos de ecrã a negro, preenchida com um vazio visual, que aos poucos vai entrando numa sequência de estímulos sensoriais abstratos, coloridos e sonoros. Depois disso é deixar-nos mergulhar numa atmosfera quase mágica da paisagem da Madeira, das suas costas, da Ponta de São Lourenço, da cidade do Funchal e sobretudo de um momento indescritível, com os bailarinos-actores, nas piscinas naturais de Porto Moniz, a norte da Ilha. Depois, acompanhamos a expressividade desses actores-bailarinos, na sua exploração das possibilidades de movimento na terra e na água, bem como nos seus gestos atentos aos mínimos detalhes do mundo que os rodeia. A sublime fluidez das coreografias e movimentos é acompanhada por uma abordagem visual que vai mudando constantemente de formato e estética: uma constante experimentação do potencial visual de imagens do Instagram, Super 8, câmaras de vigilância, misturadas com filtros e solarizações. Se por vezes os excessos de experimentação transformam-se em algo pretensioso e sem sentido, aqui tudo funciona e encaixa harmoniosamente, como na vida, nos sonhos e na grande arte. Em grande parte algo que se deve muito ao trabalho de Marta Simões (directora de fotografia) e à notável edição do realizador Jorge Jácome. Nesta trajetória não linear, contamos ainda com uma estranha voz alienígena, que nos guia numa viagem que vai além da Terra, em direção aos territórios inexplorados da mente, do eu, deste e de outros mundos. A este nível, sente-se a presença da adição de som às legendas, que embora de uma forma discreta — o texto às vezes é um pouco repetitivo e desnecessário, exigindo uma maior concentração do espectador, distraindo-o até das imagens —, procurando dar alguma ordem, à constante expansão do espaço visual. A verdade, é que viajamos em diferentes dimensões — dentro e fora do filme — e à medida que essa voz vai mudando vai tentando clarificando quem está a falar com o espectador.

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VÊ TRAILER DE ‘SUPER NATURAL’

A atmosfera sonora e sobretudo a banda-sonora dos músicos portugueses Violet e Raw Forest são absolutamente marcantes e fundamentais no filme. A profunda imersão nesse fluxo constante de imagens e sensações depende em primeiro lugar, da extraordinária utilização do som. Apesar da abordagem existencialista e poética de ‘Super Natural’ é a musica electrónica e o som que proporcionam alguns dos momentos mais suaves e divertidos do filme, como o videoclip da sereia. ‘Super Natural’ é um desafio para vivenciar, uma experiência do outro mundo; mais do que um filme é uma  peça construída a partir de um ecossistema poético entre a palavra e a imagem, que nos permite aprofundar sobre uma multiplicidade de temas comuns a toda a humanidade: a vida, a morte, as sensações, a normalidade e a deficiência e a forma como cada um explora o (seu) mundo e o seu corpo. Trata-se de abraço sensorial e, de facto, sobrenatural — repleto de contradições, emoções, paisagens, pensamentos que constrói apesar de tudo, uma conexão real com o espectador. ‘Super Natural’ é sobretudo um momento transformador do que é o cinema e dos seus limites e possibilidades. Por isso é um filme que só pode ser visto num grande ecrã de cinema.

VÊ TRAILER E ENTREVISTA  DE ‘ÁGUAS DE PASTAZA’

É curioso ver como ‘Águas de Pastaza’ a primeira longa-metragem de Inês T. Alves, incluída na competição juvenil Geração Kplus da 72ª Berlinale, de certo modo dialoga com o filme de Jorge Jácome, sobretudo no que diz respeito da relação aos temas da humanidade, a tecnologia e a natureza. O filme de Inês T. Alves começa com uma citação do grande filósofo e pedagogo português Agostinho da Silva (1906-1994): ‘As qualidades das crianças devem ser preservadas até a morte, como qualidades distintamente humanas — as da imaginação, em vez do conhecimento; brincar, em vez de trabalhar; totalidade, em vez de separação’. Ele também disse: ‘É a criança que deve ser considerada o bom selvagem’, e que a sociedade deve deformar uma criança o mínimo possível. Inês T. Alves leva-nos assim numa viagem até ao Rio Pastaza, localizado na fronteira entre Equador e Peru, enquanto caminhamos lado a lado, pela floresta com um grupo de crianças das comunidades indígenas Achuar. As crianças sozinhas, cortam as árvores com uma catana, apanham bananas, levam o barco de volta para casa, pescam e quebram o pescoço de alguns peixes. Essas crianças vivem um dia soltos a caminho da sua casa, sem medos das espécies animais amazónicas, como insectos de aparência alienígena ou mesmo pássaros assustadores. É como se a civilização não pudesse estragá-los, continuando a vivenciarem a sua verdadeira natureza selvagem, embora vestidos com roupas normais de criança. As crianças aparentemente, parecem ser uma parte tão orgânica da floresta quanto os fungos que crescem nos troncos das árvores ou as outras criaturas da natureza. Mas não é tão simples assim; passo a passo, vamos testemunhando que também vão existir smartphones ou tablets, neste mundo da Amazónia perdida. Bem como escolas ou instituições, com uniformes. Aos poucos vemos como inevitavelmente estas crianças serão moldadas à civilização. O Rio Pastaza representa uma espécie de ritual de passagem, um movimento constante das águas, um caminho de liberdade e purificação. Porém este grupo de crianças vai continuar a mudar ou permanecerão os mesmos? O filme efectivamente não procura respostas, mas simplesmente observação. Esperava-se que ‘Águas de Pastaza’ fosse tão divertido quanto as brincadeiras iniciais das crianças na floresta, em volta deste rio. Porém, o trabalho da jovem realizadora das Caldas da Rainha, é um documentário observacional, que nos convida a fazer parte deste ecossistema, sem julgamentos, mensagens ou abstrações. É uma leitura rigorosa dos comportamentos humanos e uma oportunidade de testemunhar uma outra visão do mundo ainda primitivo, mas que deve ser preservada. É curioso ver também como estas crianças também se divertem com os telemóveis e, a dado momento, até com uma câmara filmando a própria realizadora. O filme de Inês T. Alves também não nos diz que a tecnologia vai necessariamente corromper estas crianças; ‘Águas de Pastaza’ é um filme tão em sintonia com a natureza, que parece mesmo querer dar a entender que isso faz parte da evolução e da condição humana. Mas na verdade, tudo parece mais certo, mais equilibrado e mais normal, na longa jornada, quando as crianças vagueiam pela floresta sozinhas.

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 VÊ TRAILER DE ‘O TRIO EM MI BEMOL’

‘O Trio em Mi Bemol’ — apresentado igualmente na secção Forum — a realizadora Rita Azevedo Gomes, (‘A Portuguesa’), apresentou um filme substancialmente diferente dos anteriores, adaptando a peça de teatro homónima escrita curiosamente pelo cineasta francês Éric Rohmer (1920-2010). Porém, a realizadora usou vários códigos e métodos para alterar as convenções teatrais, ao ponto de as subverter e as interpretar na linguagem do cinema, do seu próprio universo. O resultado é um trabalho interessantemente abstrato, falado praticamente todo em francês como no original, embora sempre em tom de comédia de costumes. Não agrada na totalidade, como ‘A Portuguesa’, mas tem prazeres singulares e inesperados que podem ser encontrados e desfrutados. Adélia (Rita Durão) e Paul (Pierre Léon) são ex-amantes cuja relação amorosa é agora mais platónica dia que outra coisa, embora ainda emocionalmente íntima e cúmplice. Ele adoraria que ela voltasse a cair-lhe nos braços, mas ela não está para aí virada. O casal encontra-se em vários momentos, numa moradia — localizada em Moledo, pertencente à família Alves Costa e desenhada por Siza Vieira — supostamente dele, escassamente decorada, para dissecar alegremente seu passado e dando opiniões francas sobre os parceiros actuais um do outro. Rapidamente percebe-mos que estamos num filme dentro de um filme, que os dois são actores, preparando-se para a produção de cinema, com as cenas apresentadas formando essa mesma narrativa. Há certamente aqui uma brincadeira, às vezes beirando a timidez, como se ‘O Trio em Mi Bemol’ tentasse seguir  algumas referências dos filmes dentro dos filmes, no cinema português, sobretudo dos filmes de Miguel Gomes. Contudo, o estilo diferenciado de Rita Azevedo Gomes tem potencial para alienar, qualquer destas supostas referências. A realizadora, opta por planos médios e estáticos, — tem muito poucos grandes planos sobre os rostos — que abrangem o espaço, permitindo aos seus personagens entrarem e saírem de cena, como e quando quiserem. É uma experiência cinematográfica muito curiosa e interessante, já que se reconhece o artifício da premissa inicial de subverter o espaço cénico e linguagem teatral, ao mesmo tempo em que incentiva os espectadores a examinarem pequenos detalhes consideráveis, como os quadros na parede ou o estofo das cadeiras. Ou os rompimentos bruscos, como as cenas na praia e no jardim do inenarrável realizador ou da bela assistente de realização. Muitos dos aspectos visuais são absolutamente sublimes na sua simplicidade e tão directos quanto as sugestões musicais  — o erudito protagonista é um especialista em música clássica —; ou o final abrupto de uma cena longa e ininterrupta, parecendo quase uma revelação ou melhor uma desilusão, quando afinal ela não lhe vai cair nos braços, embora se sirva  sempre do seu ombro amigo. A simples duração de certas cenas resulta numa sensação estranhamente hipnótica, que acaba por ser interessante, quase como se tivesse-mos ali sentados na sala ou no plateau, a escutar os dilemas dos personagens. ‘O Trio em Mi Bemol’ poderá não ser uma chávena de chá para todos os espectadores e a dada altura seria mais desafiante se o filme tivesse mais ritmo e mais química entre os dois actores principais. Mas tudo foi feito onerosamente, como se diz no genérico. Para entender este filme na totalidade — inclusive a motivação de cada uma das personagens — é um verdadeiro desafio, mas fácil obviamente para que aprecia o cinema e o estilo desconcertante da Rita Azevedo Gomes. Mas é um filme digno, mesmo que não seja totalmente óbvio como somar a soma das suas várias partes, como se fossem a soma dos actos do teatro. Existe, é claro, uma linguagem do cinema e a cineasta utiliza-a na sua plenitude. E venha mais música de Mozart! E que saudades dos filmes de Éric Rohmer?

JVM

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